Pesquisa investiga se infecções e vacinas em gestantes geram transtornos neurocomportamentais nos filhos
Por Tatiane Vargas e Barbara Souza
A exposição da gestante a infecções e a determinadas vacinas pode levar o filho a apresentar transtornos como esquizofrenia? Uma pesquisa realizada na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) busca responder a essa questão. O projeto “Vacinação e Ativação do Sistema Imunológico Materno na Gravidez: Transtornos neurocomportamentais e cognitivos na prole” investiga se os imunizantes contra Covid-19 (m-RNA, BTN16b2) e trivalente para influenza (fragmentada e inativada) aplicadas na gravidez alterariam, nos filhos adultos, respostas comportamentais que são consideradas equivalentes da esquizofrenia e outros transtornos mentais.
Para isso, os pesquisadores realizarão estudos experimentais em ratos. Faremos “estimulação do sistema imunológico materno durante a gravidez por vacinas contra a gripe e contra o Covid-19, e outros estímulos capazes de ativar a resposta imune inata do hospedeiro”, explicou o médico psiquiatra, doutor em farmacologia e pesquisador da ENSP, Francisco Paumgarttem, coordenador da pesquisa. “O desenvolvimento pós-natal da prole destas mães será acompanhado pela resposta a uma série de testes comportamentais, alguns tidos como “modelos” animais de transtornos mentais humanos”, disse.
Esse é um dos projetos selecionados pelo Edital de Pesquisa 2021, lançado pela ENSP, por meio da Vice-Direção de Pesquisa e Inovação, no âmbito do Programa de Fomento ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico Aplicado à Saúde Pública. Ao lado de Paumgarttem, a pesquisadora da ENSP e doutora em Oncologia, Maria Regina Carneiro, é a vice-coordenadora da iniciativa.
Confira a entrevista de Paumgarttem na íntegra, na qual ele detalha os objetivos, as metologias, as expectativas de resultados e os impactos sociais da pesquisa à sociedade. O pesquisador também comenta a importância de, além de divulgar os futuros resultados, mostrar como a segurança das vacinas é avaliada, especialmente no caso particular de vacinação durante a gravidez. “A questão teve uma grande e inédita visibilidade por ocasião da pandemia, mas merece ser abordada de uma maneira mais didática e ampla. A educação científica é a melhor vacina contra o negacionismo e movimentos irracionais do tipo 'antivacina'”, declarou.
Qual o principal objetivo do projeto de pesquisa?
Francisco Paumgarttem: Projetos de pesquisa são planos detalhados de estudos que visam responder perguntas relevantes para a sociedade e para as quais ainda não se têm respostas inteiramente satisfatórias. Em termos mais precisos, poder-se-ia dizer que o projeto de pesquisa delineia um conjunto de abordagens experimentais e/ou observações sistemáticas organizadas para desafiar uma hipótese científica, ou noção ou teoria. O que diferencia uma hipótese científica de uma noção não científica (ou dogma), é que a primeira pode ser testada e eventualmente refutada por estudos experimentais ou observacionais, enquanto a última não é testável. A teoria não-científica se apresenta como uma “verdade” indiscutível, e a pseudocientífica, como uma “verdade” que teria sido posta à prova, mas que, na realidade, não foi adequadamente testada.
A hipótese central a ser desafiada no nosso projeto é a de que a estimulação do sistema imunológico materno durante a gravidez, quer por infecções virais, quer por vacinas, ou por outro tipo de imune estimulação, aumentaria o risco de transtornos do desenvolvimento neurocomportamental do concepto após o nascimento, incluindo uma maior propensão a transtornos mentais como a esquizofrenia. Em outras palavras, a exposição às infecções maternas e à algumas vacinas no período pré-natal poderiam ser fatores de risco para a esquizofrenia, por exemplo. Há vários indícios originários de estudos experimentais e epidemiológicos anteriores que justificam a escolha da pergunta central da pesquisa: A vacinação (e.g., Covid-19 e Influenza) e a imuno-estimulação durante a gravidez aumentariam o risco de transtornos neurocomportamentais na prole exposta in útero?
As investigações epidemiológicas, observacionais, sobre a questão são limitadas e os achados conflitantes, permanecendo neste aspecto a pergunta central sem resposta satisfatória. O conjunto de indícios experimentais, por outro lado, é bem mais consistente, e aponta na direção da associação causal entre imune estimulação materna na gestação e maior propensão a distúrbios neurocomportamentais na prole, mas não há modelos animais que reproduzam com fidelidade a fenomenologia e a patogênese de transtornos mentais humanos complexos como a esquizofrenia.
