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“EAD não tem aula remota” - Entrevista com Mauricio De Seta, coordenador do Desenvolvimento Educacional e Educação a Distância da ENSP

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Publicado em:29/11/2023


“Não acho que seria correto afirmar que a educação a distância no país, ou no mundo, viveu um grande boom durante a pandemia de covid-19. Eu acho que aumentou a confusão sobre o que é a modalidade EAD”, contou Mauricio De Seta, coordenador do Desenvolvimento Educacional e Educação a Distância da ENSP, em entrevista ao Informe ENSP sobre os 25 anos dessa modalidade de ensino na Escola, comemorada nos dias 27 e 28 de novembro. Ele explicou que “EAD não tem aula remota”, e falou das histórias, do grande alcance do formato e da necessidade de ir ainda mais além, “para não gerar novos excluídos”. Os objetivos, de acordo com ele, são  transformar os serviços, produzir formação com humanização para o trabalho em saúde, da gestão até a ponta do sistema.


1. A Educação a Distância na ENSP está completando 25 anos. Pode nos contar um pouco da história dessa modalidade na ENSP?

A modalidade EAD na ENSP se inicia em 1998, com a criação do programa de educação a distância, o PROEAD. Nessa época, não funcionava como um setor oficial, no sentido de estar formalizado no regimento, mas era construído como um programa, que deu início a uma série de cursos. Em 2001, tivemos um grande programa, o PROFAE (Formação Pedagógica de Enfermeiros Docentes), que alavancou uma série de processos na Escola. Um curso de especialização que possibilitou que, depois, esses enfermeiros apoiassem a formação de um número grande de auxiliares de enfermagem em todo o país, em 45 instituições conveniadas. O nosso curso possibilitou a formação de 13 mil profissionais. 

Esses números projetaram a modalidade EAD na ENSP, que precisava se profissionalizar não só em relação aos seus processos pedagógicos, tecnológicos, mas também organizacionais. Posteriormente fomos colocando esses processos de gestão acadêmica ou a infraestrutura tecnológica do setor EAD para “dentro” da ENSP, e até hoje estamos descentralizando algumas coisas da infraestrutura de TI, que serviam à modalidade EAD, para dentro da COGETIC. Foi um desafio fazer EAD numa época em que a infraestrutura tecnológica não estava tão amadurecida. Foi bastante complexo em termos de gestão. 

No ano seguinte ao PROFAE, 2002, tivemos o credenciamento da ENSP por uma portaria do MEC para ofertas de pós-graduação lato sensu (especialização) a distância por um período de cinco anos, como é de praxe nos credenciamentos. Tivemos em 2002 também cooperação técnica internacional para modalidade EAD com países africanos de língua oficial portuguesa. 

Em 2004 se abriu um leque de possibilidades, poia a parceria da Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde do Ministério da Saúde tinha como alguns dos seus objetivos estimular, promover e financiar a formação e qualificação da força de trabalho em saúde de uma forma bastante ampla. A ENSP durante este ano ofereceu 6.000 vagas de formação de facilitadores de educação permanente em saúde, por exemplo, para alunos em todo o território nacional. 

Em 2006, eu destaco a parceria com a Universidade Aberta do Brasil, parceria com órgão do MEC que até hoje mantemos. Em 2007 nós tivemos uma parceria com a Editora Fiocruz que abriu outras portas, porque os autores dos materiais didáticos acabaram sendo valorizados por produzir livros didáticos com o selo da Editora, e isso perdura até hoje também. 

Foi instituída em 2007 a Coordenação de Educação a Distância, por meio de portaria da ENSP. Em 2008, a oferta de cursos, como membro da Universidade Aberta do Brasil, iniciou em mais de 20 polos pelo país.Também em 2008 nós tivemos o recredenciamento da ENSP para oferta de cursos de educação a distância.

Em 2009/2010 nós tivemos a implementação do curso de qualificação de gestores, com duas oferta que totalizaram 15 mil vagas. Esses números são importantes, porque a escala indicava um incremtona média de vagas ofertadas. Em 2013 nós tínhamos 15 aproximadamente mil alunos, simultaneamente participando de mais de 20 cursos, fazendo com que a operação do setor fosse muito complexa. Porque, além disso estávamos preparando outras tantas iniciativas, então eu diria que essa foi a época do auge das ofertas educacionais. 

