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Crise climática impõe novos desafios à saúde pública e exige fortalecimento do SUS, afirmam pesquisadores

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Publicado em:05/11/2025

Por Bruna Abinara 

 

O avanço da crise climática e a intensificação dos eventos extremos têm produzido impactos diretos e indiretos sobre a saúde das populações e o funcionamento dos sistemas de saúde. Em entrevista ao Informe ENSP, os pesquisadores Carlos Machado, do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (Cepedes/ENSP), e Adelyne Mendes, do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde (Daps/ENSP), analisam as interseções entre saúde e clima, os caminhos para a construção de sistemas de saúde resilientes e as prioridades que devem orientar as políticas públicas de adaptação e justiça climática no Brasil. Os especialistas também destacam o papel estratégico da COP30, realizada em Belém, no Pará, como oportunidade para reafirmar o compromisso global com a proteção da saúde diante das emergências climáticas. 


Leia a entrevista completa:  


Informe ENSP: De que formas a crise climática e os eventos extremos influenciam o funcionamento dos sistemas de saúde? Quais são os principais pontos de interseção entre a saúde pública e a crise climática?  


Adelyne Mendes: A crise climática afeta os sistemas de saúde por três vias principais: aumento da demanda por cuidados (ondas de calor, enchentes, surtos de doenças transmitidas por vetores e por água, agravamento de doenças crônicas); redução da oferta, com danos diretos a infraestrutura (hospitais inundados, redes elétricas e sistemas de água comprometidos) e interrupção de cadeias de insumos; e impactos indiretos sobre os determinantes sociais da saúde (segurança alimentar, deslocamentos populacionais, saúde mental), que geram novas necessidades de atenção. Essas três vias frequentemente ocorrem simultaneamente, sobrecarregando serviços e trabalhadores de saúde. Saúde pública e clima se cruzam porque ambos tratam de riscos coletivos e de justiça social. 


Carlos Machado: Vamos primeiro tratar as mudanças climáticas como uma emergência climática, uma vez que em 2024, pela primeira vez, a temperatura média global ultrapassou 1,5°C do seu nível pré-industrial, indicando que a meta do Acordo de Paris, de limitar o aquecimento global até o final do século XXI, não será cumprida. Neste cenário, a literatura e os dados demonstram um aumento na frequência, na intensidade, na extensão e na duração de eventos climáticos extremos, como ondas de calor, inundações, secas, incêndios florestais e queimadas, só para citar alguns eventos.  


Estes eventos afetam a saúde das populações de dois modos. Primeiro, através de efeitos sobre a saúde como doenças transmitidas pela água e outros impactos à saúde relacionados à água, às zoonoses, às doenças respiratórias e às doenças transmitidas por vetores, à saúde mental, ao agravamento de doenças crônicas, à insegurança alimentar e nutricional, entre outros efeitos. Segundo, através dos impactos sobre os sistemas e serviços de saúde que comprometem temporariamente o acesso da população aos cuidados e ações de saúde. No desastre do Rio Grande do Sul, quase 300 estabelecimentos de saúde foram atingidos, alguns completamente danificados. Só para citar um exemplo, o Hospital do município de Canoas, que era referência para 103 municípios e cerca de 3 milhões de pessoas, foi totalmente danificado. No outro extremo, na Amazônia, a seca isolou comunidades, contribuindo para produzir diferentes impactos diretos sobre a saúde, mas também comprometendo de modo direto o acesso aos serviços de saúde, já que a mobilidade pelos rios, que é vital na região, foi totalmente ou parcialmente comprometida. 

 

Informe ENSP: O que é um sistema de saúde resiliente às mudanças climáticas? Quais características e capacidades ele deve ter?   


Adelyne Mendes: Um sistema de saúde resiliente é aquele que tem capacidade de prevenir, detectar e responder às ameaças à saúde relacionadas ao clima, ao mesmo tempo em que minimiza sua própria contribuição para a crise climática. Um sistema de saúde resiliente depende de financiamento estatal sustentável e suficiente, além disso, outras cinco características e capacidades são essenciais:  


- Infraestrutura resistente: instalações projetadas para resistir a inundações, calor extremo e interrupções de energia; sistemas backup de energia e água; e cadeias logísticas alternativas. 

