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Covid-19: O que é preciso para enfrentar o crescente aumento de casos no país?

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Publicado em:03/12/2020
Por Danielle Monteiro

A retomada do aumento de casos de Covid-19 no Brasil preocupa a sociedade e especialistas. A média móvel nacional de mortes, em queda desde outubro, subiu 34% em comparação com duas semanas atrás, chegando a quase 500 falecimentos diários. Segundo pesquisadores, o momento atual requer, sobretudo, reforço e investimento na Atenção Primária (APS) e Vigilância em Saúde. Afinal, a oferta suficiente de leitos e testes, além do rastreamento e monitoramento de casos, são imprescindíveis para o combate a qualquer pandemia. Mas, diante de tantos desafios enfrentados por aqueles dois campos, como atender a uma demanda que voltou a crescer? A pesquisadora da ENSP, Lígia Giovanella, responde a essas e outras perguntas. Confira abaixo a entrevista:


Quais os principais desafios da APS no enfrentamento da retomada da subida de casos de Covid-19 no Brasil? E o que deve ser feito para enfrentá-los, de forma que a APS possa dar conta do momento atual?


A pandemia de Covid-19 alastra-se sem trégua pelo Brasil desde março de 2020, gerando uma crise sanitária e humanitária sem precedentes. Com diferentes tempos em cada estado do país, depois de um pico da pandemia que foi atenuado pelas medidas de isolamento/distanciamento social, casos e mortes mantiveram-se em um patamar elevado e agora temos um recrudescimento do número de casos e mortes em diversos estados. No Rio de Janeiro, depois de um patamar mais baixo desde meados de julho, em novembro se observa aumento de internações e mortes por Covid-19. Novamente, a ausência de autoridade sanitária nacional e de coordenação e cooperação intergovernamental para enfrentamento da pandemia mostra seus efeitos perversos, com raras inciativas governamentais locais para evitar um maior recrudescimento da pandemia. São raras as iniciativas urgentes de promoção do distanciamento social, distanciamento físico e uso de máscaras, certamente imprescindíveis.

O alerta se dá pela superlotação de leitos e UTIs e pouco se fala na imprescindível vigilância em saúde, que poderia ser realizada pelas equipes da Estratégia de Saúde da Família em estreita cooperação com os setores de vigilância de saúde dos municípios. Desde o início da pandemia, temos frisado que enfrentar uma epidemia requer uma abordagem populacional, ademais do cuidado individual. É necessário aliar cuidado individual e cuidado coletivo. Há evidências de que sistemas de saúde fortemente baseados na Atenção Primária à Saúde (APS) podem ofertar esse cuidado integral e articulado, respondendo de melhor maneira às emergências sanitárias, como é o caso desta pandemia terrível.

A Atenção Primária à Saúde (APS) tem papel crucial nessa necessária abordagem comunitária e de vigilância em saúde. A Atenção Primária à Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), em especial a Estratégia Saúde da Família (ESF), com suas equipes multiprofissionais e enfoque comunitário e territorial (e que tem apresentado ao longo do tempo impactos positivos comprovados na saúde da população, importante recordar), pode e deve atuar na abordagem comunitária necessária ao enfrentamento de qualquer epidemia e tem papel decisivo na rede assistencial de cuidados, no controle da epidemia e na continuidade do cuidado. 

Os desafios para a APS são muitos e incluem em primeiro lugar equipes ESF completas, disponibilidade de equipamentos e insumos, EPIs, medicamentos, testes; educação permanente específica; integração à rede assistencial e ao transporte sanitário; integração com os setores de vigilância em saúde; financiamento adequado…E ressalto, a APS sozinha não pode dar conta do momento atual. Pode sim muito contribuir neste e a todo momento para preservar a saúde de nossa população e defender a vida. 

Mesmo reconhecendo as fragilidades da ESF/APS no SUS, intensificadas desde o golpe parlamentar de 2016, não se pode negar a importância das mais de 44 mil equipes de Saúde da Família com 260 mil Agentes Comunitários de Saúde (ACS) atuando, capilarizadas por todo o país. Um potencial que não foi plenamente acionado em nível nacional. Um potencial que se pode dizer foi desperdiçado pelo governo federal. Nossas equipes de APS conhecem seus territórios, sua população, suas vulnerabilidades e, em geral, atuam na perspectiva da vigilância em saúde, o que é crucial no controle do contágio. 