Além da pergunta/hipótese central, outras questões relacionadas a ela também serão abordadas no plano de estudo, como, por exemplo, o efeito da vacinação na gravidez sobre o curso da gestação, perdas gestacionais (abortos) e desfechos do desenvolvimento do bebê verificáveis ao nascimento ou em seguida, no período neonatal.
Como o projeto de pesquisa será desenvolvido?
Francisco Paumgarttem: A pergunta da pesquisa será respondida por duas abordagens complementares. Estamos fazendo uma revisão sistemática (na verdade mais de uma) que poderá ser acompanhada de uma meta-análise, quando isto for possível, considerando a homogeneidade das investigações encontradas, dos estudos observacionais de boa qualidade, ou seja, excluindo da síntese conclusiva aqueles com elevado risco de vieses. A análise dos estudos observacionais localizados nas bases de dados pesquisadas convergirá para a síntese qualitativa (narrativa) e/ou quantitativa (meta-análise) da evidência epidemiológica disponível até o momento.
A outra abordagem envolverá a realização de estudos experimentais em ratos, com estimulação do sistema imunológico materno durante a gravidez por vacinas contra a gripe e contra o Covid-19, e outros estímulos capazes de ativar a resposta imune inata do hospedeiro. O desenvolvimento pós-natal da prole destas mães será acompanhado pela resposta a uma série de testes comportamentais, alguns tidos como “modelos” animais de transtornos mentais humanos.
Quais os resultados esperados?
Francisco Paumgarttem: A nossa expectativa é a de que os resultados obtidos nas revisões dos estudos epidemiológicos e no estudo experimental contribuam para fornecer uma reposta robusta à pergunta principal da pesquisa, e, também, às demais questões relacionadas.
Quais as contribuições o projeto de pesquisa traz para a sociedade?
Francisco Paumgarttem: A pergunta central e as demais a serem respondidas pela pesquisa são relevantes para a sociedade sob diferentes perspectivas. A justificativa inicial, a que parece ser mais óbvia, é que o estudo aprofundará a evidência sobre a segurança da vacinação, e dos produtos testados durante a gravidez. É importante salientar que nada pode ser considerado seguro apenas porque ainda não se evidenciou que tenha efeitos adversos ou prejudiciais à saúde. O peso da evidência de segurança depende não só da ausência da observação de danos à saúde, mas da extensão e rigor com que a hipótese de segurança foi desafiada, e, ainda assim, não pode ser refutada. É com o propósito anteriormente mencionado, que aprofundaremos a investigação da segurança da vacinação na gravidez. Avançaremos além dos estudos pré-clínicos corriqueiros de segurança, e analisaremos a evidência epidemiológica disponível.
Algumas vacinas como, por exemplo, as de vírus atenuados são contraindicadas na gravidez. A proteção conferida pelas vacinas de vírus vivos atenuados é importantíssima para uma gravidez saudável, mas, em princípio, elas devem ser administradas sempre antes da mulher engravidar. Seria o caso da vacina contra a rubéola.
No caso da gripe e da Covid-19, pode-se também proteger a gestante e o bebê administrando a vacina antes da gravidez. Entretanto, se uma grávida ainda não protegida é surpreendida por um surto epidêmico, conhecer melhor a segurança da administração da vacina na gravidez para poder ponderar os riscos da vacina contra os riscos inerentes à infecção na gestação, torna-se muito importante para a tomada de decisão de indicar ou não a vacinação.
A outra perspectiva sob a qual o estudo se justifica como potencialmente benéfico para a sociedade refere-se aos fatores de risco para os transtornos mentais. Conhecer tanto os fatores de risco quanto os de proteção para transtornos mentais graves como a esquizofrenia, ainda que sejam de magnitude pequena ou moderada, é da maior relevância para políticas públicas e medidas de prevenção da doença e promoção da saúde mental. Desnecessário lembrar que a carga dos transtornos mentais de diferentes tipos já é enorme e exibe uma clara tendencia de alta. A carga de uma doença ou agravo à saúde, é uma estimativa do impacto deles na sociedade, indicada pela soma dos anos perdidos pela morte prematura e por aqueles que foram vividos com a incapacidade, ambas devidas ao agravo em questão. O indicador mais empregado na área de saúde com esse fim é o DALY (“Disability Adjusted Life Years), ou “anos de vida perdidos ajustados por incapacidade”. Estimando o DALY, a partir da combinação de dados de mortalidade e morbidade, chegou-se à conclusão de que os transtornos mentais graves constituem hoje a principal causa de incapacidade, causando um em cada seis anos vividos com incapacidade.
