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Cuidados paliativos: “é preciso quebrar tabus”, afirma pesquisadora da ENSP Valéria Lino

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Publicado em:01/12/2022
Por Barbara Souza

No dia 7 de dezembro (quarta-feira), o Curso de Especialização em Cuidados Paliativos com Ênfase na Atenção Primária do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural (CSEGSF) e o Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria (ENSP/Fiocruz) realizarão o I Simpósio da Atenção Primária na Integração da Rede de Saúde em Cuidados Paliativos. Para aprofundar o tema às vésperas do evento, o Informe ENSP entrevistou a pesquisadora Valéria Lino, médica geriatra do Centro de Saúde e coordenadora do CSEGSF.

O I Simpósio da Atenção Primária na Integração da Rede de Saúde em Cuidados Paliativos será de 9h às 12h e em formato híbrido. O local para quem puder acompanhar presencialmente é a sala 410 da ENSP. Já a transmissão em tempo real será pelo canal da Escola no Youtube. O simpósio tem como público-alvo profissionais, gestores e estudantes da área da saúde e afins.

Confira a entrevista na íntegra:

O que são cuidados paliativos?
Valéria Lino: Cuidados paliativos são uma forma de abordagem para pessoas que têm doenças avançadas, com dificuldade de curar. Na maior parte dos casos, não tem cura, são doenças avançadas, ou seja, em progressão.

Esses cuidados servem só para idosos?
Valéria Lino: Não. São para casos de qualquer doença. Existe cuidado paliativo infantil, pediátrico. Criança também tem doença grave, que vai evoluir, como as neuropatias e alguns tipos de câncer, por exemplo. Tudo isso é factível de ser acolhido por meio de um cuidado que é realizado normalmente por uma equipe multidisciplinar, que tem médico, enfermeiro, assistente social e psicólogo. Essa é a equipe mínima de cuidados paliativos, pois a pessoa tem demandas diferentes e sofre com o que a gente chama de “dor total”, que é a dor que envolve problemas físicos, emocionais e sociais. Foi Cicely Saunders quem introduziu essa forma de acolhimento. É uma médica, enfermeira, assistente social, e escritora inglesa.

O que quer dizer “qualidade de morte”? Cuidado Paliativo é para alguém que não vai sobreviver por muito tempo?
Valéria Lino: Às vezes a pessoa tem uma doença crônica e vai sim viver por muito tempo. Quanto mais tempo ela tiver sendo acompanhada por uma equipe de cuidado paliativo, melhor ela vai viver esse tempo que lhe resta. Isso porque a equipe reduz o sofrimento passível de ser reduzido. Então, se o paciente tem uma dor decorrente de um tratamento, que pode ser de um, dois ou mais anos, se ela tem um sofrimento porque o cabelo caiu num tratamento, numa quimioterapia, e tem profissionais a ajudando a passar por aquilo, ela vai viver melhor o tempo que ainda tem pela frente. Muitos pacientes com câncer vivem muitos anos. Então, cuidado paliativo não é só para aqueles que vão morrer em breve. É claro que tem uma grande concentração nos pacientes que possuem menos tempo de vida, mas o cuidado paliativo não é só para quem está no fim da vida.

Para quem é leigo, o Cuidado Paliativo remete a morrer com dignidade. É isso mesmo?
Valéria Lino: Qualidade de morte é ter acesso a esses cuidados no fim da vida. É ter acesso a morfina se precisar, pois a maior parte de pacientes precisa de morfina para dor, para acalmar a respiração. Esse tipo de acesso precisa ser dado aos pacientes para que eles possam morrer com dignidade. Acesso aos Cuidados Paliativos significa qualidade de morte. Garantir essa dignidade faz parte do é cuidado paliativo, mas não se restringe a isso. O acolhimento de uma pessoa que está com uma doença grave avançada ou em progressão e que precisa ser tratada nas suas dores. O foco é no paciente e na família. 