A partir de 2015 foi institucionalizada a Coordenação de Desenvolvimento Educacional e Educação a Distância, com o novo regimento da ENSP, que continua até hoje. Começamos, assim, a intensificar uma série de outras atividades, aproveitando a experiência na modalidade EAD, para cuidar também do desenvolvimento educacional como um todo, protagonizando estes processos e apoiando a capacitação e a formação de docentes. 

2. Quais são os desafios específicos dessa modalidade na área da Saúde Pública? A desigualdade no acesso à tecnologia e infraestrutura num país como o Brasil é um desses desafios? O sr. diria que o acesso à tecnologia ajuda a reduzir as desigualdades na educação e na saúde? 

Na formação profissional, trabalhar com adultos que já estão atuando na saúde pública significa trazer para o curso os problemas do dia a dia que eles enfrentam no campo da atuação dele para que essas questões sejam confrontadas com experiências entre diferentes regiões do país, por exemplo. É uma troca rica, em que soluções são pensadas confrontando-as com o material acadêmico, com os teóricos da área.

O que eu considero mais gratificante é conseguir trabalhar com educação de qualidade, nessa escala - que eu considero ainda aquém das necessidades do país em termos de amplitude, alcance e frequência das ofertas. Há uma grande necessidade de atualizações na atualização profissional, há questões estruturais importantes para serem resolvidas, questões da contemporaneidade, na saúde particularmente, também… isso tudo faz com que se apresente uma série de desafios. Conseguimos fazer nesta escala, com a frequência que fazemos, os grandes projetos da formação em saúde com alcance nacional, mantendo a qualidade educacional. 


3. E quais são os aspectos que considera mais gratificante, ou com resultados mais visíveis?

Nos primórdios era muito difícil as pessoas entenderem que era possível fazer mais, com alcance de maior número de alunos, mantendo a qualidade. Eu até entendo, porque, no mercado educacional, uma parte significativa das ofertas da rede privada acabam automatizando muitos processos. E vários processos ditos “educacionais”, de educacionais não têm nada. O que tem é a massificação de uma abordagem conteudista. Pensando na mudança de comportamento do sujeito, para que ele transforme o mundo em que ele vive, e transforme as condições de vida e de saúde da população, precisa muito mais do que oferecer muito conteúdo. Não podemos deixar de trabalhar as soft skills, as habilidades transversais, ou habilidades leves, e isso é mais do que "saber" e “saber fazer”. Isso a gente tem conseguido fazer na educação a distância na ENSP.

É importante mencionar que, além da formação de dezenas de milhares de profissionais, em cursos de especialização, atualização, aperfeiçoamento, formação continuada…, nós também formamos os docentes tutores. Foram 2.500 aproximadamente nesses 25 anos. Vários retornam para serem tutores em outras ofertas de outros cursos nossos. Eles estão atuando também em outras instituições públicas e privadas, levando um pouco do “DNA” da ENSP. Ver esses profissionais que passaram pela nossa formação desenvolvendo essa expertise, atuando no dia a dia em outros cursos em diversas instituições também é gratificante. Conseguimos assim levar um pouco do trabalho que a gente aposta ser de valorização da educação e da formação em saúde através desses profissionais também formados aqui.

4. Podemos dizer que a EAD viveu um grande “boom” durante a pandemia de covid-19? Quais as principais lições e aprendizados foi possível tirar desse período tão conturbado? Podemos dizer que a EAD de um modo geral se fortaleceu? E na ENSP, é possível dizer que essa modalidade cumpriu bem o seu papel?

Não acho que seria correto afirmar que a modalidade EAD no país, ou no mundo, teve um grande boom durante a pandemia de covid-19.  Eu acho que aumentou a confusão sobre o que é a modalidade EAD. É importante frisar isso porque há muita confusão ainda. O que de fato ocorreu durante a pandemia foi que as instituições tiveram que adaptar seus cursos, planejados para serem presenciais, para que eles pudessem acontecer de forma remota. Aqui na ENSP nós contamos com a experiência de equipes que atuam na modalidade EAD, no desenvolvimento de projetos e de materiais educativos. Nós aproveitamos essa expertise, e conseguimos fazer essa adaptação de forma relativamente rápida. A grande maioria dos cursos não interrompeu o semestre, porque continuamos fazendo a oferta das disciplinas dos cursos que eram presenciais, então, de forma remota. 