- Sistema de vigilância integrada: sistemas de informação que integrem dados climáticos, epidemiológicos e ambientais para antecipar surtos e impactos.  

- Força de trabalho em saúde capacitada e protegida: profissionais de saúde preparados para respostas a eventos extremos, dispondo de boas condições de trabalho e remuneração.

- Sistema de inovação e produção de insumos estratégicos, incluindo ações de pesquisa e desenvolvimento tecnológico.

- Governança e colaboração intersetorial: articulação entre saúde, meio ambiente, água e saneamento, planejamento urbano e proteção social, incluindo participação comunitária e atenção à justiça climática. 

 

Carlos Machado: O Marco de Sendai, que é um marco global que orienta as políticas de redução de riscos de desastres, tem como um de seus princípios o de "reconstruir melhor" após um desastre, de modo que não se mantenham as condições de vulnerabilidades e riscos que existiam antes de um desastre. Este princípio está presente no Decreto presidencial nº 12.652, de 7 de outubro deste ano, que estabelece os princípios, as diretrizes e os objetivos do Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, no qual tenho muito orgulho de ter trabalhado, junto com uma equipe envolvendo PUC-Rio, UERJ, Universidade Metodista de São Paulo e o Cepedes/Ensp/Fiocruz. 


Uma das diretrizes deste plano estabelece uma conexão muito clara entre o fortalecimento das capacidades de respostas imediatas e os processos de recuperação das áreas afetadas, enfatizando a necessidade de se reconstruir melhor e de se adotar infraestruturas resilientes. Nesta perspectiva, um sistema de saúde resiliente envolve capacidades de preparação para riscos futuros desde a construçãoaté adaptações e modificações que permitam manter um nível aceitável de funcionamento, evitando situações simples, como geradores ou mesmo leitos clínicos e UTI nas áreas mais baixas de hospitais e que podem ser inundadas, comprometendo as capacidades de atenção e cuidados exatamente quando mais se precisa. Outras possibilidades envolvem a própria programação dos serviços, pois em períodos de seca ou mesmo ondas de calor, que podem ser mais ou menos antecipadas, pois sempre ocorrem em determinados períodos do ano a depender da região. Uma programação que considere desde o trabalho dos agentes comunitários de saúde e de endemias nas ruas, até mesmo o funcionamento dos serviços de saúde com adaptações que permitam proteger populações e trabalhadores do calor, além da organização da continuidade dos tratamentos e assistência farmacêutica durante períodos em que a comunicação pode ser parcial ou totalmente interrompida com baixa do nível dos rios. 


Informe ENSP: Quais medidas devem ser implementadas para garantir que os sistemas de saúde estejam preparados para os novos desafios climáticos e quais são os desafios para que essas iniciativas sejam implementadas de fato?  


Adelyne Mendes: É preciso implementar um plano nacional de resposta às emergências climáticas no SUS, com estruturas de governança que envolvam os diferentes entes federativos e os conselhos de participação social. Outras medidas importantes incluem: ampliar e adaptar a infraestrutura dos serviços de saúde, bem como investir em inovação e produção no SUS, tornando-o mais resiliente; capacitar adequadamente os trabalhadores; e garantir financiamento público estável e sustentável, incluindo fundos de reserva para emergências climáticas. O principal desafio é transformar planos em ações concretas diante de restrições políticas e orçamentárias. 

 

Informe ENSP: Quais populações são mais vulneráveis aos impactos da crise climática e das deficiências nos sistemas de saúde? 

 

Adelyne Mendes: As populações historicamente vulnerabilizadas são aquelas que sofrem de maneira mais intensa os impactos da crise climática e das deficiências nos sistemas de saúde. Os grupos populacionais tipicamente mais vulnerabilizados são: comunidades de baixa renda e moradores de assentamentos informais; povos indígenas e comunidades tradicionais; mulheres grávidas, pessoas com deficiência, minorias étnicas/linguísticas e migrantes/deslocados; idosos e crianças (particularmente sensíveis à exposição a calor extremo, doenças infecciosas e desnutrição); e trabalhadores com exposição direta a extremos climáticos (como por exemplo, agricultores e trabalhadores informais). 


