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Ação pública do mínimo vital de água tenta proteger quem não pode pagar tarifa social

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Publicado em:14/06/2023
O que vale mais? Um contrato ou a Constituição Federal, as leis e os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil? Nesta entrevista para a Rede de Vigilância Popular em Saneamento e Saúde, o defensor público do Rio de Janeiro, Eduardo Chow, explica os fundamentos que embasam a ação civil pública (ACP) com pedido de urgência pela adoção do mínimo vital de água potável à população em extrema vulnerabilidade.

Traduzindo o “juridiquês”, ação civil pública é um meio utilizado para pedir à Justiça que proteja interesses coletivos. Neste caso, tenta responsabilizar quem comete danos contra a parcela da população que não pode pagar, mas também não pode viver sem água. Afinal, trata-se de algo insubstituível, tendo em vista o fato de o ser humano não viver sem água.


Ou seja, a ação, ajuizada pela Defensoria Pública em 22 de março (Dia Mundial da Água), contesta o fornecimento condicionado exclusivamente ao pagamento de tarifa. A proposta prevê o benefício para famílias inscritas no Cadastro Único de Programas Sociais (CadÚnico), do governo federal, priorizando a parcela mais pobre de moradores que não possuem condições de pagar a tarifa social. De acordo com dados de janeiro deste ano, mais de 3 milhões de famílias fluminenses estão no CadÚnico, 70% delas em situações de pobreza ou de extrema pobreza.

A falta de previsão dessa possibilidade vai contra os ditames do direito humano à água, um insumo que deve ser garantido não só como mercadoria. Afinal, como uma família que sobrevive com até R$ 100 por mês por pessoa, ou mesmo com até R$ 200, pode arcar com o pagamento de R$ 45,30 de tarifa social (sendo R$ 22,65 de água mais R$ 22,65 referente ao esgotamento sanitário), sem prejuízo da sua subsistência? Esse é um questionamento que a ACP do Mínimo Vital faz.
 
POTENCIAL DE ABRANGÊNCIA DO MÍNIMO VITAL DE ÁGUA:
inscritos no CadÚnico
 
3.308.635
Número de famílias inscritas
 
2.097.440 (63%)
Famílias em extrema pobreza: renda mensal de até R$ 100 por pessoa
 
231.604 (7%)
em situação de pobreza: renda até R$ 200 por pessoa
 
446.665 (13,5%)
de baixa renda: até meio salário mínimo por pessoa ou famílias que ganham até 3 salários mínimos no total
 
83,5%
Das famílias possuem renda até ½ salário mínimo
 
Fonte: ACP do mínimo vital (dados de janeiro de 2023).
 
Conheça a Ação Civil Pública do Mínimo Vital

A ACP do Mínimo Vital (como a ação civil pública tornou-se conhecida) é fruto de muita pesquisa e interlocução da Defensoria Pública com a sociedade civil, incluindo vários parceiros e a própria Rede de Vigilância Popular.
A ação pede:

• para as famílias mais pobres cadastradas no CadÚnico da capital fluminense: a garantia de um mínimo de 25m3 de água potável por mês sem cobrança de tarifa ou outro patamar que o juiz entenda adequado;
• requer que o governo do estado, a Agenersa e o Instituto Rio Metrópole apresentem à Justiça um modelo de estruturação e implementação de um Programa Fluminense de Isenção Social de Água; e
• que a Justiça declare nulo o art. 72 do Regulamento dos Serviços de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário, aprovado pelo Decreto Estadual n. 48.225 de 13 de outubro de 2022 do governador do Estado do RJ, por violar os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos a que o Brasil se vincula. O que diz o Art. 72 - É vedado à concessionária isentar o pagamento das tarifas ou cobrá-la em valor irrisório, inclusive de pessoas jurídicas de direito público ou de grandes usuários.

A Justiça pode estabelecer um volume mínimo diferente dos 25m3 por família e determinar o pagamento da tarifa social para quem consome além dessa quantidade.

Estão citados na ACP o Instituto Rio Metrópole, a Agenersa, a Cedae e as concessionárias privadas: Aegea (Águas do Rio – atende os blocos 1 e 4), Águas do Brasil (Rio + Saneamento – bloco 3) e Iguá Saneamento (bloco 2).
 
+ Leia a Ação Civil Pública aqui.
 
O fato de o mínimo vital não estar previsto no contrato com as concessionárias de saneamento não impede sua adoção, conforme explica o defensor. “Existem outras interfaces, além do contrato, que imperam sobre essa relação jurídica”, afirma ele, citando os direitos humanos, cujas premissas estão acima de qualquer norma entre as partes. E nesse sentido, o Brasil conta com diversas leis e tratados que embasam a ação da Defensoria Pública.

