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Pela garantia do direito à saúde, pesquisa produz conhecimento para qualificar o cuidado à pessoa com deficiência

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Publicado em:14/11/2023
Por Barbara Souza

Qualificar o cuidado à saúde das pessoas com deficiência é um dos muitos e importantes passos a serem dados no longo caminho pela garantia dos direitos dessa população invisibilizada. A pesquisa “Inequidades de saúde enfrentadas pelas pessoas com deficiência: cartografando barreiras aos direitos humanos para qualificar o cuidado” tem atuado nesse sentido. A iniciativa desenvolve e implementa conteúdos de caráter educativo e comunicacional acessíveis, constituídos a partir da identificação das lacunas assistenciais e da qualidade mapeadas na literatura, formuladas de forma participativa pelos principais interessados. “Tanto a atenção especializada como a primária estruturam-se essencialmente a partir do modelo biomédico da deficiência, incapaz de compreender o sujeito em sua integralidade”, critica Laís Costa.

O projeto é desenvolvido na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) e conta com recursos do Edital de Pesquisa lançado pela ENSP em 2021, no âmbito do Programa de Fomento ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico Aplicado à Saúde Pública. A coordenadora da pesquisa voltada para a saúde da pessoa com deficiência é a pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde (DAPS/ENSP) Laís Costa, junto da vice-coordenadora Maria Helena Mendonça, do mesmo departamento.

O referencial teórico da pesquisa se inspira na teoria crítica emancipatória e posiciona a noção de interseccionalidade no centro do debate. Foi justamente a soma dos dados recentes sobre a exclusão social da pessoa com deficiência no Brasil e seu recrudescimento quando se cruzam com marcadores étnico-raciais, por exemplo, que levou a pesquisa a estabelecer diversas parcerias. São parceiras do projeto iniciativas como o Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI), o Especiais da Maré e o Projeto Marias. Confira na entrevista com a pesquisadora Laís Costa mais detalhes sobre o projeto e conheça o material que já foi produzido como resultado de suas atividades.

O objetivo da pesquisa é qualificar o cuidado à saúde das PcD. Que lacunas pretendem preencher? Qual o cenário e o contexto em que se insere essa pesquisa?
Laís Costa: Pessoas com deficiência têm seus direitos humanos historicamente violados, entre eles o de saúde. Em que pese constituírem parcela significativa da população, configurarem um extrato populacional em crescimento - em função do envelhecimento populacional, das crises sanitárias, da ampliação das categorias que compõem o grupo, da violência, por exemplo –, e ocuparem os piores indicadores sociais, os cursos de graduação e programas de pós-graduação seguem alheios à existência desse extrato populacional e de suas necessidades de saúde. O processo de produção de cuidado ignora esse sujeito, negado em sua integralidade, marcando-se por estigmas, pelo desinteresse, e resultando em sua invisibilização nas ações universais e em suas necessidades específicas. O fato de serem destituídas de sua subjetividade e impedidas de acessar informações e cuidados resulta também em piores indicadores de satisfação com os serviços de saúde. A literatura pontua a inexistência e/ou insuficiência de iniciativas para a qualificação dos trabalhadores, bem como com a falta de acessibilidade e desumanização das pessoas com deficiência, como algumas das lacunas que vêm afastando essa parte da população de seus direitos à saúde. 

Na atenção primária, há barreiras à formação de vínculo, à resolutividade, à integralidade e à coordenação da atenção, marcando a fragmentação do atendimento e a precarização da qualidade com efeitos desproporcionais para essa população. A ausência de acolhimento, desconhecimento e barreiras relacionais interpelam o vínculo e geram obstáculos para a reorganização das ações. Além disso: as centrais de regulação são insuficientes para garantir o acesso e o cuidado matricial e o apoio diagnóstico e nos procedimentos/cirurgias é insuficiente. Mesmo quando há tecnologia assistiva ou serviço disponível no SUS, o desconhecimento não raro impede o acesso. A existência de dados recentes sobre a exclusão social da pessoa com deficiência no Brasil (PNS, 2021; IPEA, 2021; PNAD contínua pessoa com deficiência, 2023) e seu recrudescimento quando se justapõem marcadores étnico-raciais aos da deficiência, além de desvantagens adicionais à participação em função da heteronormatividade, pobreza e condição de deficiência intensificou na trajetória da pesquisa a tessitura de algumas parcerias, a exemplo daquela estabelecida com o Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI), com o Especiais da Maré, o Projeto Marias, e algumas organizações sociais estabelecidas em territórios precarizados, além das instituições empenhadas na redução de barreiras à participação vivenciadas por pessoas com deficiência intelectual, tendo também se aproximado do Acessibilindígena. 

