“Luta antirracista está só começando”: debate alerta para desafios na garantia do direito à saúde da população negra
Por Bruna Abinara Fonseca, Danielle Monteiro, João Guilherme Tuasco e Tatiane Vargas
Racismo institucional, violações à saúde da população negra, ausência de integração de políticas públicas e de inclusão em espaços de pesquisa e ensino. Ainda há um longo caminho a se percorrer para a garantia do direito à saúde da população negra. É a conclusão de especialistas que participaram do seminário Perspectivas e Desafios para Garantia do Acesso e da Equidade à Saúde da População Negra do Estado do Rio de Janeiro, realizado, nesta terça-feira (12/03), na ENSP.
Presente à mesa de abertura, o diretor da ENSP, Marco Menezes, enfatizou a importância do seminário no contexto de reconstrução do Brasil e atentou para a difícil conjuntura em que a iniciativa está inserida. Menezes alertou para a necessidade de avanços na defesa da democracia no país, por meio do fortalecimento da participação social, e citou a 17ª Conferência Nacional de Saúde como um dos maiores movimentos recentes de inclusão e diversidade, no qual foram apresentadas propostas para a efetiva implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, considerando o impacto do racismo estrutural.
O diretor da ENSP comentou sobre artigo recentemente publicado nos Cadernos de Saúde Pública, que aborda racismo e saúde e sinaliza necessidades de avanço no enfrentamento das iniquidades étnico-raciais. “As manchetes de jornais destacam que os mais atingidos pelas crises emergenciais sanitárias, como a dengue, são mulheres pretas e pardas. É nessa conjuntura que estamos falando das perspectivas e desafios para a garantia de acesso e equidade para a saúde da população negra”, destacou.
Em sua fala, Menezes também defendeu a integração de políticas públicas, citando, como exemplos, dois importantes debates: a Oficina de Construção do Projeto Político-Pedagógico do Curso de Aperfeiçoamento em Educação Popular em Saúde para o Cuidado da População em Situação de Rua, realizada nos dias 7 e 8 de março na ENSP, e a 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil Participativo, que aconteceu em dezembro do ano passado, em Brasília/DF, com o objetivo de apresentar propostas concretas para o enfrentamento da fome no país. “Integrar essas políticas é uma forma de pensarmos, transversalmente, a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, o que também é um desafio. Precisamos aprofundar o debate acerca dessa integração. Hoje é um dia importante para pensarmos propostas que, certamente, vão entrar nesse debate de forma importante”, afirmou. Por fim, Menezes destacou que o seminário é parte de uma série de ações nas quais a instituição pretende avançar. Ele também lembrou que a Escola tem um Grupo de Trabalho sobre Diversidade e Equidade e está alinhada à Política de Equidade Étnico-Racial e de Gênero da Fiocruz na busca pela integração dessas ações.
Em seguida, o assessor para Equidade Racial do Ministério da Saúde, Luís Eduardo Batista também pontuou que os últimos anos foram difíceis para a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, em função do recuo da sociedade no que diz respeito às questões étnico-raciais e da não inclusão do racismo como determinante social. “Isso impacta diretamente na implementação de políticas, não somente na da saúde da população negra, mas nas várias políticas de direitos, além de dificultar também a ação das políticas públicas. Esse é um desafio no qual só vamos conseguir avançar se universidades, sociedade civil e gestores conversarem e desenharem juntos, cada um com seu papel e suas especificidades”, defendeu.
Coordenadora de Equidade, Diversidade, Inclusão e Políticas Afirmativas (Cedipa/Fiocruz), Hilda Gomes salientou que o debate sobre a saúde da população negra envolve também a discussão sobre o racismo institucional. “A perspectiva (para garantia do acesso e da equidade à saúde da população negra) é que mais pessoas tenham interesse no tema, tanto do ponto de vista individual, quanto coletivo e profissional, pois é um tema que nos atravessa. E esse atravessamento traz adoecimento. Já avançamos no conceito de saúde, fundamentado na determinação social da saúde”, afirmou. Hilda também alertou para os diversos desafios que envolvem a saúde da população negra, citando, como exemplo, o caso, recentemente divulgado na imprensa, de uma idosa negra que foi retirada de sua própria moradia no Rio de Janeiro.