No início da pandemia, parte das atividades das Unidades Básicas de Saúde (UBS) foram suspensas, ACS foram retirados dos territórios e passaram a atuar principalmente nas UBS, seja por pressão da demanda e tentativas de reorganização de fluxos para atendimento de casos suspeitos, seja por receio de propagação do contágio.  No entanto, com o passar dos meses, muitas equipes desenvolveram novas estratégias e processo de trabalho. Experiências que poderiam informar diretrizes gerais para a atuação da APS neste momento e durante toda a pandemia. A rede de pesquisa em APS realizou uma pesquisa em junho com profissionais da ESF e gestores municipais que mostrou as dificuldades, mas também o engajamento dos profissionais e potencialidades de sua atuação, indicadas pelas experiências locais. Podemos dizer que a APS no SUS está se reinventando. 
Lembrando sempre que, os modos de operação da APS devem ser adaptados a cada contexto.

Destaco que, neste momento, faz-se necessário reforçar a atuação integrada das UBS/ equipes ESF com os territórios, com a comunidade e com os outros equipamentos sociais, tanto para reduzir o contágio nos territórios e prestar cuidado individual de casos suspeitos e confirmados de Covid-19 como para garantir a continuidade dos cuidados de rotina da AB. Em uma atuação das equipes da ESF, Saúde Bucal, NASF, Agente Comunitário de Saúde e agentes de endemias nos territórios. Experiências locais de organização da APS para o enfrentamento da Covid-19, em diversos municípios, sugerem que a atuação das equipes APS-AB na rede de enfrentamento à Covid-19 se organiza em quatro campos principais de ação integrados nos territórios, que devem ser reforçados neste momento: a vigilância em saúde; o cuidado aos usuários com Covid-19; a continuidade do cuidado ofertado pela APS; e a ação comunitária com apoio social.  

Na vigilância de saúde: As equipes ESF devem ser fortalecidas na sua atuação na vigilância de saúde nos territórios, em estreita cooperação com os setores de vigilância em saúde, para bloquear e reduzir o risco de expansão da epidemia, coordenando no território, ações de promoção e prevenção com ações de educação em saúde com identificação precoce de casos, testagem por RT PCR, rastreamento, busca ativa de contatos, apoio ao isolamento domiciliar de casos e à quarentena dos contatos, notificação de casos. 

Os ACS e Agentes de endemias devem ser acionados para atuar nos territórios, com EPIs adequados e capacitação específica, em visitas peridomiciliares com: 

- Ações de educação em saúde para prevenir contágios, explicando sobre o modo de transmissão respiratória, a necessidade e efetividade do uso de máscaras por todos, distanciamento físico, ficar em casa, lavar as mãos; 
- Para a busca ativa de casos suspeitos e encaminhamento precoce para cuidado e exame na UBS;
- Para rastrear os contatos, quer dizer, buscar identificar as pessoas com as quais os casos confirmados na UBS em sua área de atuação tiveram contato próximo, para que possa orientá-las a ficar de quarentena e identificar a necessidade de apoio para o isolamento  domiciliar/quarentena. Para esta vigilância, é necessário disponibilizar acesso ao teste RT PCR nas UBS para todos os casos suspeitos, com resultados em tempo oportuno. A testagem por RT-PCR é crucial, pois é o único teste que permite conhecer a doença no início, conhecer que a pessoa está transmitindo e, assim, permitir interromper o contágio pelo isolamento. Mas a testagem somente será efetiva se acompanhada por busca ativa dos contatos com o objetivo de identificar e isolar precocemente, quebrando a transmissão. E, certamente, informação transparente com notificação de casos diariamente. Muitas UBS, e o Centro de Saúde da ENSP foi exemplar no desenvolvimento de painéis próprios de informação sobre a Covid em seus territórios: Uma atuação em estreita cooperação com a vigilância em saúde dos municípios, identificando precocemente novos focos da doença e empreendendo reforço nas vigilância e controle.

Para estas ações, é necessário que as ESF sejam informadas de todos os casos de Covid em seu território diagnosticados por outros serviços, para que possam buscar contatos e cuidar/acompanhar seus cuidados e evolução. 