Como a família participa desses cuidados?
Valéria Lino: A família sofre muito se não for amparada. O cuidador, o parente que mais participa do cuidado do doente, precisa ser ouvido. As questões sociais e emocionais da família precisam ser acolhidas, senão ela vai adoecer junto. A gente vê muito isso e dá para minimizar. Tivemos aqui na Fiocruz um estudo com pacientes com doenças neurológicas avançadas. Colocamos cuidadores profissionais treinados nas casas dessas famílias duas vezes por semana durante três horas. Vimos uma redução do risco de violência de dez vezes naquelas famílias que receberam o acompanhante em comparação às que não receberam. Diminuiu o estresse e o paciente foi mais bem cuidado. Os cuidadores familiares ficam muito sobrecarregados, porque essas pessoas deixam de trabalhar para cuidar do outro e passa a não ter dinheiro, tempo de lazer, etc... Essa pessoa, enquanto está cuidando, também precisa ir elaborando o próprio luto. E aí o Cuidado Paliativo vem para isso também.

Qual a razão do Cuidado Paliativo na Atenção Primária?
Valéria Lino: Cuidado Paliativo começou dentro dos hospitais oncológicos e depois foi para outros hospitais, para hospitais privados, enfim. Mas a OMS criou em 2018 uma orientação para que a Atenção Primária assumisse cuidados paliativos também. Então a gente começou esse curso aqui em 2019. Foi feita uma parceria entre o Inca e a Fiocruz para que a unidade 4 do Inca, que é de Cuidados Paliativos, junto com a ESNP, cuidasse disso. Nosso curso é curso fruto de uma parceria entre duas instituições públicas, é voltado para profissionais do serviço público ou que trabalhem para o serviço público para capacitar e melhorar a disseminação desse conhecimento na atenção primária.

Qual o status do Brasil em relação à implantação de políticas públicas que garantam acesso aos Cuidados Paliativos?
Valéria Lino: Num ranking de 80 países, estamos lá na metade. Podemos melhorar muito. Tem que haver política de saúde para Cuidados Paliativos, tem que ter política de saúde para o fornecimento de morfina, por exemplo. A gente tem que ter acesso a morfina, não pode ter preconceito com ela. Mas ainda existe muito. E tem que ter equipes treinadas. Então o nosso papel na ENSP é treinar profissionais. Como, no ano passado, o curso foi online, nós tivemos a oportunidade de ter alunos de todas as regiões do Brasil. Então, a gente sabe que dentro de alguns anos, a Atenção Primária vai estar toda coberta com profissionais qualificados.

Quantos anos você estima?
Valéria Lino: Minha estimativa é de que em dez anos a gente atinja essa meta, com esse curso, com alunos de todas as regiões. A gente diz que eles são os replicadores desse conhecimentos em cada região. As nossas monografias de conclusão de curso são obrigatoriamente projetos de intervenção na realidade deles. Tem que se reverter na prática. E a gente vê coisas maravilhosas. A maior parte das monografias é capacitação de equipe. Eles capacitando as equipes, município, multiplicando o conhecimento. Isso é gratificante.

Em Brasília, assim como ocorre no geral, quando uma pessoa morria em casa, tinha que ir pro IML para receber um atestado. Mas, uma de nossas alunas fez uma proposta e conseguiu reunir todos os atores sociais políticos para que, quando uma pessoa morre em casa e está ligada a um serviço de saúde (ou seja, não é uma morte súbita), possa receber o atestado pelo sistema público. Hoje, uma pessoa que morre em casa no DF tem dignidade. A família não tem que sair pra levar o corpo para o IML. Em alguns lugares, a gente sabe, tem médicos que vendem atestados, as funerárias conseguem. As pessoas pagam rios de dinheiro para se livrarem dessa situação de forma clandestina. Então o fato de uma de nossas alunas ter conseguido mudar isso no DF mostra que a gente está no caminho certo.