Vice-coordenadora da Superintendência de Ações Afirmativas e Acessibilidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Cecília Maria Pinto, iniciou sua fala destacando que a luta antirracista está apenas começando. “Não é uma guerra simples, deslocar privilégio gera muito desconforto. Quando deslocamos 20% das vagas e colocamos 11 mil pessoas pretas e pardas dentro da catedral da hegemonia branca não será fácil. Um país que orgulha de seu sistema de saúde não dá conta da qualidade para pessoas negras. Uma universidade que se orgulha da sua produção de conhecimento não tem uma produção latente dessa diversidade intelectual e cultural das pessoas negras. Ou um curso de medicina, que ainda coloca como eletiva as questões étnico-raciais, somente para ‘colorir’. Estamos longe, por isso, a luta está só começando”, observou.
Posteriormente, a superintendente de Atenção Primária em Saúde da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SES-RJ), Halene Silva, destacou que a criação de políticas públicas passa, necessariamente, pela consideração da questão racial como aspecto fundamental. Segundo a superintendente, não há mais espaço para chamar de ‘recorte temático’ o olhar para a população negra, uma vez que ela é maioria no Brasil. "Se, historicamente, não foi atribuída força política a esse grupo, a construção das ideias de racismo estrutural e equidade ao longo dos anos busca reverter esse quadro. Não se cria uma política pública sem força política e sem financiamento, senão vira uma grande utopia”, afirmou. Ao final, Halene reforçou a importância da participação de toda a sociedade na luta contra as desigualdades na saúde.
As violações à saúde negra e a falta de diálogo entre gestão pública e sociedade foram os temas abordados pela diretora-geral do Instituto Brasileiro de Lésbicas, Michele Seixas. “Para a população preta, e falo também do segmento LGBT+, as violações têm outros determinantes, têm outros agravos em saúde”, declarou. Segundo Michele, a população negra, em especial a feminina e a LGBT+, sempre foi considerada uma subcategoria populacional. Por isso, as diretrizes públicas de saúde não estabeleceram o atendimento a esses indivíduos como prioridade. Como agravante, ela afirma que as instituições públicas não estão em contato com as necessidades da população negra. A diretora defendeu o trabalho conjunto de movimentos sociais e gestão para a criação de políticas públicas efetivas.
Por fim, a coordenadora de pesquisa da ENSP/Fiocruz e organizadora do evento, Marly Cruz, destacou a importância de garantir diversidade em espaços de ensino e pesquisa, a fim de combater as desigualdades. “Estamos nos movimentando em lugares diferentes, mas estamos nos encontrando, o que é importante para criar força, sinergia e o movimento para enfrentar as adversidades que estão colocadas”, declarou. A professora reforçou que é preciso questionar os dados não ditos sobre a saúde da população negra, uma vez que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra existe, mas ainda não foi implementada devido à falta de recursos ou de interesse. Segundo Marly, é preciso uma ação colaborativa de defesa de direitos e do SUS para a população negra frente aos problemas de saúde relacionados ao racismo.
A implementação da Política Integral de Saúde da População Negra na perspectiva da gestão e dos movimentos sociais
O primeiro painel do seminário ‘Perspectivas e Desafios para Garantia do Acesso e da Equidade à Saúde da População Negra do Estado do Rio de Janeiro’ trouxe, para a discussão, a perspectiva da gestão e dos movimentos sociais sobre a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. O painel, mediado pela pesquisadora da ENSP, Roberta Gondim, contou com a participação de Lucia Xavier, coordenadora da ONG Criola; Andrey Lemos, pesquisador da Fiocruz Brasília; Luís Eduardo Batista, assessor para Políticas de Equidade no Ministério da Saúde; e André Luiz Silva, representando a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro.
Abrindo o painel Foco na implementação da política na perspectiva da gestão e dos movimentos sociais, Roberta Gondim reforçou a importância de ver o evento composto por uma plateia predominantemente negra, destacando o reconhecimento da premência da pauta e do esforço da Escola em apoiar o projeto ‘Avaliação de Implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População para a garantia do acesso e equidade no Estado do Rio de Janeiro’, financiado pelo Programa Inova ENSP. “É um prazer e uma honra, não apenas fazer parte do esforço que a ENSP vem fazendo ao longo dos últimos anos, mas, fundamentalmente, de fazer parte deste projeto que vai para além de uma pesquisa, pois, neste momento, o que importa realmente é a dimensão militante participativa de um esforço de análise de questões sociais. Não existe a menor possibilidade de estudarmos, entendermos e produzirmos saberes sobre as questões que nos afetam histórica e cotidianamente, sem nós”, pontuou Gondim.