No cuidado individual dos casos suspeitos e casos não graves de Covid-19: Outra responsabilidade das equipes APS é o cuidado individual dos casos suspeitos e casos não graves de Covid-19, sendo necessário voltar a reorganizar fluxos separados de atenção para sintomáticos respiratórios/casos suspeitos para evitar contágios nas UBS. A APS deve garantir o cuidado dos pacientes com quadros leves e seu monitoramento cotidiano para apoio e observação da evolução da enfermidade, e garantir o encaminhamento oportuno daqueles que necessitem de cuidados de outros níveis de atenção; sendo também necessário fortalecer o transporte sanitário adequado. Este acompanhamento vem sendo realizado com telemonitoramento pela equipe de casos e contatos, tele atendimentos por vídeo, e disponibilizando telefone de contato das equipes para os usuários. Aqui o reforço na disponibilidade de celulares para as equipes e internet nas comunidades permanece crucial.

Na continuidade dos cuidados ofertados pela APS: Ao mesmo tempo, as atividades de rotina da APS, em grande parte já retomadas, precisam ser preservadas. Em outras epidemias se observou um excesso de mortes por outras causas que deixam de ser atendidas, que podem superar aquelas geradas pela própria doença. Processos estão sendo readequados, incluindo novas formas de cuidado cotidiano à distância. Contatar por telefone os pacientes pré-agendados, quando possível realizar teleconsulta com médicos ou enfermeiros da equipe são iniciativas sugeridas por experiências em curso, lembrando-se que, para alguns, serão mantidos atendimentos presenciais, assim como outras atividades de rotina, a exemplo da vacinação que precisa ser realizada sem expor a população ao risco de contágio. A chave é a UBS permanecer de portas abertas, atendendo aos casos necessários, mas com restrições, resolvendo o que for possível à distância e reduzindo os atendimentos presenciais. Os ACS podem apoiar famílias e acompanhar grupos por meio de visitas peridomiciliares. 

Na ação comunitária e apoio social a grupos vulneráveis: As equipes de APS devem oferecer suporte aos grupos mais fragilizados e vulneráveis que necessitam de atenção especial no contexto da epidemia, seja pela situação de saúde ou pela vulnerabilidade social, com papel importante dos Agente Comunitário de Saúde. É necessária a ação coordenada no território com as lideranças, instituições e organizações locais, articulando as ações implementadas pelas equipes com as iniciativas comunitárias para apoio social às populações em maior vulnerabilidade e para a educação em saúde. Para esta ação, ademais dos ACS, os profissionais das equipes do NASF podem ser acionados. A interação das equipes com movimentos sociais facilita o mapeamento e o apoio aos usuários de maior risco da Covid-19 (idosos, crônicos, pessoas em extrema pobreza ou com insegurança alimentar) para reforçar medidas preventivas e buscar garantir recursos para estabelecer as condições de permanência no domicílio (distanciamento social, quarentenas, isolamento de casos); para acionamento de redes sociais locais; para apoio na inscrição em programas sociais de transferência de renda, na distribuição de cestas básicas etc – a para possibilitar que as pessoas fiquem em casa, cumpram quarentenas. Esta articulação é crucial para a informação adequada potencializam recursos de comunicação coletiva existentes na comunidade tais como rádios comunitárias, grupos de mensagens, carro de som.

Nós, pesquisadores da ENSP, elaboramos em maio de 2020, para o Observatório Covid da Fiocruz, diretrizes para a atuação da APS no SUS com conjunto de recomendações que permanecem válidas e estão em detalhe.

O aumento de casos de Covid-19 provocou 'engarrafamento' de testes em laboratórios do RJ e SP. Quais são as principais falhas no que diz respeito à testagem e como ampliar a oferta de forma a atender essa crescente demanda?


Incialmente não havia disponibilidade de testes e insumos no mercado, mas, agora, o que vemos são graves problemas de logística e de baixo investimento para ampliação da capacidade pública laboratorial na realização de testes moleculares RT- PCR. Tenho reiterado, ao longo destes meses, que devemos nos preocupar com qual será o legado para o SUS deixado pelo enfrentamento desta pandemia. O setor de diagnósticos no país é altamente privatizado e mercantilizado; a capacidade pública própria do SUS não foi ampliada. Seria necessário ampliar e interiorizar a capacidade laboratorial pública para a realização dos testes RT PCR, cruciais para o diagnóstico oportuno e controle do contágio, como já mencionei.  Esta ampliação da capacidade ambulatorial pública seria um grande legado para o SUS.

