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Última edição do ano de 'Cadernos de Saúde Pública' debate determinação social de saúde

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Publicado em:14/12/2021

Na última edição do ano de Cadernos de Saúde Pública, o fascículo provoca um debate sobre o uso da expressão “determinação social de saúde”. Para a autora do artigo Determinação social, não! Por quê?, Maria Cecília de Souza Minayo, coordenadora científica do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/ENSP), esse conceito demonstra impropriedade para representar a complexidade do fenômeno e das situações de saúde/doença e as questões que envolvem o campo da Saúde Coletiva, frente ao contexto das mudanças da sociedade pós-industrial. “Eliminemos de nosso vocabulário o termo “determinação social”. A quem me perguntar se estou negando as desigualdades, as inequidades e as iniquidades, a fome e a miséria que mantêm tanta gente excluída dos benefícios civilizatórios, eu respondo que não, pelo contrário”, afirma Minayo. Outros artigos de CSP debatem a questão.

O texto de Minayo apresenta o percurso da adoção do termo “determinação social” e a vasta produção científica que o utiliza na América Latina, inclusive no Brasil; descreve o determinismo como conceito histórico nascido da Física e da Biologia com reflexos sobre as Ciências Sociais e Humanas; e ressalta o conhecimento sociológico contemporâneo sobre determinação e liberdade, fazendo a crítica do conceito em foco. Ressalta a necessidade da área de Saúde Coletiva rever alguns de seus conceitos baseados no modelo de pensamento da sociedade industrial sobre os quais se assentou. E conclui que: determinação social, não! Aceitar que as coisas sejam determinadas significa desdenhar o poder da natureza, a criatividade e a autonomia do indivíduo e da sociedade para agir, desconhecendo a experiência milenar de que tudo o que é historicamente construído pode ser desconstruído pela ação humana e pela aleatoriedade do real. Portanto, afirma ela, qualquer trabalho de cunho libertário precisa levar em consideração, dentro das condições dadas, as forças pessoais, comunitárias, sociais e auto-organizadoras que interagem para a preservação do ambiente e da saúde dos indivíduos e da coletividade.

O incômodo com a reificação desse conceito, segundo Minayo, vem de longe e ela tratou desse assunto no artigo Estrutura e Sujeito, Determinismo e Protagonismo Histórico: Uma Reflexão sobre a Práxis da Saúde Coletiva, publicado em 2001. Na época, sua tônica era trazer a subjetividade para reflexão do campo. “Retomo o tema com o único objetivo de aprofundar uma crítica a essa expressão irrefletidamente consagrada, como se marco explicativo dos “males da saúde” fosse. A história do reinado desse conceito na América Latina vem a partir dos anos 1970, particularmente, quando os textos tratam das desigualdades, dos pobres e de suas desvantagens nas condições de saúde. Não pretendo propor nem criar um modelo. Apenas provocar um debate sobre o assunto, à luz dos avanços da ciência contemporânea”, elucida.
Em resumo, explica Minayo, a humanização no sentido pleno é a construção gradual de um projeto de pessoa e de vida coletiva no âmbito de um processo histórico também de construção de estruturas, de instituições e de conformação das subjetividades.”Hoje, mais do que nunca, o ser humano tem o extraordinário poder de dar realidade a muitas de suas potencialidades e descobrir que há milhões de outras que não conhece e que pode desvendar.”


Ela sugere que seja eliminado o termo “determinação social”. “Apenas estou dizendo que todos esses males se tornaram mais complexos com os influxos da sociedade pós-industrial e em rede. Aceitar que as coisas estejam determinadas socialmente significaria desdenhar a criatividade, a autonomia e o poder de cada pessoa ou da sociedade para reagir; ou desconhecer a experiência milenar de que tudo o que é historicamente construído possa ser desconstruído”, conclui.

Uma  das debatedoras do artigo de Minayo, Aurea Maria Zöllner Ianni, docente da Faculdade de Saúde Pública da USP, em seu artigo Saúde Coletiva e historicidade do conhecimento: teoria, interdisciplinaridade e o sujeito contemporâneo, considera que o ensaio de Minayo é muito fiel à trajetória intelectual da autora, ao diálogo epistemológico e teórico em torno da interdisciplinaridade da saúde.


Aurea concorda com Minayo. “O produtivismo acadêmico, vastamente problematizado no campo, é exemplo de como a repetição transmutou-se em critério de mérito por meio das quantidades - de artigos, pesquisas, defesas, lives etc. No ritmo do produtivismo acadêmico, impossível não se repetir, comprometendo assim o esforço interdisciplinar original. A reificação transformou-se em mérito.”