A coordenadora geral da Organização não Governamental Criola, Lucia Xavier, uma das ativistas do movimento de mulheres negras mais atuantes do Brasil, destacou em sua fala a importância do esforço político da ENSP, por meio da pesquisa, de monitorar a Política Nacional de Saúde da População Negra, mas, também de se incorporar na luta constante da defesa dos direitos humanos da população negra. “A saúde é uma luta política fundamental, pois saúde é vida e sem saúde a gente não vive. A saúde é um assunto nefrálgico na luta das condições de vida da população negra. Pois, ela vai na escravidão e volta, até os dias atuais, com as mesmas perspectivas sobre o que estamos fazendo neste campo”, lamentou ela.
Para Lúcia Xavier, é fundamental abrir espaços para pensar estruturas e processos que ainda não foram pensados, exatamente pelo fato de que o racismo não é algo que termina somente pelo fato de atuarmos contra ele. “O racismo é uma estrutura mais difícil de derrubar do que um prédio, por exemplo, pois ele se constitui em diferentes espaços e complexos, que sempre dão a ideia de que demos um passo fundamental, mas, no dia seguinte percebemos que está tudo igual e com mais dificuldades. O que estamos fazendo aqui hoje é tudo que fizemos durante toda nossa vida política como movimento negro. Pois tudo que está construído até aqui foi com muito esforço dos movimentos negros, de mulheres negras e organizações negras, que foram desenhando todo esse caminho”.
A ativista pontuou ainda sobre seu lugar de fala, por meio da ONG Criola, organização que luta há mais de trinta anos pelos direitos da população negra, e que constituiu, juntamente com outras organizações e pensadores, o campo da saúde da população negra e o campo de saúde da mulher negra. Por fim, enfatizou que o racismo opera no sistema como um ente invisível. Segundo ela, todos os dias morrem pessoas negras em todos os momentos, por diferentes causas, mas os negros e negras são sempre mais atingidos. Ou seja, estamos concordando que é destino e não, necessariamente, uma irresponsabilidade do Estado, que tem o dever de responder por essas vidas perdidas.
“A gestão da saúde foi feita para brancos e pensada por brancos, não para negros. Está na hora de os negros dizerem como deve ser gerenciada essa saúde. Não adianta dizer que não que não temos equidade ou universalidade, que são princípios do SUS. O problema não são as palavras, é o modo de fazer. Precisamos interferir neste modo de fazer, pois estamos pensando igual ao branco, gerindo igual ao branco, e evitando a questão fundamental: que a prática do racismo no sistema seja questionada e revista como experiência. Essa gestão não pode ser vista assim”, concluiu ela.
O pesquisador da Fiocruz Brasília, Andrey Lemos, lembrou que o Sistema de Saúde traz desafios históricos desde sua criação, pois tem como princípio a universalidade de acesso e como garantir o acesso para todos num país desigual. Andrey, que é historiador, citou que os anos 90 tiveram um ganho muito importante para a saúde com o fortalecimento da presença dos movimentos sociais no controle social do SUS. Nesta mesma época, a defesa era sobre como fortalecer a participação, principalmente a partir da entrada dos movimentos negros e LGBT.
“E assim, ocupamos as primeiras cadeiras dos conselhos estaduais, municipais e nacionais, para, a partir daí ter uma perspectiva de como discutir a saúde integral dessas pessoas”, lembrou ele, completando que, naquele momento, ficou muito claro que era necessário olhar de forma integral para a saúde da população negra, mas que isso precisava levar em consideração os diversos recortes, como etário, de gênero, identidade de gênero, orientação sexual, classe social ou lugar de moradia, que atravessam essa população.