A vulnerabilidade é produto das desigualdades estruturais presentes em países do sul global. Políticas de saúde climática precisam priorizar a justiça social e reduzir as desigualdades. 


Carlos Machado: Temos trabalhado com um conceito de desastre em que ele não resulta somente de um evento climático extremo, que, na verdade, é o detonador de um processo mais amplo em que as condições de vulnerabilidade de diferentes grupos populacionais são um tema central. As populações são diversas e, de modo geral, as mais pobres, marginalizadas e excluídas são as mais impactadas. Mas também idosos, crianças, mulheres e pessoas com deficiência e populações de rua. Neste aspecto, uma melhor compreensão envolve a interseccionalidade, uma vez que diferentes aspectos como raça, gênero e classe social se interconectam. 


No Brasil, um estudo publicado recentemente demonstrou que mais de 85% dos municípios brasileiros não têm planos de adaptação. No universo total, o estudo revelou que somente os municípios mais ricos e com população acima de 500 mil habitantes possuíam iniciativas de adaptação. Porém, mesmo os municípios mais ricos são heterogêneos e marcados por uma desigualdade estrutural, pois outro estudo publicado recentemente revela a sobreposição da vulnerabilidade climática com a vulnerabilidade das condições de vida nas favelas como resultado de precariedades históricas, o que potencializa crises combinadas ou mesmo em cascata, de modo que são as populações mais pobres e predominantemente negras (cerca de 73% da população que vivem em favelas é negra) as mais expostas aos riscos de eventos climáticos extremos. 


Neste contexto, políticas públicas de fortalecimento dos sistemas de saúde, com ampliação do financiamento e das capacidades de preparação, orientadas pelos princípios do SUS, como universalidade, integralidade e equidade, são vitais na organização dos processos de prevenção, resposta e reocupação com foco nas populações e nos territórios vulneráveis, como áreas de favelas e populações ribeirinhas, por exemplo, são fundamentais  


Informe ENSP: O que pode ser cobrado ou pactuado durante a COP30 no que diz respeito à saúde e à resiliência climática? Que tipo de acordo você espera que seja firmado? 


Adelyne Mendes: A COP30 será uma excelente oportunidade para que sejam pactuadas ações para o fortalecimento dos sistemas de saúde frente às emergências climáticas, ou seja, que coloquem a saúde no centro da agenda climática global. Deve-se cobrar financiamento para adaptação em saúde, metas para sistemas de saúde de baixo carbono e apoio técnico aos países mais afetados.  


Particularmente, eu espero que a COP30 promova uma ampla declaração política elevando a saúde como prioridade transversal nas negociações climáticas; e linhas de ação práticas, com financiamento para adaptação em saúde, compromissos voluntários para descarbonizar sistemas de saúde e criação/fortalecimento de mecanismos de cooperação técnica. Iniciativas como o Belém Health Action Plan indicam que haverá impulso político e técnico nessa direção. 


Carlos Machado: Esta é a trigésima COP e, com ela, estão colocados todos os desafios dos retrocessos ocorridos nos últimos anos, sendo marcante que no ano passado já ultrapassamos a meta de 1,5°C estabelecida no Acordo de Paris. É um contexto que não oferece muitas perspectivas animadoras. Deste modo, sem um compromisso efetivo dos países responsáveis pelos maiores níveis de emissões pela sua redução, como também no financiamento para os países mais vulneráveis e para adaptação, na perspectiva da justiça climática, creio que avançaremos muito pouco.   


Ao mesmo tempo, o Brasil sediando a COP30 tem responsabilidades imensas, entre estas, encontram-se as que envolvem investimentos em adaptação e resiliência, não somente compreendidas como medidas técnicas e operacionais, mas que envolvam diretamente o enfrentamento dos determinantes sociais e ambientais que produzem populações e territórios vulneráveis, reduzindo as desigualdades sociais.


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