ENSP recebe seus novos alunos debatendo ‘Diversidade, Equidade e Inclusão’
As atividades de celebração da abertura do ano letivo da ENSP contaram com um importante debate sobre ‘Desigualdade, Diversidade e Inclusão’. O evento proporcionou uma reflexão profunda sobre as desigualdades sociais e raciais, com a participação de figuras como Jamile Borges, da UFBA; Maria Alice Rezende Gonçalves, da UERJ; e Gersem Baniwa, da UnB. As discussões trouxeram à tona questões urgentes sobre como as estruturas de poder e as práticas coloniais ainda afetam as populações vulneráveis no Brasil e em outras partes do mundo. O debate foi moderado pelo coordenador-geral do Lato Sensu e Qualificação Profissional da Escola, Gideon Borges.
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Novos apartheids no velho Brasil: pobreza, racismo e democracia
Em um discurso reflexivo e contundente, a antropóloga Jamile Borges destacou as formas persistentes de segregação e exclusão que ainda marcam o Brasil contemporâneo, especialmente as que afetam as populações negras. Ela abordou o conceito de “apartheid planetário”, evidenciando como as cidades se tornaram espaços de confinamento para as camadas sociais mais vulneráveis, refletindo políticas neoliberais que, em vez de promoverem igualdade, intensificam as divisões sociais.
Borges também ressaltou a importância simbólica do movimento dos “rolezinhos”, ocorrido em 2013, quando jovens das periferias, ao se reunirem em shoppings, desafiaram as normas sociais e políticas de exclusão. “Aquela mobilização mostrou como o espaço urbano, muitas vezes, serve como um mecanismo de controle social, restringindo o acesso de grupos marginalizados à participação plena na sociedade”, alertou.
A crítica de Borges não se limitou ao racismo e à desigualdade social, mas também se estendeu à atuação do Estado, suas políticas públicas e o papel da segurança pública na marginalização dessas populações. Ao discutir as políticas de habitação e segurança, a antropóloga sugeriu que é imperativo refletir sobre o papel das instituições na perpetuação da desigualdade. "Esse tipo de debate é essencial para entender os desafios que ainda existem na construção de uma sociedade verdadeiramente inclusiva", afirmou
Borges também questionou a estrutura das cidades brasileiras, que, sob a perspectiva da gentrificação, se transformam em espaços de exclusão. “A exclusão social, muitas vezes impulsionada pelo mercado imobiliário e por políticas públicas, coloca as populações mais vulneráveis em uma posição de permanente marginalização, seja pela precarização da moradia ou pela criminalização de suas existências”, explicou.
Outro ponto crucial de sua crítica foi o fenômeno do "turismo de favela", que transforma a miséria em espetáculo para turistas estrangeiros. Nesse contexto, as favelas, em vez de serem vistas como reflexos da desigualdade estrutural do país, são transformadas em atrações turísticas, oferecendo "exoticismo" e "sofrimento" como experiências consumíveis, mascarando as causas profundas da pobreza e da violência institucional.
Ao falar sobre a arquitetura hostil, Borges apontou como as cidades, em vez de serem espaços inclusivos, estão cada vez mais desenhadas para excluir. Elementos urbanos, como bancos projetados para impedir a permanência de pessoas nas praças ou barreiras arquitetônicas para afastar moradores de rua, são exemplos claros de como a cidade moderna cria formas sutis e agressivas de segregação. Essas práticas refletem um racismo estrutural profundo, que não só marginaliza, mas também expõe populações vulneráveis ao risco de extermínio, especialmente as negras e periféricas.
Por fim, Jamile propôs uma reflexão sobre os horizontes possíveis de um futuro utópico, onde as desigualdades estruturais do Brasil sejam finalmente enfrentadas. Para ela, é necessário criar formas de resistência e engajamento, baseadas em uma visão crítica e inclusiva da cidade e da sociedade. Desafios esses que, em um país como o Brasil, onde ainda ecoam as marcas do colonialismo e da escravidão, exigem um compromisso contínuo com a justiça social e a construção de uma democracia radicalmente inclusiva.
“Este discurso não só denuncia as persistentes formas de apartheid que segregam as populações mais vulneráveis, mas também lança um olhar crítico sobre as novas tecnologias de exclusão que permeiam as cidades e a sociedade brasileira”, afirmou a professora. Com uma abordagem direta e incisiva, Jamile Borges nos convida a repensar o Brasil, não apenas como ele é, mas como ele poderia ser, caso decidíssemos enfrentar e superar as desigualdades históricas e estruturais que ainda o definem.
A importância das ações afirmativas para a inclusão racial nas universidades
A professora Maria Alice Rezende Gonçalves, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), trouxe uma reflexão contundente sobre as ações afirmativas e seu papel crucial na inclusão de grupos historicamente sub-representados, especialmente negros e pardos, no ensino superior. Sua fala, marcada pela experiência tanto como docente quanto como ex-aluna da UERJ, abordou a trajetória dessas políticas, destacando as mudanças significativas das últimas décadas.