Representando a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, André Luiz Silva ressaltou a importância de fazer uma análise crítica do que foi esse conflito civilizatório que nos encontramos e que se reedita em cada momento histórico. “Faço essa análise para chegar nos desafios que encontramos atualmente para implantar a Política de Saúde da população negra, pois são práticas que influenciam até hoje o nosso sistema de saúde”. André lamentou, ainda, que as desigualdades sociais, principalmente a racial, não foram pauta da reforma sanitária.
“A política de saúde também reproduz o racismo. O racismo, por dentro do SUS, traz várias vertentes, entre elas, da formação, epistemicida e das práticas de saúde. Não é um mero racismo institucional que pode ser estendido para outros campos, pois no campo da saúde temos um desafio mais complexo para lidar. E se a política não consegue dialogar com outras políticas nos territórios e nos serviços, não será possível colocar em prática a Política de Saúde da população negra”, enfatizou ele.
Finalizando o painel, Luís Eduardo Batista, assessor para Políticas de Equidade no Ministério da Saúde, fez uma apresentação sobre o trabalho da Assessoria para Equidade Racial em Saúde. Como fazer ações de enfretamento ao racismo dentro de uma estrutura racista?, questionou o assessor. Para isso, as primeiras ações, segundo ele, foram pensar numa estrutura que dialogasse com os outros entes. “Desta forma, foi pensada a estruturação da Assessoria do Ministério da Saúde para Equidade Racial em Saúde, com a missão de estruturar, articular, desenvolver e monitorar ações de enfrentamento ao racismo institucional e a promoção de práticas antirracistas, induzindo a efetivação e o fortalecimento da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra”.
O assessor apresentou as seis diretrizes da PNSIPN e destacou que uma das tarefas da assessoria é fortalecer a implementação da Política exatamente a partir das suas diretrizes, pois é neste ponto que está o problema. Por fim, ele descreveu algumas estratégias de enfrentamento ao racismo dentro do Ministério da Saúde, que já foram realizadas e serão realizadas até setembro deste ano, entre elas: elaborar diretrizes e orientações sobre articulação institucional; identificar ações que já estão sendo realizadas nos 371 municípios que possuem Área Técnica; formação da equipe da Estratégia Antirracista; primeira oficina de elaboração de conteúdos e metodologias para a formação de trabalhadoras e trabalhadores do SUS no enfretamento ao racismo; e primeira oficina de formação e comunicação em saúde da população negra.
Desafios na implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra
No período da tarde, gestoras da saúde falaram sobre os desafios na implementação da PNSIPN no Rio de Janeiro. A assistente social Zaira Costa, ex-presidente do Conselho Estadual de Saúde, apresentou relatos de sofrimento dos usuários negros em serviços de pronto-atendimento, enfatizando o racismo que gera negligência e resistência dos profissionais para realizar o tratamento correto. Segundo ela, a dor dos pacientes que têm Doença Falciforme é subestimada ou invalidada. “Desumano”, pontuou.
Cintia Nery, da Rede de Hospitais Federais do Rio, destacou que é indispensável que existam equipes “acompanhando o cuidado que está sendo ofertado, com o refinamento de olhar para que se proponha mudanças no cotidiano institucional”. Em 2017, Cíntia percebeu uma lacuna de ações da política de saúde negra nos hospitais federais da cidade e, a partir de Bonsucesso, expandiu o conhecimento das diretrizes da política para outras unidades.
A necessidade de capacitação profissional foi o argumento principal da fala da coordenadora do Programa Municipal de Atenção Integral à Saúde da População Negra de São Gonçalo, Belmira Rodrigues. “O segredo é capacitação. Não adianta nada implantar o programa sem capacitar todas as redes do seu município”, afirmou. Ela também comentou sobre a falta da coleta de dados do quesito raça-cor, abordado também por Cristiane Vicente, da Secretaria Municipal de Saúde do Rio. Cristiane apresentou os eixos e temas prioritários do programa municipal, como cuidar da saúde de povos de terreiros, quilombos e da população LGBTQIAPN+, além de colaborar para a experiência do usuário, auxiliando-o no processo de autoidentificação. Outros objetivos são reduzir níveis de mortalidade materna, infantil e por violências ou acidentes; melhorar o atendimento a pacientes com doença falciforme e doenças crônicas transmissíveis; e promover saúde mental.
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