Sabemos que os indivíduos com transtornos graves de saúde mental, além de todo o sofrimento associado à condição, morrem em média 10 a 20 anos mais cedo do que a população em geral. O aumento da prevalência dos transtornos mentais na população impacta fortemente na capacidade de resposta dos sistemas de saúde (e no SUS) e é neste aspecto um dos maiores desafios que se apresenta para as próximas décadas.
O projeto, portanto, foi pensado e organizado para responder perguntas ou questões de interesse para sociedade, ou seja, a segurança da administração de vacinas em mulheres grávidas, mais especificamente as vacinas contra a gripe (influenza) e contra a Covid-19. Ambas são reconhecidamente seguras fora da gravidez, mas há ainda lacunas a serem preenchidas em relação a segurança da administração na gravidez. A outra questão é a identificação de possíveis fatores de risco, como a estimulação do sistema imunológico materno com liberação de citocinas, que, ainda que sejam de pequena magnitude, poderiam contribuir para o aparecimento de transtornos mentais na prole exposta in útero.
Como a pesquisa contribui para a popularização da ciência?
Francisco Paumgarttem: Para responder à indagação de como os pesquisadores pretenderiam contribuir para “a popularização da ciência”, é preciso esclarecer o que isso significa exatamente. Alguns estudiosos diferenciam a simples divulgação ou transmissão do conhecimento científico, em linguagem acessível ao público leigo, e o assim chamado “jornalismo científico”, do que seria a “popularização do conhecimento científico”, que envolveria uma interação ou diálogo entre a Academia, onde esse conhecimento nasce, e a sociedade como um todo com os seus múltiplos “saberes” e crenças não científicas enraizadas. É claro que não se interage de forma producente subindo ao pedestal e tentando se impor pela arrogância. O cientista precisa calçar as sandálias da humildade, ser paciente, convincente e sobretudo mostrar na prática as vantagens da abordagem científica sobre as crenças não científicas na vida cotidiana. O método científico tem limitações, mas ainda assim é a melhor e a mais eficaz ferramenta que a humanidade dispõe para encontrar soluções, desbravar o desconhecido e enfrentar com êxito a incerteza do mundo natural.
No caso do nosso estudo, mais importante que “divulgar” os resultados que vierem a ser obtidos, é mostrar como a segurança das vacinas é avaliada, e como ela é avaliada no caso particular de administração/ vacinação durante a gravidez. Destacar os pontos fortes e fracos, e o valor preditivo dos estudos em animais e como é feito o estudo clínico de fases 1, 2 e 3 da eficácia e segurança de vacinas e das questões metodológicas, estatísticas e éticas envolvidas. A questão teve uma grande e inédita visibilidade na mídia por ocasião da pandemia de Covid-19, mas merece ser abordada de uma maneira mais didática e ampla no âmbito do que estamos considerando aqui “popularização científica”.
Estamos nos referindo ao que seria mais relevante do que apenas divulgar resultados de pesquisas, ou seja, descortinar como a evidência do que chamamos de “segurança” das vacinas é obtida, seus pontos fortes e limitações. Nós chamaríamos isso de uma contribuição à educação científica da sociedade. A educação científica, que deveria começar no ensino fundamental e médio, é a melhor vacina contra o negacionismo e movimentos irracionais do tipo “antivacina”.
Como o projeto pretende contribuir com informações científicas confiáveis sobre o uso de vacinas para Covid-19 durante a gestação?
Francisco Paumgarttem: A população e a sociedade têm em geral uma visão positiva da Ciência, e o que é qualificado de informação científica é quase sempre percebido como informação confiável. Ou seja, dizer “informação científica confiável” seria quase uma redundância. O que não é confiável, é o que se veste como Ciência, mas não é. É a pseudociência, ou Ciência ruim, malfeita. O leigo pode ser facilmente enganado, afinal, as vezes, até indivíduos educados são. O problema é que as pessoas muitas vezes não compreendem bem o que é a Ciência, e como é gerado o conhecimento científico, não tem noção do rigor exigido pelo método científico, e das limitações dessa abordagem para conhecer a natureza. Não sabem diferenciar claramente o que é fruto da abordagem científica daquilo que é pseudociência e das afirmações que não têm qualquer base científica.



