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Degradação ambiental e doenças: Marcia Chame explica relação entre saúde e biodiversidade

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Publicado em:12/09/2025
Por Barbara Souza

O avanço do desmatamento e da degradação ambiental gera efeitos diretos na saúde humana, já que a perda de biodiversidade e a fragmentação de habitats favorecem o surgimento ou a reemergência de doenças transmitidas entre animais e pessoas. Esse deve ser um dos temas em pauta na COP30, que será realizada em Belém, no Pará, em novembro.

Como parte de uma série especial sobre assuntos de interesse da saúde pública a serem debatidos durante a conferência, o Informe ENSP conversou com a bióloga Marcia Chame, coordenadora da Plataforma Institucional Biodiversidade e Saúde Silvestre (Pibss/Fiocruz) e pesquisadora da ENSP/Fiocruz. Referência no tema, a especialista explica como a fragmentação de ecossistemas favorece espécies altamente adaptáveis, muitas vezes potenciais transmissoras de doenças, e alerta para a necessidade de ampliar a vigilância e investir em estratégias de prevenção.

Na entrevista, Marcia Chame destaca exemplos concretos, como a febre amarela, a leishmaniose e a zika, e chama atenção para a vulnerabilidade de biomas brasileiros, como o Pantanal e a Caatinga. Ela também defende políticas públicas intersetoriais pautadas no conceito de Saúde Única, capazes de integrar informações de diferentes áreas e frear o ciclo de degradação ambiental que aumenta a exposição humana a zoonoses. Leia abaixo!

Como o desmatamento e a fragmentação de habitats naturais contribuem para o aumento das zoonoses no Brasil?
 As duas coisas estão relacionadas. Quando pensamos em desmatamento, ele vem acompanhado da fragmentação. Temos uma cascata: desmatamento, fragmentação e perda da biodiversidade. Nesse processo, há perda de habitats. Com isso, algumas espécies desaparecem ao longo do tempo, enquanto outras se adaptam a esse cenário e aprendem a conviver com a nova estrutura ecossistêmica, que quase sempre estará mais próxima às pessoas. Os animais passam, então, a se aproximar tanto de áreas rurais quanto urbanas, nessas novas fronteiras.

No Brasil, muitas vezes, áreas nativas estão lado a lado com atividades humanas. Na Amazônia, por exemplo, há trechos de mata e, ao lado, processos de urbanização. Ou seja, não existe uma zona de transição entre floresta e cidade: ocorrem encontros diretos da mata com o rural, o urbano e até áreas industriais. Esse mosaico de paisagens coloca as pessoas em contato crescente com animais silvestres. Isso favorece espécies generalistas, com alta capacidade de adaptação, que acabam se tornando bons transmissores de doenças. Há exemplos clássicos, como leishmaniose, febre amarela e doença de Chagas.

A fragmentação acelera a transmissão, sobretudo em doenças transmitidas por vetores. Esse fenômeno já é conhecido: pesquisadores de doenças tropicais o observam há muito tempo em diferentes contextos. Para o futuro, a perspectiva é de intensificação da fragmentação e da perda de biodiversidade, o que aumenta a exposição humana. Também é preciso considerar comportamentos de risco, como turismo ecológico, trilhas e acampamentos, principalmente quando praticados por pessoas não vacinadas.

Que outras doenças, além de leishmaniose, febre amarela e doença de Chagas, o(a) senhor(a) citaria como suscetíveis a essa pressão humana sobre os ecossistemas?
 Pesquisas do Instituto Evandro Chagas, no Pará, já isolaram mais de 200 tipos diferentes de vírus na Amazônia, mostrando que circulam na natureza, ainda restritos a ciclos silvestres. Não é possível prever quais riscos trarão, mas o potencial existe. Um exemplo é a febre Oropouche, cujo vírus poucos imaginavam que se expandiria tanto ou adquirisse novas características genéticas.

Esse cenário reforça a necessidade de investimento em vigilância. É mais inteligente, eficaz e justo criar mecanismos sensíveis de monitoramento que permitam prevenção, atenção e controle, como o SISS-Geo, desenvolvido na Fiocruz. Infelizmente, os recursos acabam concentrados na assistência em saúde, que de fato demanda muito investimento. Mas, ao tornar a vigilância mais eficiente, é possível reduzir custos na assistência. Além de tecnologia, é essencial mobilizar a população, que deve ser estimulada a participar do processo de cuidado com a própria saúde.

