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Pesquisadora fala sobre ética em pesquisa em estudos sobre resquícios humanos

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Publicado em:22/09/2022
Por Danielle Monteiro

Pesquisadora do Departamento de Endemias da ENSP e vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Escola de 2013 a 2021, Sheila Mendonça falou ao CEP Informa sobre a complexidade que envolve a ética em pesquisa quando o assunto é estudos com resquícios humanos e contou como surgiu a iniciativa de trazer a exposição 'Doença de Chagas: da pré-história à atualidade' à Fiocruz. Confira:

Conte um pouco da sua experiência e desafios como vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da ENSP de 2013 a 2021.

Sheila: Assumi a Vice-Direção de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da ENSP, depois a Vice-Direção de Pesquisa e Inovação, em 2013. Durante ambas as gestões de Hermano Castro, fui muito bem acompanhada pela sua equipe, o que me ajudou muito. Como adjunta de Margareth Portela, que me antecedeu, e coordenadora de Pesquisas do Densp, estava familiarizada com a equipe da VDPDT e o escopo das atividades, realizando uma transição tranquila. Mas, como todo início de gestão, introduzimos processos de trabalho e acrescentamos novas atribuições e atividades à Vice de Pesquisa, o que foi desafiador. Numa unidade grande, com mais de 200 doutores em atividade de pesquisa e  diversidade de interesses, o maior desafio foi manter a conciliação e atender amplamente, na medida do possível, às aspirações desta Escola. Lidar com a falta de recursos conjuntural certamente foi o maior problema. Por fim, o CEP, integrado à Vice-Direção na minha primeira gestão, foi uma incorporação gratificante, pois tive a sorte de receber coordenadoras do mais alto nível de competência e compromentimento, como Angela Esher e Jeniffer Brathen, com as quais trabalhamos muito solidária e produtivamente ao longo de oito anos. 

Como surgiu a iniciativa de trazer a exposição Doença de Chagas: da pré-história à atualidade para a Fiocruz? E quais são os principais achados dos estudos realizados pela ENSP e IOC, nas últimas décadas, sobre a antiguidade da Doença de Chagas e sua presença em comunidades pré-coloniais?

Sheila: Ao retornar às atividades de colaboração internacional na área de pesquisas sobre a saúde no passado, apoiei a realização e publicação dessa mostra por colegas internacionais, entre eles a dra. Nancy Orellana, da Universidade Mayor de San Simon (Cochabamba, Bolívia). Deste contato surgiu a oportunidade de traduzir e complementar a exposição com uma contribuição da Fiocruz, que ali já estava referida pelos aspectos históricos e achados em paleo Chagas. Essa ideia foi imediatamente aceita pela dra. Tania Jorge, que, na Direção do IOC, passou a dar todo o apoio para preparar a mostra para o aniversário de 150 anos de Oswaldo Cruz e o aniversário da nossa ENSP. Aqui obtivemos imediata adesão e apoio da Direção por meio do Programa de Fomento ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico Aplicado em Saúde Pública. 

Tal como na época de Carlos Chagas, os anos 1980 trouxeram avanços nas hipóteses sobre a exposição aos vetores do Trypanosoma cruzi. Essas hipóteses, propostas por nossos parasitologistas e epidemiologistas a partir de observações em campo, levaram a propor ainda o adoecimento também dos povos do período anterior à colonização do nosso país. Estudos experimentais e análises de materiais antigos por DNA, no Brasil e em uma missão Brasil-Chile, nos anos 1990, avançaram no tema; até que, no Brasil, foram confirmados achados positivos em povos antigos de Minas Gerais, publicados em colaboração com o IOC.  

A antropologia, que trata da identificação de restos humanos, tem dois campos principais de investigação: um dedicado ao estudo de restos esqueléticos antigos, no qual as análises antropológicas visam à reconstrução histórico-científica de uma comunidade do passado; outro dedicado ao estudo de restos humanos recentes, cuja identificação visa à resolução de um processo judicial. É claro que, diante de dois objetivos tão diferentes (históricos e forenses), métodos de recuperação antropológica e a análise de restos mortais estão sujeitos a diferentes pontos de vista éticos. Quais são as principais questões éticas que envolvem os estudos com resquícios humanos?

