Aula inaugural 2025: Sonia Fleury defende esperança contra incertezas diante das ameaças à democracia
Por Barbara Souza
Apesar de ter mergulhado nas ameaças à democracia num mundo de incertezas, insegurança e medo, a aula que abriu o ano letivo de 2025 da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) foi um convite à esperança. “Nossas ideias são muito racionais. Quais afetos estamos oferecendo? Podemos transmitir esperança de mudar esse mundo, criar outro mundo mais solidário, de construir o comum”, defendeu Sonia Fleury, convidada que ministrou a aula inaugural.
Doutora em Ciência Política, ela explicou como a extrema-direita tem mobilizado ódio a partir das incertezas que permeiam a sociedade e ameaçam a democracia. “O conservadorismo se uniu ao neoliberalismo e se apropriou desse sentimento de medo, que pode ser transformado rapidamente em ódio quando canalizado para uma política de ultradireira. Falta à esquerda se apropriar disso de forma construtiva. O que nós fazemos para diminuir as inseguranças das pessoas? Eu acho que muito pouco”, provocou Sonia Fleury, que também é coordenadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco.
Ao analisar a conjuntura política mundial, marcada por falta de perspectivas e por insegurança econômica e social, Fleury destacou que “o mundo não é mais o mesmo depois de Trump ”. Ao se referir ao presidente dos Estados Unidos, ela destacou a saída do país da OMS e do Acordo de Paris. “O desmonte já era esperado, mas não nessa velocidade. Qual a diferença entre ditadura e populismo autocrático? É que não há golpe militar. Hoje, o poder não é mais transformado por ruptura, mas sim por um líder populista que se coloca como representante do povo e é eleito democraticamente para destruir o Estado e a democracia”, resumiu.
Além do enfraquecimento da democracia, Sonia Fleury falou dos prejuízos à saúde e ao meio ambiente, destacando a previsão de novas pandemias. A convidada abordou ainda as possibilidades e alternativas para o Brasil nesse cenário, com foco no potencial de liderança regional do país. Além disso, ela contou um pouco da história da reforma sanitária e da construção do SUS. A aula inaugural “Ameaças à democracia no contexto de incertezas globais” foi realizada nesta segunda-feira (10/3) no auditório da ENSP e está disponível na íntegra no YouTube. Leia outros destaques da aula magna após a foto.

Capitalismo canibal e ideologia do empreendedorismo
“O capitalismo, se em algum momento se associou à democracia, foi da crise de 1930 até os anos 1970, quando havia visão social-democrata, de direitos, de distribuição, equidade… Mas, a partir da crise do próprio capitalismo, essa dissociação com a democracia chegou a um ponto quase irreversível. É uma questão central da conjuntura de hoje”, introduziu Sonia Fleury ao abordar as transformações das últimas décadas. Para explicar o contexto, a pesquisadora citou a ideia de Nancy Fraser de “capitalismo canibal”, que “devora as condições das quais ele próprio precisa”, como resumiu.
Fleury ressaltou que, apesar de depender do acúmulo de recursos naturais e do trabalho não pago das mulheres, o próprio sistema capitalista afronta e inviabiliza a satisfação dessas necessidades. “Temos crise climática e uma crise do cuidado, pois as mulheres estão cada vez mais inseridas no mundo do trabalho. Além disso, com os recursos do Estado mais canalizados para pagar dívidas e fazer superávit, não evoluímos nas políticas socioambientais para favorecer a população e preservar a natureza”, exemplificou. Ao sintetizar, ela disse que a “situação de estresse absurdo”, tanto na área do cuidado quanto na ambiental, aumenta as incertezas, o que gera inseguranças e, por consequência, medo.

Para Sonia, essa ideologia se reforça gerando a ideia de merecimento e culpa, de sucesso ou fracasso como consequências apenas de esforço individual. “Não devemos ser contra o empreendedorismo. Mas a noção de empreendedor como algo individualista e competitivo é equivocada. A ideia da autonomia e da inovação é fantástica. Nós, de esquerda, deveríamos apropriar dessa ideia e ressignificar o empreendedorismo num projeto comum, inovador e solidário. Mas a Direita tomou a ideia de empreendedorismo como sua bandeira”, afirmou a pesquisadora.
Cenário brasileiro
Durante a aula inaugural, Sonia Fleury pontuou fases da história recente do país para explicar o momento atual. “Houve a luta pela democracia, depois a decepção e o desencanto com os governos progressistas, a falta de um projeto transformador, o círculo de giz em que o governo se coloca tendo que obedecer aos ditames da Faria Lima e ao alcance de superávit primário com o dinheiro da população que vai para os financistas”.
Em seguida, a pesquisadora comentou sobre comunicação do governo e sua popularidade, defendendo um maior diálogo com a população a fim de ouvi-la e inserir suas expectativas num projeto comum. Nesse momento, Fleury também analisou a capacidade de investimento governamental através dos recursos discricionários, dos quais 25% estão nas mãos do Congresso, na forma de emendas parlamentares. Ela comentou ainda o achatamento das verbas dos ministérios diante das emendas, exemplificando ao citar a “dependência da saúde desse jogo de relações parlamentares”.
Neste mesmo contexto, a palestrante da aula inaugural fez uma breve avaliação da situação em que se encontram os três poderes no país: “Executivo muito enfraquecido, Parlamento hipertrofiado no seu poder e um Judiciário que está se politizando”. Segundo a pesquisadora, “aparentemente não tem saída, mas a entrada do Judiciário tentando resolver o problema da falta de transparência na distribuição da verba das emendas é fundamental, mas isso atesta que o Executivo está fraco”.
Ao elucidar possibilidades e caminhos, Fleury afirmou que em vez de investir na governança, é preciso buscar governabilidade, que é “a legitimação que a população dá ao governante”. Ela afirmou que essa governabilidade não se trata de um arranjo entre atores políticos, stakeholders e instituições. “O que está acontecendo é o contrário do que deveria: tentativas de acordos de governança e deslegitimação diante da população”, criticou.

Nas fissuras e contradições
Antes de se aprofundar na temática “Ameaças à democracia no contexto de incertezas globais”, mote da aula inaugural do ano letivo de 2025 da ENSP, Sonia Fleury contou um pouco de sua história na ENSP e, por consequência, suas contribuições para os campos da saúde coletiva e da saúde pública. O processo de construção e estabelecimento dessas áreas do conhecimento ocorreu em meio à Ditadura Militar no Brasil. “Falar de democracia é importante porque começamos a pensar nesses assuntos em meio à ditadura. Havia fissuras e contradições, nós trabalhávamos dentro disso”.
Como lições, Sonia Fleury destacou a importância de se manter o compromisso entre a ciência e a posição política e uma bagagem forte para embasar as atividades científicas comprometidas com os aspectos sociais. “Com bases teórica e metodológica sérias, é possível fazer muita coisa”, ressaltou. A pesquisadora falou sobre as raízes do movimento sanitário, da construção de uma consciência sanitária, da reforma sanitária e dos seus desdobramentos que seguem na atualidade.
Mesa de abertura
A aula inaugural de Sonia Fleury foi moderada pela vice-diretora de Ensino da ENSP, Enirtes Caetano, e precedida por uma breve mesa institucional formada pelo diretor da Escola, Marco Menezes, pela coordenadora-geral de Educação da Vice-Presidência de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, Eduarda Cesse e pelo representante discente, Paulo Prado, aluno do Programa de Pós-graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS). Todas as participações estão disponíveis na íntegra na gravação, disponível no canal da ENSP no YouTube.
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