Justiça climática e desigualdades raciais no centro de grande debate no 14º Abrascão
Por Julia Da Matta
O Grande Debate “Racismo ambiental e justiça climática: a luta dos territórios pela vida” reuniu, no fim da tarde desta segunda-feira (01/12) pesquisadoras(es), lideranças e ativistas de diferentes territórios para refletir sobre as relações entre desigualdades raciais, degradação ambiental, saúde coletiva e disputas por direitos. Mediada por Marcia Bandini (Unicamp), a mesa contou com a participação de Natália Quiceno Toro (Universidade de Antioquia/Colômbia), Emma Rawson-Te Patu (Federação Mundial das Associações de Saúde Pública – WFPHA) e Richarlls Martins (Fiocruz/UFRJ e presidente do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial – CNPD).
Antes do início das falas, foi prestada uma homenagem a Eunice Xavier de Lima (in memoriam), reconhecida por sua atuação fundamental na formação de jovens enfermeiras e enfermeiros que iniciavam suas trajetórias profissionais em municípios remotos. Sua presença foi lembrada como decisiva para a inserção de novas gerações em espaços ainda pouco acessados pela saúde pública, como assentamentos de trabalhadores sem terra e territórios indígenas. Mais do que orientar tecnicamente, Eunice foi lembrada pelo suporte afetivo e pela capacidade de despertar, em seus estudantes, o compromisso com a saúde coletiva, a saúde mental e a defesa da democracia, tornando-se uma referência marcada pela sensibilidade e pela criação de caminhos fora do que estava instituído.
Ao iniciar sua apresentação, Natália Quiceno Toro destacou o quanto a experiência brasileira em saúde pública contribui para alargar horizontes e fortalecer conexões entre a saúde coletiva, as ciências sociais e a antropologia. Compartilhando aprendizados de sua trajetória, ela convidou o público a conhecer, por meio de um vídeo, a região do rio Atrato, na Colômbia, com de cerca de 750 km de extensão, habitado majoritariamente por populações negras e indígenas.
As imagens exibidas revelaram cenas de trabalho, bordado, pesca e deslocamento em canoas, retratando a vida em torno do rio. Natália falou do contraste destas cenas com as marcas da violência, da mineração predatória e da presença de grupos armados. Segundo ela, não é possível enfrentar os desafios do século XXI e falar em justiça climática sem incluir aqueles que mantêm vínculos diretos com seus territórios, como povos indígenas, comunidades ribeirinhas e trabalhadores do campo.
A pesquisadora alertou para a importância de questionar categorias históricas que contribuíram para o enfraquecimento dessas populações e para a reprodução de estereótipos racistas que associam determinados lugares e corpos à marginalidade e à degradação. “Questionar as desigualdades é também questionar políticas de morte”, afirmou, ao defender a necessidade de se discutir, além dos danos ambientais, processos de reparação histórica e indenização das vítimas de grandes projetos que destroem os ambientes que habitam.
Natália também destacou a experiência do rio Atrato como sujeito de direitos, enfatizando a urgência de formas alternativas de pensar a relação entre natureza e sociedade: um rio reconhecido não apenas como recurso, mas como vida, em conexão profunda com as pessoas que dele dependem e o protegem. Para ela, é preciso habitar novas epistemes sem transformar esses conceitos em modismos, mas preenchê-los com conteúdos produzidos na prática dos territórios e em sintonia com as lutas contemporâneas, citando a Marcha das Mulheres Negras realizada recentemente em Brasília.
Na sequência, Richarlls Martins propôs um deslocamento epistemológico ao perguntar: “a saúde coletiva tem medo de Exu?”. A partir de sua trajetória religiosa e política, afirmou a necessidade de pensar novas possibilidades, limites e potências a partir de epistemologias que emergem dos próprios territórios populares. Para ele, essas formas de conhecimento se materializam em experiências concretas de organização comunitária e resistência ao racismo ambiental.