A vigilância e o monitoramento ativos são fundamentais para o controle da doença. No entanto, não foi feito o suficiente nesses dois campos no primeiro momento da pandemia, conforme defendem alguns especialistas. O que é preciso fazer nessas áreas para enfrentar a retomada do aumento de casos no país?


A vigilância em saúde é certamente o aspecto que mais precisa ser reforçado nos territórios, em estreita cooperação com os setores de vigilância em saúde, como já comentei. As equipes ESF, por meio de busca ativa, podem identificar precocemente os casos, precisam testar por RT PCR, fazer rastreamento, isto é, busca ativa de contatos próximos. E, certamente, precisam, em articulação com a assistência social, outros setores da administração municipal e as organizações e lideranças comunitárias, encontrar formas de apoiar o isolamento domiciliar de casos e a quarentena dos contatos. Os ACS e Agentes de endemias devem ser acionados e podem dar uma contribuição fundamental nesta vigilância ativa, se disponibilizados EPIs adequados e capacitação específica.

Para finalizar, é necessário reconhecer o desafio que é este trabalho de vigilância da saúde para os profissionais das equipes, um trabalho muito delicado de informação, comunicação clara, afetuosa , sem autoritarismo, para conseguir a adesão das pessoas às medidas de controle, a usarem máscaras, a manterem o distanciamento físico e,  ainda mais desafiante, mais complexo, a fazer isolamento domiciliar mesmo com poucos sintomas, a realizarem suas quarentenas após ter tido contato próximo com casos confirmados, ou suspeito até o resultado dos exames. Estas ações exigem mudanças comportamentais, fundadas na boa informação, na solidariedade e na generosidade para com o outro. Adesão que é difícil para todas as pessoas, mas que é muito mais difícil para a população que vive sem boas condições de moradia, sem acesso ao saneamento básico, sem espaço para isolar-se ou que precisa a cada dia ganhar seu pão do dia.  Finalizo agradecendo o engajamento dos ACS, médicos e enfermeiros, de todos os profissionais da Atenção Básica pelo país afora na proteção da vida, apesar da sobrecarga de trabalho, das dificuldades por falta de insumos, insuficiência de EPI e capacitação.


Quer saber mais sobre APS e Covid-19? Acesse abaixo artigos de pesquisadores da ENSP sobre o tema:


- Medina Maria Guadalupe, Giovanella Lígia, Bousquat Aylene, Mendonça Maria Helena Magalhães de, Aquino Rosana. Atenção primária à saúde em tempos de COVID-19: o que fazer?. Cad. Saúde Pública  [Internet]. 2020  [cited  2020  Dec  02] ;  36( 8 ): e00149720. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2020000800502&lng=en.  Epub Aug 17, 2020.  https://doi.org/10.1590/0102-311x00149720

A contribuição da atenção primária à saúde na rede SUS de enfrentamento à Covid-19. Ligia Giovanella, Valentina Martufi, Diana Carolina Ruiz Mendoza, Maria  Helena Magalhães deMendonça, Aylene Emilia Moraes Bousquat, Rosana  Aquino Guimarães Pereira, Maria Guadalupe Medina DOI: 10.1590/SciELOPreprints.1286
 
- Giovanella Ligia, Medina Maria Guadalupe, Aquino Rosana, Bousquat Aylene. Negacionismo, desdém e mortes: notas sobre a atuação criminosa do governo federal brasileiro no enfrentamento da Covid-19. Saúde debate  [Internet]. 2020  Sep [cited  2020  Dec  02] ;  44( 126 ): 895-901. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042020000300895&lng=en.  Epub Nov 16, 2020.  http://dx.doi.org/10.1590/0103-1104202012623.



Acesse abaixo vídeos produzidos por pesquisadores da ENSP para oferecer informação a Agentes Comunitários de Saúde:


A importância do ACS na vigilância em saúde para o controle da pandemia de Covid-19 –  apresentado por Ligia Giovanella (Ensp/Fiocruz) 


- Vigilância Ativa na Covid-19 pelos Agentes de Saúde – apresentado por André Perissé (Ensp/Fiocruz) 


Confira aqui documento elaborado por pesquisadores da ENSP que explica a retomada da subida de casos de Covid-19 no Brasil.





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