Essa adaptação não se resume a fazer a aula que era presencial através de ferramentas de webconferência. No mercado educacional, de um modo geral, as aulas presenciais foram “transformadas” em aula remota. No EAD não tem aula remota. Pode até ter alguma atividade síncrona - uma conferência, ou uma uma palestra - mas tem uma série de atividades que são para ser desenvolvidas de forma assíncrona a partir de uma atividade da qual o aluno participou de forma remota ou de algum momento presencial. 

Então, nós continuamos a ofertar os nossos cursos durante a pandemia. Mas não dá para dizer que cursos presenciais “passaram a ser EAD”. Os processos educacionais foram muito impactados. Houve muita comunicação remota e momentos que precisamos nos reunir de forma remota/síncrona. O remoto não é uma modalidade de ensino, segundo a legislação. A modalidade, na norma, é a EAD. O que chamam de híbrido não é uma modalidade. Pode haver curso à distância com atividades presenciais, o que muitas vezes é chamado de híbrido. O que vivemos durante a pandemia fez com que foosse reduzida uma certa resistência com a modalidade EAD,  na percepção da sociedade, dos docentes, dos alunos, enfim, percebeu-se que é possível trabalhar assim. Houve essa série de confusões entre o que é EAD, remoto, híbrido, mas vencemos aquela resistência em muitos aspectos e tiramos disso muitos aprendizados. 

Não acho que a modalidade EAD tenha se fortalecido por causa da pandemia. Inclusive as confusões em torno do que é EAD estão fazendo com que o MEC abra uma consulta pública sobre algumas graduações, porque a modalidade EAD não pode ser utilizada indiscriminadamente. Existem atividades na graduação que não dá para se fazer à distância. Tem atividades práticas, atividades de campo, oficinas, atividades supervisionadas, enfim, necessidades educacionais que precisam ser atendidas em atividades presenciais. O que a gente percebeu que já estava acontecendo antes da pandemia, e que o período da pandemia reforçou, foi uma certa  ideia de que daria para fazer tudo a distância, mas não é assim. 

Na ENSP, o retorno que temos tido é que o adensamento da modalidade EAD tme ajudado a Escola a fortalecer também os cursos da modalidade presencial e atuação dos docentes nos cursos.   

5. Quais os grandes desafios e perspectivas para a EAD na Escola daqui para frente?

Temos algumas questões da contemporaneidade que precisamos explorar, como a utilização da inteligência artificial para a educação. Temos a intensificação das discussões relacionadas a gênero, raça, etnia. Temos atuado muito para que os alunos com deficiência possam ampliar seus acessos a processos formativos, com a ajuda de recursos tecnológicos… Não adianta só usar a experiência do passado, temos muita coisa a desenvolver relacionadas com essas questões. 

Os desafios para modalidade EAD na ENSP estão relacionados a uma perspectiva educacional, mas também relacionados ao setor que cuida da EAD. Sobre o desafio educacional, posso dizer que temos situações atuais sérias na educação em geral, temos tido nos últimos anos uma diminuição do número de inscritos, um aumento da evasão, em todos os lugares, talvez por conta do baixo investimento na educação do país nos últimos anos. Esse problema, acredito, foi agravado pela pandemia, mas certamente não foi esse o principal fator. Isso faz com que a gente precise recuperar a vontade de estudar, dos jovens também, mas do trabalhador da saúde, principalmente. É importante que o trabalhador da saúde recupere essa percepção de que precisa investir na sua formação, e os gestores precisam liberar tempo e recursos para a educação permanente em saúde. 