Como exemplo, apresentou a atuação do Centro de Integração da Serra da Misericórdia, localizado no bairro da Penha. Ao longo de mais de dez anos, a iniciativa tem desenvolvido ações de agroecologia, recuperação de áreas degradadas e criação de tecnologias sociais. Ele destacou iniciativas como o Jornal Vozes da Comunidade, a Frente da Penha e a Liga do Bem, no Complexo do Alemão.
Richarlls ressaltou que a ideia de justiça, especialmente quando formulada a partir das mulheres negras, ultrapassa uma dimensão meramente institucional ou jurídica. Amparado em pensadoras como Lélia Gonzalez, destacou o caráter interseccional das lutas e a necessidade de uma agenda que confronte o racismo, o etnocentrismo, o patriarcado e a LGBTfobia. Ao citar os debates internacionais sobre clima e a realização recente de grandes conferências, como a COP 30, retomou uma pergunta que ouviu recentemente de um aluno da UFRJ: a quem, de fato, servem muitas das normativas produzidas nesses espaços? Destacando a importância de novos termos e incorporação de grupos mais vulnerabilizados nos debates, mas lembrando que temas estruturais, como a dependência de combustíveis fósseis, seguem sem respostas efetivas.
Em meio a esse cenário, afirmou que vivemos uma encruzilhada: “Encruzilhada não é nem positiva nem negativa a priori. Tudo depende das decisões coletivas que vamos tomar”. Ele lembrou que a democracia é indissociável da saúde, e que a luta nas ruas continua sendo indispensável para qualquer transformação real.
Encerrando o debate, Emma Rawson-Te Patu, primeira indígena a presidir a Federação Mundial das Associações de Saúde Pública (WFPHA), iniciou sua fala em sua língua materna e chamou a pesquisadora Ana Lúcia Pontes (ENSP/Fiocruz) para traduzi-la, como forma de assegurar que todas as pessoas presentes pudessem compreender. Em seguida, ao se reconhecer como visitante naquele território, reforçou que a verdadeira justiça ambiental passa, justamente, pelo reconhecimento e pelo respeito aos povos que historicamente cuidam dessas terras.
Para Emma, não há como restringir o racismo ao âmbito ambiental, pois ele atravessa todas as dimensões da vida. Sua definição de racismo está relacionada, principalmente, à distribuição desigual de poder e recursos entre os grupos sociais. “Indigeneidade é uma questão de vida e não pode ser tratada apenas como um tema acadêmico”.
Ao projetar a imagem de uma obra de uma artista da Nova Zelândia, um rosto composto por faces diferenciadas, que revela a existência permanente de uma face oculta, Emma propôs um exercício de autorreflexão: quem ainda não estamos vendo? Quais vidas permanecem invisibilizadas nos processos decisórios? Para ela, as mudanças necessárias só ocorrerão quando houver um compromisso efetivo com a transformação das relações de poder. “Saúde pública é política. E isso aqui é política”, destacou, ao se referir ao espaço do congresso.
Ao citar episódios recentes de ataques a direitos de povos originários em seu país, ressaltou a importância de uma cidadania global e de alianças transnacionais em defesa da vida. Seu convite final foi direto: “O que você está disposto a fazer para mudar o status quo, não apenas por nós, mas pelas futuras gerações?”.
No encerramento, a mediadora Marcia Bandini destacou que havia preparado uma pergunta sobre como garantir que as pessoas certas ocupem o centro do debate, mas reconheceu que a própria dinâmica da mesa, especialmente a intervenção de Emma, já havia respondido a essa questão. Entre memória, denúncia, espiritualidade, ciência e afeto, o grande debate reafirmou que a luta contra o racismo ambiental e pela justiça climática passa, sobretudo, pelo reconhecimento dos territórios e de quem os habita como protagonistas da construção de outros futuros possíveis.
Foto: Lucas Moratelli (Observatório do SUS/ENSP/Fiocruz) e Kio Lima (Abrasco)
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