Iniciando sua participação com um agradecimento pela oportunidade de debater o tema, Maria Alice destacou a evolução das universidades, ressaltando a UERJ e a Universidade Estadual da Bahia como pioneiras na implementação das ações afirmativas. Ela sublinhou que, apesar do aumento da presença de negros e pardos na população brasileira, as desigualdades raciais continuam sendo um obstáculo persistente, especialmente na educação e no mercado de trabalho.
A professora discutiu a importância das políticas públicas de ações afirmativas como uma solução do governo para enfrentar as desigualdades estruturais e raciais do país. Citando dados do IBGE, ela evidenciou o aumento da autodeclaração de negros e pardos ao longo dos anos, apontando que essas políticas não apenas ampliaram a representação da população negra nas universidades, mas também contribuíram para o empoderamento social, proporcionando maior acesso à educação e ao mercado de trabalho.
Maria Alice observou ainda que, nas últimas duas décadas, as universidades brasileiras, como a UERJ, passaram a refletir as transformações da sociedade, com um corpo discente mais representativo. Essa mudança resultou, segundo ela, em um letramento racial crítico nos estudantes, transformando a forma como os alunos se percebem em relação à sua identidade, suas lutas e seus direitos. No entanto, a professora também destacou as dificuldades enfrentadas por esses estudantes, como a busca por bolsas de permanência e as tensões causadas pelo confronto entre a consciência racial adquirida pelos alunos e as estruturas tradicionais das universidades.
A fala de Maria Alice também refletiu sobre o impacto das ações afirmativas como um modelo de inclusão social que visa à reparação histórica e à criação de uma sociedade mais equitativa, especialmente em espaços anteriormente dominados por elites brancas. "Hoje, muitos estudantes se identificam com orgulho como negros ou pretos, algo impensável há algumas décadas, quando a palavra 'preto' carregava um estigma profundo", disse a professora.
Concluindo sua participação, Maria Alice enfatizou que a luta por uma sociedade mais justa e democrática, livre do racismo, está intimamente ligada à consolidação das ações afirmativas e ao fortalecimento de uma educação inclusiva como base para a construção de um futuro mais igualitário.
A diversidade como essência da vida
Por fim, o professor da Universidade de Brasília e líder e fundador do Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena (FNEEI), Gersem Baniwa, iniciou agradecendo a oportunidade e a presença de colegas de mesa, em sua língua paterna. Nascido e criado nas tradições indígenas, ele ressaltou a importância de repensar a diversidade a partir da perspectiva das cosmologias indígenas.
"Por que a diversidade incomoda tanto a sociedade? Por que a felicidade é tão hostilizada?" questionou Gersem, que, com quase 40 anos dedicados à luta pelos povos indígenas e pela educação, compartilhou reflexões sobre sua experiência de vida. Sua formação em filosofia e antropologia, aliada à vivência direta com as culturas indígenas, moldou suas ideias sobre a aceitação da diversidade.
Gersem destacou que, nas culturas indígenas, a diversidade não é apenas uma característica humana, mas uma condição essencial para a existência do mundo. "A diversidade é natural, é uma condição de existência do próprio mundo. Não seria possível pensar em um mundo sem ela", afirmou, fazendo uma crítica à visão homogênea que ainda predomina na sociedade ocidental.
Ele contrastou esse entendimento com a história europeia, que, segundo ele, está baseada na ideia de homogeneidade. A narrativa bíblica de Adão e Eva, por exemplo, sugere uma origem única para a humanidade, um conceito que, para Gersem, ainda permeia a estrutura do pensamento moderno, especialmente no campo da ciência, que frequentemente ignora e desvaloriza outros saberes.
A crítica foi além: o Estado moderno, para Gersem, se fundamenta nessa visão homogênea, com a ciência como seu pilar. "A ciência, muitas vezes vista como neutra e objetiva, carrega consigo um pensamento colonial que exclui os saberes das culturas indígenas", apontou. Para ele, é urgente uma transformação do pensamento que permita a integração de conhecimentos tradicionais com os acadêmicos.
Em suas palavras, a resistência em aceitar a diversidade tem implicações profundas, não apenas para as relações sociais, mas para a própria sustentabilidade do planeta. "A diversidade é uma condição essencial para a continuidade da vida, tanto humana quanto não-humana. Precisamos repensar nosso modelo de civilização", defendeu.
Gersem concluiu com um chamado à educação como agente de mudança. "As universidades e escolas precisam ser lugares onde todos os saberes sejam respeitados e valorizados, para que possamos construir um futuro mais justo e sustentável", finalizou, destacando a necessidade de uma educação intercultural que reconheça a riqueza dos conhecimentos ancestrais.