De acordo com Aurea, o determinismo causal, atemporal e a-histórico de que fala Minayo, encontrou na razão prática o seu lastro, promovendo o recuo do ímpeto interdisciplinar original, arrojado, inovador, instigante e conflituoso. “Nos dias de hoje, percebe-se uma acomodação interdisciplinar restrita; sobretudo nos encontros e parcerias das categorias científicas das diferentes matrizes teórico-epistemológicas, uma complementando ou agregando-se à outra - prática fundamental e necessária ao exercício interdisciplinar -, porém ausente de crítica, “o confronto da coisa com seu próprio conceito”, o confronto interdisciplinar com o seu próprio objeto: a saúde.” Terminamos, assim, diz Aurea, circunscritos à reificação da qual tanto procuramos nos afastar nos primórdios do movimento sanitário.


Aurea coloca várias outras justificativas e, por fim, sobre sujeitos/as num mundo altamente globalizado, explica que as sociedades contemporâneas presenciam a dissolução das formas tradicionais modernas e lançam os indivíduos e as sociedades a um contexto de insegurança, imprevisibilidade e contingência. “Essas profundas transformações sociais atingem os sujeitos e suas condições objetivas de vida como apontado por Minayo, o que quer dizer que atingem não apenas a sua vida rotineira, sua situação de saúde-doença, suas expectativas e demandas assistenciais, sua subjetividade etc., como também o próprio estatuto de sujeito, esse constructo histórico-social da razão ocidental moderna.” Há, portanto, segundo Aurea, uma crise sobre quem e o que é esse sujeito que somos nós, agora produto e submersos na contingência, na incalculabilidade, na imprevisibilidade, na sociedade de risco, na alienação do mercado. Os impasses de como agir, decidir ou para onde ir, em cenário de imprevisibilidades, incertezas, riscos e contingências. Acrescenta ela: “O caráter plural dos indivíduos, agora libertos das amarras tradicionais modernas, com seus desejos, interesses, recursos e identidades, redesenha um novo sujeito social. Como situar-se então, nos planos ontológico-epistemológico e teórico-empírico, tal qual um sujeito contingente e plural? E num contexto em que as verdades científicas parecem cada vez mais plurais, históricas e socialmente situadas, provisórias”.


Aurea finaliza dizendo que, para além dos impasses tipicamente tradicionais modernos - negacionismo vs. ciência - trazidos pela pandemia da Covid-19 por exemplo, trouxe também conflitos de segunda modernidade, de reflexividade da modernidade que se tornou sociedade de risco auto produzido, na qual as decisões precisam ser tomadas em contexto de crescente pluralidade, individualização social e contingência, consoantes ao tempo histórico presente.

No artigo Mais além da determinação social: sobredeterminação, sim!, Naomar Almeida-Filho, professor titular do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, opina que “Minayo confunde propositalmente o princípio filosófico do determinismo, a categoria determinação e a noção de determinante. Isso constitui um caso flagrante de “falácia de pressuposto”. “O modo como apresenta um resumo da obra de alguns notórios teóricos europeus, induz o/a leitor/a a concluir que os formuladores da teoria da determinação social da saúde não defendem a abertura paradigmática das ciências nem a complexidade dos objetos de conhecimento da saúde-enfermidade-cuidado. Trata-se aqui de outra modalidade de falácia, a “falácia da falsa atribuição”, facilmente desmascarada pela produção sobre complexidade e saúde de vários autores a quem ela duramente critica; como, por exemplo, Breilh.”


Conforme diz Naomar, “tentamos compreender (e não somente explicar) as raízes, determinações e contingências dos processos de saúde-enfermidade-cuidado, numa reflexão própria (e não submetida à vanguarda eurocêntrica), aplicando uma abordagem pluralista (mas não eclética) de forma livre e criativa, mas sempre radicalmente crítica. “Essa postulação nos permite propor que, no hipercapitalismo globalizado, o campo da saúde pode ser melhor pensado considerando uma sobredeterminação complexa de desigualdades estruturais e sistêmicas que, no cotidiano das sociedades contemporâneas, constituem fonte permanente de injustiça e iniquidades. Ainda fala Naomar que, para uma compreensão profunda e sistemática dessa cruel realidade, a fim de transformá-la, precisamos recorrer a todas as formas da determinação, incluindo, certamente, a determinação social para ir mais além, na perspectiva ampla e totalizante da sobredeterminação. Sobredeterminação social, sim!, completa.