“Só as relações econômicas não serão a resposta para uma sociedade que preza a tutela dos direitos humanos”, explica. E acrescenta: “Os direitos humanos colocam limites. Não vejo só o contrato como uma forma de regular a sociedade de maneira puramente econômica, porque pode acabar tendo violações estruturantes para um mínimo de dignidade e de essência do direito humano”.
 
Como se dará o direito ao mínimo vital na prática?

Outro argumento contestado por Eduardo Chow é a falta de recursos para a implantação do programa de mínimo vital. Discutir economia dentro do direito é algo complexo, pondera o defensor público, ao esclarecer que a discussão proposta por ele envolve, em primeiro lugar, a garantia de um direito fundamental. “À luz meramente da economia pode-se justificar graves violações. A escravidão, por exemplo, vai ser discutida apenas sob a ótica econômica e da maximização dos lucros? Isso justificou a escravidão. Não pode ser a mesma lógica hoje, muitos estudiosos já trataram disso”, pontua.

Como veremos em breve em outra reportagem da Rede de Vigilância Popular, muitos países adotam programa equivalente. Uma das soluções econômicas encontradas por esses Estados é a adoção do subsídio cruzado, ou seja, quem consome mais e pode pagar, arca com uma tarifa maior. Com essa fórmula, não seria necessário o financiamento do benefício com dinheiro público.

Para o defensor público, a alegação de que o mínimo vital impactaria no custo é um argumento de quem deseja simplificar a questão. “Eu também posso simplificar, dizendo que eles querem que morra de sede essa parcela que não tem como pagar. Eles querem positivar a morte por meio do contrato?”, retruca.
 
Perdas de água são hoje um subsídio cruzado

Chow ressalta ainda que a lógica econômica atual já pratica subsídio cruzado com relação às perdas de água potável, provocadas pelos inúmeros vazamentos decorrentes sobretudo de falhas na manutenção da rede de distribuição. Essas perdas são calculadas atualmente entre 36% e 40% da água tratada e todo o custo desse volume é repassado aos clientes das concessionárias. Em outras palavras: o custo de distribuição inclui essas perdas.

“Então hoje na verdade já existe um subsídio cruzado. Quem paga já arca com quem não paga. Pode-se aplicar essa mesma lógica de subsídio cruzado para cobrir os custos do mínimo vital de água para os mais vulnerabilizados. Se essa solução econômica referente às perdas já é aplicada, por que não fazer o mesmo com o mínimo vital para garantir um direito fundamental?”, questiona Chow.
 
O papel (não cumprido) da Agenersa

Eduardo Chow explica que, enquanto não houver uma decisão judicial ou uma lei a respeito do tema, a Agenersa (agência reguladora fluminense) terá de promover essa discussão, assim como já fez com a implantação da tarifa social na área de abrangência da concessionária Águas de Juturnaíba, que atende Araruama, Saquarema e Silva Jardim, na Região dos Lagos. Assim como também já enfrentou essa situação com a antiga CEG, hoje Naturgy, concessionária de gás.

E quando a Agenersa tratar do tema no caso das novas concessionárias privadas, acrescenta ele, é importante estar atento para impedir retrocessos. Por exemplo, colocar o parâmetro somente do CadÚnico na área de Juturnaíba pode prejudicar as pessoas que moram em área de interesse social, hoje contempladas, mesmo sem estarem no cadastro federal.

“Estamos muito aquém do que é previsto por uma agência reguladora de equilibrar as relações entre fornecedor e consumidores”, ressalta Chow, que fez sua tese de Doutorado sobre A teoria do mínimo vital de água, com livro lançado recentemente (acesse aqui).
 
Principais embasamentos internacionais da ação

• Em dezembro de 2015, a Assembleia Geral da ONU reconheceu que "o direito humano ao saneamento garante que todas as pessoas, sem discriminação, tenham acesso físico e econômico ao saneamento, em todas as esferas da vida, e que este seja seguro, higiênico, social e culturalmente aceitável e que proporcione privacidade e garanta dignidade" (Resolução A/RES/70/169).

• Em 2010, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu o direito à água potável e limpa e o direito ao saneamento como essenciais para o pleno gozo da vida e de todos os direitos humanos (Resolução n° 64/292).

• Em 22 de março de 1992, data que se tornou Dia Mundial da Água, a ONU elaborou a Declaração Universal dos Direitos da Água.

• Em março de 1977, Conferência da ONU sobre a água reconheceu, pela primeira vez, a água como um direito de todos os povos, seja qual for o seu estágio de desenvolvimento e as suas condições sociais e econômicas.


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