Pacientes com quais condições e doenças mais beneficiados pelos Cuidados Paliativos?
Valéria Lino: Câncer, doenças neurodegenerativas, doenças pulmonares avançadas, doenças renais avançadas já com o paciente em diálise, diabetes em fase avançada, insuficiência cardíaca na fase avançada... Qualquer doença avançada que coloque a vida em risco é passível de cuidados paliativos. Existem instrumentos para identificar os pacientes que precisam desses cuidados. E uma das coisas que a gente faz no curso é treinar os alunos para identificarem nas suas comunidades os pacientes que são passíveis para que não sejam apanhados de surpresa. Essas pessoas muitas vezes passam por situações das quais poderiam ter sido poupadas, como tratamentos invasivos. Os pacientes que tem doenças graves avançadas precisam ser acolhidos pela equipe e isso tem que acontecer precocemente. Você sabe que um câncer vai evoluir rapidamente, é possível conhecer os prognósticos das doenças. Então, você já pode saber que aquele paciente precisa do suporte de uma equipe especializada de CP.

Qual é a principal dificuldade para implantar, porque ainda é um desafio?
Valéria Lino: Porque a gente precisa capacitar a Atenção Primária. Tem que haver uma política de capacitação. A AP propõe a integralidade da atenção no SUS e a longitudinalidade. Se o paciente é acompanhado do início da sua doença até o fim, está sendo cumprindo o papel da Atenção Primária. É claro que em momentos de descompensação, o paciente vai para o hospital para compensar, precisa do serviço de maior complexidade, mas ele volta para a AP. E, se for de acordo com a família e do desejo do paciente, ele morre em casa, com assistência e cuidado.

Antigamente as pessoas morriam em casa. Na cultura do interior do Brasil é muito comum as pessoas morrerem em casa e isso não pode ser um tabu. Para morrer em casa, tem que ter cuidado. O paciente não pode ser largado com dor e no sofrimento. A gente respeita o que a pessoa quer. Tem gente que não quer morrer em casa, não quer dar problema para a família. Mas tudo isso tem que ser negociado na AP, que tem condição de absorver isso, desde que haja treinamento. Porque as equipes vão ter que modificar sua forma de atendimento. O número de pacientes em cuidados paliativos por equipe não pode ser muito grande porque são pessoas que demandam muita atenção. E aí o gestor, estando em contato com a equipe, vai saber quem precisa e poderá distribuir melhor as funções dentro de uma unidade de saúde.

Sobre o evento: de onde surgiu a ideia de realizar e quais são os principais objetivos?
Valéria Lino: A gente sempre foca em Atenção Primária, já que ela é ordenadora da atenção como um todos. Então, o Cuidado Paliativo precisa conversar com os outros níveis de atenção. Como fazer isso? Nem todos os alunos do curso trabalham na AP, alguns trabalham em hospital. Esses têm que desenvolver um projeto que interaja com a AP. Estamos fazendo esse primeiro evento para começar a mostrar que essa interação é possível. Como fazer essa integração. Na verdade, a gente quer saber como cada um desses profissionais convidados que vão falar propõem a integração com os outros níveis de atenção, quais são suas experiências. 

Na sua avaliação, é necessário aumentar o conhecimento dos CP na sociedade em geral?
Valéria Lino: As pessoas ainda acham que CP é para quem está morrendo, para quem não tem mais nada pra fazer. E cuidar de alguém que está com uma doença avançada, deixar essa pessoa sem dor, com conforto, tendo as suas questões importantes resolvidas... isso é cuidar. Isso não é abandonar. Cuidado paliativo não acelera a morte de ninguém, infelizmente existe esse preconceito. As pessoas ainda acham que dar morfina é acelerar a morte. Isso é extremamente comum. Quando na verdade, se dá morfina para tirar a dor e, quando a pessoa está no fim da vida, para reduzir a falta de ar. É tudo muito dosado, mas as pessoas tem medo. 

Esse medo é resultado de pouca informação. A gente tem que esclarecer e quebrar os tabus. Os medicamentos são necessários. Mas esse problema é mundial. O vício e a dependência, que é o que muitos temem, não ocorre assim. Não se aplica morfina à toa, a gente tem condições de avaliar e fazer o uso adequado. 

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