A categoria determinação social como ferramenta emancipatória: os pecados da “expertise”, no que diz respeito ao viés epistemológico de Minayo, artigo de Jamie Breilh, professor da Universidade Andina Simón Bolívar (Equador), confessa que assume com preocupação, mas também com tristeza e decepção, a responsabilidade de responder aos argumentos inexatos e mal enfocados da colega Minayo. “Minha resposta não se reduzirá a uma reafirmação pessoal de meu trabalho e contribuições que são amplamente bem-vindas. Mais do que a resposta obrigatória a um colega que lançou uma crítica surpreendente e tendenciosa, centrando-se principalmente na produção de Naomar Almeida-Filho e na minha, justamente em tempos de hiper-capitalismo agressivo, em que os investigadores democráticos deveriam encostar-se ao externo agressões.” Ele afirma que o dever, mesmo ético, de formular a crítica científica com rigor epistemológico, face a uma crítica baseada em erros analíticos, vieses axiomáticos e interpretativos. “A crítica da crítica é inevitável quando se defende as bases de um conhecimento transformador.”


Ao contrário do que propõe Minayo, na opinião de Jamie, a determinação social da saúde é um poderoso recurso de interpretação dialética do movimento da vida social e da relação não determinística, mas dialética que ela gera, produzindo consequências ou encarnações na natureza e nos coletivos e pessoas de vários tipos, algumas saudáveis ??e outras doentias. “Rompendo com o molde cartesiano, entendemos a saúde como um processo complexo, onde não existem relações determinísticas, mas sim um movimento entre determinação e autonomia relativa. Ele defende a codeterminação entre a tendência dos processos mais amplos e complexos para reproduzir suas condições, e a tendência dos processos mais simples de gerar mudanças nessas condições.

Para concluir, ele responde à Minayo que “não apenas estudamos cuidadosamente o vertiginoso desenvolvimento e penetração das novas tecnologias na aceleração do hipercapitalismo no século XXI, mas também analisamos o seu impacto nos processos críticos que determinam a saúde”. Segundo ele, é verdade que há uma modernidade capitalista tardia, e um salto na destrutividade e crescimento exponencial da desigualdade capitalista, mas parece arriscado focar na noção de "pós" para a explicação deste período catastrófico do sistema. “Continuar a falar e enfatizar o “pós” (ou seja, pós-modernidade, pós-indústria, pós-trabalho, pós-humanismo, etc.) é uma faca de dois gumes, ainda pior se isso for combinado com as teses dos neo. pós-modernismo conservador, onde a base material de uma reprodução social selvagem da acumulação de capital é desconectada e as questões da microfísica do poder são privilegiadas na mesa de análise.”

A pesquisadora Maria Cecília de Souza Minayo, fez uma réplica aos autores acima, por meio do artigo Dialogando sobre o conceito de determinação social. “Agradeço à Áurea, ao Jamie e ao Naomar, que dedicaram parte de seu tempo para enriquecer este debate”, disse.


“Aurea Ianni, cientista social da área da saúde, cuja obra Mudanças Sociais Contemporâneas e Saúde eu tive a oportunidade de ler, em seu livro e o segundo comentário que Aurea faz do artigo não só o valorizam, como também lhe acrescentam substância e conteúdo. A meu favor, cito dela a seguinte frase: “[a autora ressalta] ...consistente esforço interdisciplinar que a Saúde Coletiva e a Medicina Social latino-americanas desenvolveram com o intuito de problematizar o objeto saúde, esforço de (re)conceituação epistêmica, teórica e sociopolítica, em consonância às condições objetivas da época, e que expressaram o contexto histórico-social e em saúde tanto no âmbito do conhecimento quanto no da ação prática, social e política”.” Diz Ianni, no entanto, que esse “exercício em muito abandonado posteriormente, numa acomodação à repetição, à reificação”. E encerra: “o ensaio é muito fiel à trajetória intelectual da autora, ao diálogo epistemológico e teórico em torno da interdisciplinaridade da saúde. É, pois, nesta perspectiva que ela apresenta um leque de questões que auxiliam compreender o campo da Saúde Coletiva e alguns de seus impasses atuais”.