O conhecimento até o momento constituído segue marcado por algumas ausências, sendo particularmente limitado na compreensão das determinações sociais que afetam pessoas em situação de rua com deficiência e pessoas com deficiência intelectual, psicossocial e com múltiplas deficiências. Nesse processo de tessitura, a partir das lacunas mapeadas, das demandas da sociedade civil, da necessidade de produzir conteúdo para desinvisibilizar as pessoas com deficiência nas ações e políticas universais, temos buscado avançar na produção de conhecimento sobre suas especificidades de saúde, produzir material acessível sobre essas necessidades, e promover eventos, seminários, além de participar de debates para problematização das barreiras ao efetivo exercício do direito à saúde por parte desse grupo de pessoas. (continua após a imagem)



Que tipo de conteúdo pretendem implementar para alcançar esse objetivo? Pode dar exemplos?
Laís Costa: Temos produzido debates mobilizando a interação entre gestores e trabalhadores de saúde, pesquisadores e organizações da sociedade civil, lecionado, participado de bancas e atuado em campanhas para o enfrentamento da corponormatividade na saúde, tal como das expressões do capacitismo na saúde. Além disso, temos produzido também guias sobre direitos e saúde sexual, cuidado menstrual, orientações para o ACS, e cartazes informativos. Há ainda outro material de combate ao capacitismo, que está em processo de depósito no Arca. 

O conhecimento produzido tem sido disseminado em podcasts, entrevistas, além de rodas de conversas, oficinas e roteiros para os vídeos para a estimulação precoce, de curta duração e acessível. Ademais, foram produzidos vídeo-relatos curtos, sobre lacunas assistenciais e sobre saúde e educação sexual. Participamos no Podcast sobre linguagem fácil e letramento em saúde para a Rede Brasileira de Letramento em Saúde (REBRALS) e no Webinar do Proqualis sobre “Desafios para o cuidado de pessoas com deficiência”. Também estivemos em live sobre Saúde, capacitismo e cuidado, parte do projeto “diálogos com a enfermagem: vivenciando a maternidade no trabalho”, coordenado pelo Nust, Campus Manguinhos da Fiocruz.

Realizamos também a oficina internacional “Pessoa com deficiência e saúde sexual: o que deveríamos estar fazendo” e oficina nacional sobre aleitamento materno inclusivo, e sobre a vivência da corporeidade com deficiência em território de favelas. Esses eventos propiciam encontros entre representantes da sociedade civil, da favela e do asfalto, pesquisadores e trabalhadores, para debate da temática, evitando invisibilizações adicionais e desconstruindo estereótipos. Além disso, participamos das edições de 2022 e 2023 da Semana de Ciência e Tecnologia da Fiocruz, para disseminação científica, educação popular e interação da temática com crianças de escolas públicas, tendo adaptado jogos lúdicos para tradução do material do guia e letramento em saúde da pessoa com deficiência. 

Vale mencionar, em particular, a realização da primeira Conferência Livre Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência, primeiro evento com esse mote na história do SUS, em articulação com outras instituições e unidades da Fiocruz; a participação no Podcast “Acessando Lucilia”, em abril de 2022, sobre Deficiência e Inclusão na Conferência Nacional de Saúde. Com participação de 1350 pessoas, de todos os estados brasileiros, além do Distrito Federal, produzimos junto a outros parceiros um debate racializado, cuidadoso com a representação da diversidade de pessoas com deficiencia, ouvindo pessoas indígenas, pessoas trans, e em situação de rua, além de pessoas com condições variadas de deficiência. Nessa Conferência foram eleitas quatro diretrizes para compor o Relatório final da 17ª CNS, e eleita delegação com dez titulares e 10 suplentes (18 delas com deficiência) para participar da CNS. Foi produzido pelo Cineasta Daniel Gonçalves o minidocumentário sobre a 1ª Conferência Nacional Livre de Saúde da pessoa com deficiência (1ª CNLS_PcD). Disponível aqui. Relatoria gráfica Digital da 1ª CLNS_PcD. Disponível aqui. Ainda no escopo da Conferência Nacional de Saúde, capitaneamos atividade autogestionada na 17ª CNS para discutir a Politica Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência e o Novo Viver sem Limite, atividade publicizada nesse Informe ENSP, em julho de 2023, em Brasília.