A modalidade EAD pode ajudar a trabalhar temas contemporâneos que precisam entrar nos processos formativos como as questões das mudanças climáticas - um dos temas em que há urgência em se trabalhar - para preparar o trabalhador para lidar com os impactos na saúde. Há também as tecnologias digitais de informação e comunicação. Temos visto o quão maléfico é quando o indivíduo, o trabalhador, enfim, não está preparado para lidar com isso, e aí as redes sociais ganham mais força para influenciar uma posição dos indivíduos do que os processos formativos. Dependendo da forma como são utilizados estes recursos, essas redes sociais, o trabalhador pode até ser induzido a desempenhar mal o seu trabalho em saúde. 

A gente tem visto isso. O processo democrático foi muito abalado nos últimos anos, e há grupos na educação que trabalham isso na graduação das instituições públicas, no ciclo básico.  

A gente percebe também, felizmente, um crescimento recente, aos poucos, da demanda por formação, eu diria que ainda de baixa intensidade, mas é o caminho que se desenha.

Um outro desafio é que nós perdemos muitos profissionais que tinham uma alta expertise na área de tecnologia educacional para a modalidade EAD, na elaboração de materiais, e nós não conseguimos formar rapidamente esse profissional. Depois de um processo seletivo, ainda leva um tempo até que compreendam o trabalho em formação a distância específico de uma instituição pública na área da saúde, e essa alta rotatividade é ruim. Os profissionais estavam trabalhando com projetos que eram provisórios, e eu observo que o grau de profissionalização e institucionalização da EAD precisa aumentar e se consolidar.  

Há 25 anos nós tínhamos que montar os projetos com os recursos de quem nos demandava - o Ministério da Saúde, por exemplo.  Hoje em dia nós precisamos concluir esse processo, precisamos continuar investindo. Apesar do alto interesse institucional, nós tivemos um desinvestimento, vamos chamar assim, na saúde, na educação, passamos apertos orçamentários na Fiocruz e no país. 
E agora, para desenvolver grandes projetos, nós temos que ter um grupo fixo de profissionais para poder desenvolver expertise com eles, para que possamos utilizar a expertise da modalidade EAD em outras áreas e atividades educacionais.   
 
6. Como é para o sr.  coordenar este segmento? Há quanto tempo o sr. está na coordenação?

Estou à frente desse trabalho na coordenação de Desenvolvimento Educacional e Educação a Distância há 6 anos.  É gratificante trabalhar com pessoas engajadas na causa da educação tanto quanto os profissionais da ENSP são engajados nas causas da saúde coletiva historicamente. E,  particularmente na modalidade EAD, é gratificantefazer formação em larga escala. Exige uma série de atividades de várias equipes com expertises diferentes na área de tecnologia, na área educacional, na área de design de materiais, na formação docente, na avaliação desses processos, sempre de uma forma bastante integrada, convergindo num curso de qualidade


7. Quais são os destaques do evento comemorativo de 25 anos do EAD na ENSP e porque o sr. diria que é importante celebrar esse momento?

Já tivemos o evento, com uma mesa de discussão sobre a história da modalidade, durante as comemorações do aniversário de 69 anos da ENSP. Eu destaco no evento dos dias 27 e 28/11 a mostra da modalidade EAD em uma tenda no pátio da ENSP. Nessa mostra, a gente apresenta o trabalho do ponto de vista do coordenador do curso, dos departamentos, dos alunos e alguns materiais educativos.  

O evento, que ficará gravado no canal do Youtube da Coordenação de Desenvolvimento Educacional e EAD (CDEAD/ENSP), traz quatro mesas de debate. No primeiro dia, com convidados externos sobre o estado da arte da modalidade EAD, do ponto de vista do uso das tecnologias, e, à tarde, a experiência sobre EAD do ponto de vista dos docentes-tutores. No segundo dia, as contribuições da EAD/ENSP para a implementação e consolidação de políticas públicas. Na tarde do dia 28/11, quarta-feira, destaco os relatos dos alunos egressos, que produziram intervenções diretas na realidade, transformando o trabalho deles, com experiências que tiveram repercussão. 

Entendemos que muita coisa deu certo, mas  temos também uma autocrítica sobre o que fizemos e o que precisamos melhorar. Eu diria que o EAD da ENSP faz parte de uma boa safra, de um momento profícuo do SUS, que se traduziu em projetos exitosos que a gente precisa celebrar. (E.B.)


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