Quanto às doenças, o que ocorreu com a febre amarela pode ocorrer com a zika, ou seja, passar a circular entre animais. Já há registros de vírus da zika em saguis – muitas vezes tratados, equivocadamente, como animais de estimação. Se o vírus da zika se estabelecer em um ciclo silvestre, envolvendo vetores e espécies como macacos, o atual modelo de vigilância não será suficiente. Uma vez no ciclo silvestre, o controle se torna inviável.

Tuiuiú, ave símbolo do Pantanal, protege seu ninho em meio aos incêndios. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A perda de predadores naturais e a alteração de cadeias ecológicas influenciam a proliferação de vetores como mosquitos e roedores? Como?

Sim. Quando pensamos em grandes predadores, como a onça ou o leão, não percebemos que são justamente eles que mantêm o equilíbrio das espécies situadas “abaixo” na cadeia alimentar. Ao perdermos predadores, populações intermediárias, muitas vezes amplificadoras de patógenos, tendem a crescer. A diminuição de felinos e outros carnívoros, por exemplo, favorece a proliferação de roedores, que são importantes transmissores de infecções.

Se houver disponibilidade de alimento, a população de roedores cresce ainda mais. E quais são esses alimentos? O lixo, cujo controle ainda é ineficaz. Muitas vezes acreditamos que os problemas urbanos não impactam os ciclos naturais, mas eles estão diretamente ligados. Em uma enchente, com acúmulo de lixo e proliferação de roedores, aumenta a probabilidade de surtos de leptospirose.

O que os dados mais recentes revelam sobre os territórios mais vulneráveis à emergência de zoonoses ligadas ao desmatamento no Brasil? Que locais merecem atenção especial?
 O Pantanal é um exemplo emblemático, com características únicas. É a maior planície inundável do planeta e vem sofrendo com incêndios de grandes proporções, além dos efeitos de outros biomas. Como não possui nascentes próprias, depende das águas que vêm da Amazônia. No entanto, grandes fazendas têm represado essas águas para irrigação e criação de animais. O Pantanal está sobre o grande Aquífero Guarani e é um local quente e arenoso que está afundando. Ultimamente, o enchimento e esvaziamento das áreas ocorrem mais rapidamente, alterando a dinâmica da vida local.

Os animais do Pantanal se aproximam cada vez mais das pessoas em busca de alimento e água. A fumaça dos incêndios, como também ocorre na Amazônia e na Caatinga, expulsa animais de seus habitats, além de prejudicar a vegetação. Plantas que sobrevivem ao fogo, muitas vezes, têm seus ciclos de floração e frutificação comprometidos, deixando de fornecer alimento à fauna. Isso leva animais a buscar recursos em outras áreas. 

Paisagem da Caatinga. Foto: Freepik

Esse quadro remete ao surto do vírus Nipah, na Malásia, no fim dos anos 1990. O episódio foi associado a morcegos frugívoros e ao fenômeno El Niño. Secas e incêndios florestais forçaram morcegos a buscar alimento fora do habitat, aproximando-se de fazendas de porcos, que se tornaram hospedeiros intermediários e transmitiram o vírus aos humanos, resultando em mais de 100 mortes. Hoje, também se observa aumento de ataques de morcegos e da transmissão de raiva, consequência direta da falta de alimento em áreas silvestres.

Outro bioma vulnerável é a Caatinga, marcada pela seca típica do semiárido. Com a introdução de irrigação e açudes, começaram a surgir doenças de veiculação hídrica, como giardíase e infecções por áscaris, antes pouco frequentes nesse ambiente. Antes predominavam vermes transmitidos pelo solo. Trata-se de uma região ainda mais desafiadora, por ser de difícil acesso a serviços de saúde.

Que tipo de políticas públicas e estratégias intersetoriais são urgentes para frear esse ciclo de degradação ambiental e risco sanitário?
 A abordagem de Saúde Única, criada em 2004, é cada vez mais relevante por enfatizar a necessidade de integrar informações e dados de diferentes áreas. Políticas públicas de saúde não podem ser pensadas de forma isolada.
Se sabemos que a fragmentação aumenta a exposição humana e favorece espécies amplificadoras de patógenos, investir em conservação ambiental é também investir em saúde. Manter parques bem organizados, protegidos, interligados por corredores ecológicos, além de cumprir leis de proteção de mananciais e nascentes, são estratégias fundamentais. Preservar florestas ciliares, por exemplo, ajuda a evitar inundações e outros desastres que resultam em mortes, doenças e perdas econômicas.

A integração entre setores é indispensável. Hoje, cada ministério mantém dados voltados apenas ao seu interesse específico – Saúde, Meio Ambiente, Agricultura, Pecuária. Com a integração, é possível economizar recursos, reduzir riscos e proteger vidas humanas e de outras espécies.


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