Minayo também agradece aos colegas Jamie Breilh e Naomar Almeida-Filho, “ainda que meu ensaio tenha merecido as saraivadas de críticas de Jamie e tenha sido desmerecido por Naomar, como falacioso e libelo desconstrutivo”. Diz Minayo: Fico imaginando que força teria este texto, que nada mais fez do que discutir um conceito! Em que pontos tão sensíveis teria ele tocado a ponto de desencadear tamanha fúria! Ela explica que o foco do seu texto foi evidenciar que as imensas e incomensuráveis transformações que vivenciamos hoje precisam de novas teorias interpretativas da sociedade, do mundo e, obviamente, da área de Saúde Coletiva, tão vibrante e tão presente academicamente. “Se as minhas provocações foram pobres e falaciosas, como diz Naomar, que se convoquem os que se julgam grandes pensadores do campo e que estes busquem outras referências e protagonizem mudanças.” Considera Minayo que, “no final da minha carreira, não me importa o menosprezo nem a fúria; me valem o debate, a reflexão e o pensamento criativo”.
Ela continua: “não confundi determinação, determinantes e determinismo. Ao contrário, eu os conceituei, os distingui e os contrapus ou os integrei, em alguns casos, às possibilidades de usar teorias e metodologias de estudos de temas complexos. Sem apresentar tais conceitos como modelos, mostrei que as suas raízes, que vêm da Biologia, da Física e da Cibernética, são decantadas pelas ciências sociais reflexivas que incluem o sujeito histórico na análise e na compreensão de todas as ações humanas. Tais ciências e as suas teorias são diametralmente opostas à ideia de determinação social. Logo, isso não é uma falácia, é tratar teoricamente e de forma consistente os conceitos e as peças-chave das teorias, porque uns não cabem dentro dos outros ou não nos basta justapor-los”.


A Jamie, Minayo diz não poder concordar com as críticas dele. “Talvez estejamos trabalhando no mesmo campo, com os mesmos objetivos, mas com instrumentos diferentes. Quero afirmar que concordo com você quando diz que “a saúde é um processo complexo onde não há relações deterministas, mas um movimento entre determinismos e autonomia”. Se é assim que você pensa, argumenta Minayo, a sua reflexão coincide com a de muitos outros autores, inclusive a maioria dos que eu cito, para quem isso significa declinar da tese da determinação social, uma expressão muito restrita para representar a dialética entre o que permanece e o que muda tanto na sociedade e no indivíduo como na natureza, seja pela ação humana, pelo acaso ou pelos deslocamentos. “Neste tempo de capitalismo exacerbado - ou de hipercapitalismo, como você menciona -, como sempre, são os sujeitos históricos que atuam para o bem e para o mal, não uma força exterior, porque, como dizem os melhores cientistas sociais, todas as estruturas são ações humanas objetivadas.”


Acrescenta ela que, “quando você me critica por citar autores europeus, minha resposta é que, para mim, o conhecimento não tem pátria, é universal, e por isso não gostaria de cerceá-lo em nenhuma região deste mundo globalizado, cuja economia e política afetam, sim, a todos, porém mais ferozmente os trabalhadores pobres ao redor do planeta”. Ela elucida que, “quando encontro um autor que me ajuda a explicar e a compreender a realidade, eu o leio e o cito, seja a sua obra sobre o populismo que assola a América Latina, o autoritarismo que substitui a democracia, o uso da religião para fustigar as liberdades individuais, as profundas mudanças no mundo do trabalho e a sua desumanização, as imensas transformações trazidas pelas tecnologias de comunicação e informação, o impacto social das novas tecnologias e da biotecnologia, as relações reflexivas promovidas, sobretudo, pelas redes sociais, a descrença nas instituições criadas no e para o mundo industrial, a pobreza e a miséria, o extermínio e o menosprezo pelos indígenas, a destruição da natureza, que tanto afeta nossa saúde, ou a violência social, que persiste e se transfigura de tempos em tempos - atualmente no protagonismo do tráfico internacional de armas e de drogas, só menos lucrativo que o mercado do petróleo”.


Minayo complementa, referindo-se a Jamie, que se recusa a aceitar, por exemplo, que os efeitos do colonialismo sejam uma determinação social, que o patriarcalismo conforma uma determinação social, que a discriminação de gênero é uma determinação social ou que a organização da sociedade em classes deriva de determinações sociais. “Para mim, tudo isso é a ação humana na História, isto é, na economia, na política e na cultura. É a mesma ação humana que supera os obstáculos, as opressões, as desigualdades e as discriminações contra as quais nós, ativistas sociais, lutamos.” Por fim, ela defende-se: “Podem me acusar de ir demasiadamente ao concreto, mas foi para torná-lo um “concreto pensado” que escrevi este texto.”


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Imagem: Abrasco



Fonte: CSP

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