Que etapas da pesquisa já foram realizadas até o momento? Qual o status do projeto nesse momento?
Laís Costa: O projeto tem como objetivo geral qualificar o cuidado à saúde das PcD, implementando conteúdos educomunicacionais acessíveis constituídos a partir da cartografia das lacunas assistenciais e da qualidade mapeadas na literatura, formuladas de forma participativa. Para tanto, já avançou no mapeamento dos marcadores de iniquidade no acesso e na qualidade do cuidado de saúde no SUS, de forma participativa, o que está em etapa de sistematização, para revisão e validação. 

A localização dos marcadores de iniquidades na saúde mobilizados pela deficiência se beneficiou de dupla estratégia, a saber: a) levantamento da base bibliográfica para localização da determinação social mobilizada pela deficiência, reconhecendo, inclusive, que há condicionantes que afetam todos porém mais intensamente o público alvo; b) trajetória prévia de pesquisa e interlocução com movimentos da sociedade civil e mobilização da temática na 1ª Conferencia Livre Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência. Foram estabelecidas estratégias de educomunicação com atores-chave visando à integralidade da saúde das Pessoas com Deficiência; e produzidas informações, conteúdos e materiais voltados para a ressignificação social dessas pessoas e para a promoção e educação em saúde.

Foram selecionados textos de 2008 a 2021, nas bases Lilacs, Embase, Pubmed, Scopus e Web of Science e Google Scholar, que foram debatidos com pesquisadores, trabalhadores e gestores da saúde, pessoas com deficiência e lideranças dos movimentos sociais, em etapas simultâneas ao longo do ano. O referencial teórico se inspira na teoria crítica emancipatória e considera a centralidade da interseccionalidade para o entendimento das iniquidades de saúde mobilizadas pela deficiência e a proposição de políticas públicas. 

Quais são os próximos passos previstos no âmbito desta pesquisa?
Laís Costa: Precisamos finalizar o roteiro dos vídeos de estimulação precoce, para contatar os envolvidos na gravação para edição do audiovisual. Vamos ainda finalizar a sistematização dos tópicos a serem sugeridos para os vídeos sobre adolescência, para iniciar os debates que fomentam a elaboração dos roteiros. Também iniciaremos a revisão sobre os atravessamentos da corponormatividade na saúde da pessoa com deficiência adulta e no processo de envelhecimento. 

Quais contribuições o projeto de pesquisa deve trazer para a área de conhecimento na qual se insere e para a população invisibilizada que busca atender?
Laís Costa:  O projeto traz contribuições para o debate institucional para revisão e qualificação da formação de trabalhadores de saúde para o cuidado de populações vulnerabilizadas. Colabora no crescimento de oferta de disciplinas nos programas de Pós-Graduação de Saúde Pública da ENSP, lato e stricto sensu e na produção de conhecimento científico, considerando demais fontes de conhecimento, tendo como referência o modelo social da deficiência. O projeto pretende trabalhar em 4 frentes, consistentes com a vocalização da pauta da pessoa com deficiência na última conferência nacional de saúde, a saber: 
- Sistematizar e disseminar conteúdo sobre especificidades de saúde das pessoas com deficiência para qualificação de trabalhadores de saúde; 
- produzir conteúdo acessível para letramento em saúde por parte das pessoas com deficiência;
- participar de debates e de grupos de trabalho para a revisão / formulação das políticas que afetam a saúde e bem-estar das pessoas com deficiência;
- elaborar e disseminar conteúdo para o enfrentamento da corponormatividade e suas expressões na saúde da pessoa com deficiência. 


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