Sheila: A ética no campo antropológico, como no da saúde, é multivocal, mas os princípios gerais de integridade em pesquisa, tal como bem exposto no guia aprovado pela Fiocruz, permanecem válidos para todos os campos da ciência. Honestidade intelectual, responsabilidade, respeito, imparcialidade, transparência são princípios pétreos. Dentro e fora do país, há diferentes entendimentos e interpretações no campo da ética em estudos de remanescentes humanos, e cada país, em cada tempo, adota um conjunto de normas e leis com esse fim.

No campo da antropologia forense, que revela identidades e informações sensíveis com consequências imensas, o peso das consequências individuais e coletivas é ainda maior, ainda que a prática nem sempre permita fazer o melhor.  Os benefícios e não malefícios dos resultados das pesquisas científicas estão a todo tempo sendo considerados, seja em relação a sigilo de uma descoberta, seja em relação a um laudo com consequências condenatórias, por exemplo.   

No campo da bioarqueologia, que é uma antropologia de mortos antigos cujas relações de continuidade com vivos, indivíduos ou comunidades são, em geral, presumidas, a questão ética pode ser ainda mais multivocal. E, se por um lado, exigências culturais, em especial religiosas e humanitárias, orientam códigos de conduta para abordar sítios funerários e despojos humanos, em contrapartida, outros aspectos, como a natureza perecível/insubstituível dos materiais, entram em questão. Deve a ciência impor-se nos lugares e materiais sagrados? Por que/como exibir despojos humanos? Por que e como estudá-los? Quem deve abordar e estudar os lugares sagrados? Como autorizar e por quem? Em diferentes países, ética e legislação variam; no Brasil, há poucas restrições à descoberta, escavação, estudo ou exibição de materiais humanos de origem histórica/arqueológica. Como consenso, as condutas devem ser pactuadas com as comunidades que se reconhecem/são reconhecidas como relacionadas ao material estudado, cabendo  decisões de foro íntimo aos profissionais, desde que respeitado o Código de Ética da Sociedade de Arqueologia Brasileira.

Em muitos casos, a escavação e o estudo de remanescentes humanos têm ajudado a reafirmar propriedades, territórios e valores, como no caso dos Pretos Novos, cemitério colonial do Porto de desembarque de escravos na Gamboa, sobre o qual publicamos com alunos e colegas do Densp. Apesar do crescente número de publicações mundiais sobre a ética em antropologia e dos avanços científicos que promovem, pesquisadores alertam para a falta de supervisão ética ou regulatória de tais estudos, cuja falta de controle permite práticas eticamente questionáveis. A que se deve essa falta de supervisão? E o que pode ser feito para solucionar o problema? 

Sheila: Superar a diversidade dos discursos e vozes que falam sobre ética num campo como o antropológico só será possível com muito amadurecimento e trocas permanentes de experiências. E, nesse sentido, entendo que nosso CEP, exemplar em seu trabalho, vem amadurecendo e, como tal, sendo capaz de colaborar efetivamente com o país por meio de relações intra e interinstitucionais produtivas e de aperfeiçoamento em benefício da ética em pesquisa em saúde.

Qual a importância do Sistema CEP/Conep para a ética na Paleopatologia?

Sheila: Como dito anteriormente, muitas questões relacionadas à ética na pesquisa dos achados arqueológicos não se relacionam ao que é defendido e cuidado pelo sistema CEP/Conep, criado para dar respostas à área da pesquisa em saúde. Embora estudando também questões de saúde, como já mencionado, trabalhamos a partir de evidências completas ou parciais de corpos humanos (e de outras espécies) datados de outros tempos, e, assim, a preocupação com a proteção e direitos devidos aos sujeitos de pesquisa, tal como entendido aqui, em geral, não trazem impacto. Entretanto, em nossas pesquisas, estamos perfeitamente alinhados aos princípios da Integridade em Pesquisa defendidos pela Fiocruz e, naturalmente, acompanhados pelas demais instâncias regulatórias da pesquisa bioarqueológica na área, como o Código de Ética da Sociedade de Arqueologia Brasileira e os olhares de organismos internacionais da mesma área, onde os direitos e deveres em relação aos membros de comunidade atuais presumidademente relacionadas aos despojos são considerados.  



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