Ser, estar e habitar a desinstitucionalização da saúde mental brasileira: tema da 'Ciência e Saúde Coletiva' de janeiro
A travessia entre o hospício e a cidade, no século 21, segue sendo uma disputa política que convoca para o processo civilizatório democrático. A edição de janeiro da revista Ciência & Saúde Coletiva, com vários artigos da ENSP, enfoca os desafios da desinstitucionalização refletidos nas práticas cotidianas do direito à cidade para além da lógica manicomial. O editorial do fascículo convida os leitores para refletir sobre a multiplicidade das experiências locais e sobre os paradigmas científicos interdisciplinares e intersetoriais presentes no cuidado em liberdade a partir da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e seus dispositivos. Ocupar as arenas da ciência, da política e da cultura em prol de uma “sociedade sem manicômios” e da continuidade da Reforma Psiquiátrica é a convocação do tempo presente, afirma o editorial.
Assinado pelos pesquisadores Ana Paula Freitas Guljor, André Vinicius Pires Guerrero, Barbara Coelho Vaz, Fernanda Maria Duarte Severo, June Corrêa Borges Scafuto, Karine Dutra Ferreira da Cruz e Silvio Yasui, a publicação traz para o debate científico a reflexão sobre o direito à cidade-casa e a apropriação de condições de cidadania das pessoas que vivem com sofrimento psíquico. O “morar em liberdade” traz consigo a complexidade do habitar a cidade, para além da casa, a produção e a troca com valor de uso social, a consolidação dos processos identitários e do pertencimento a um ‘lugar’. Neste sentido, explicam os autores, as políticas afirmativas, serviços e dispositivos intersetoriais que garantem a sustentabilidade das práticas cotidianas desenvolvidas nas moradias e serviços residenciais terapêuticos e suas estratégias inclusivas de vizinhança, pertença, geração de renda e trabalho, resgates de afetos e ‘culturas’ estão no bojo social do que designamos como direito à cidade.
“O morar e o habitar são compostos por uma gama de ações de macro e micro políticas fundamentais à transmutação do sujeito-sujeitado em sujeito-cidadão. O direito à casa é, também, espaço de abrigo e continente para o movimento de ocupação das redes existenciais do urbano. Apesar do ponto de partida (hospício) e do ponto de chegada (cidade-casa) serem aparentemente claros, o trajeto a ser percorrido é transversalizado pelas armadilhas concretas e subjetivas do mundo globalizado”, observam. “Reencontrar os espaços da rua se configura como vivências positivas, mas também de retorno a uma cidade que enfrenta as consequências de uma pandemia, permeada pelo racismo estrutural, discriminação de classe e de gênero entre vários outros estigmas historicamente construídos.”
O movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira iniciado na década de 1970 ganhou força ao longo da década de 1980 em meio ao processo de redemocratização do país e da Reforma Sanitária que originou o Sistema Único de Saúde (SUS). A participação social de trabalhadores da saúde, usuários, familiares, pesquisadores, imprensa e outros atores sociais do campo da Saúde Mental/Políticas Públicas foi estratégica ao denunciar a violência dos hospitais psiquiátricos e a mercantilização do sofrimento psíquico pela “indústria da loucura”. A Lei nº 10.216/20011, conquista destes movimentos, é considerada o marco legal da reforma psiquiátrica brasileira por assegurar os direitos civis e humanos das pessoas em sofrimento mental, bem como garantir o cuidado comunitário. As normativas produzidas na década seguinte à publicação da Lei expressam os princípios da desinstitucionalização, objetivando transformações sociais a partir da prática clínica ampliada e da vida em liberdade.
A diversidade das experiências e práticas inovadoras da atenção psicossocial inspiraram a formulação das políticas de saúde mental brasileira em um movimento ascendente entre as três esferas do poder. No âmbito do resgate e garantia dos direitos dos sujeitos em sofrimento psíquico, os dispositivos de moradia, o direito à cidade e o arcabouço de políticas para inclusão social são necessários para consolidação da cidadania, permanecem como o desafio civilizatório para a transformação do lugar social da loucura, lembram os pesquisadores.
Confira os artigos com participação da ENSP:
A dimensão espacial e o lugar social da loucura: por uma cidade aberta, de Leticia Paladino e Paulo Duarte de Carvalho Amarante, mostra que o processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) propõe o rompimento com o paradigma manicomial em diversas dimensões. Pensar nos espaços de cuidado e no direito à cidade constituem bandeiras importantes para tal. Dessa forma, construímos um arcabouço teórico-conceitual objetivando discutir e sistematizar a relação da arquitetura dos espaços de cuidado destinados à loucura e à produção de subjetividades e relações. Assim, a partir da arqueogenealogia, eles organizaram um diálogo entre conceitos e autores que abordem o espaço e a arquitetura como dispositivos de produção de subjetividades e relações, tais como, instituições totais e mortificação do eu (Erving Goffman) e síndrome espaço-comportamental (Mirian de Carvalho), e experiências como as de Maura Lopes Cançado e Lima Barreto. Objetivaram, ainda, discutir e desenhar, pelas lentes de campos diversos de saber, um ideal de cidade que nos ajude a enfrentar o paradigma manicomial e fortalecer o processo de RPB: a cidade aberta, aquela que inclui a diferença. Eles propõem, como resultado deste artigo, construir e adicionar uma nova dimensão de análise de tal processo às já existentes: a dimensão espacial.
Sobre o viver em uma cidade capacitista: antes, durante e depois da pandemia da COVID-19, de Annibal Coelho de Amorim, Sônia Regina da Cunha Barreto Gertner, Laís Silveira Costa e Anna Paula Feminella, fala das imagens das cidades antes, durante e depois da pandemia de COVID-19 representam um desafio contemporâneo. Nesse período, pensar sobre o ser, o estar e o habitar em uma cidade/sociedade capacitista traz à tona a perda de direitos e as demandas de segmentos populacionais particularmente diante das barreiras arquitetônicas, comunicacionais, atitudinais, sensoriais e socioculturais. Tematizar sobre o viver as diferentes inacessibilidades cotidianas nas cidades tangenciam e suscitam discussões no plano ético-estético dos territórios existenciais das pessoas com deficiência e sofrimento psíquico. Em que medida, urbanistas mantém conceitos que sustentam constructos de invisibilidade, que refletem segregações geradas pela macropolítica? Estariam pensando as cidades sem pensar nas pessoas que nelas habitam? O ensaio colabora com o debate sobre a necessidade de ações que visam superar o capacitismo. Partindo de teorias das ciências críticas e da noção de direito do sujeito sanitário, sobrevoa-se a “paisagem do tema” com vistas à efetivação de políticas públicas acessíveis e inclusivas.
População em situação de rua: estigmas, preconceitos e estratégias de cuidado em saúde, de Cláudia Brito e Lenir Nascimento da Silva, aborda as representações sociais históricas sobre estigma e preconceito relacionado à População em Situação de Rua (PSR) que provocam sofrimento psíquico, sentimento de vergonha, afastamento das relações familiares e sociais. Esse artigo objetivou entender como a PSR e os profissionais de saúde percebem, reproduzem, elaboram e lidam as representações produzidas por suas condições sociais. Pesquisa qualitativa, que envolve Observação Participante. O estudo foi realizado no município do Rio de Janeiro em local onde o uso do crack tem prevalência importante. Análise foi realizada pelo método da narrativa fenomenológica. O estereótipo provoca uma autoimagem de pessoa indigna, indesejada, que justifica discriminações cotidianas e, sobretudo, a perda da condição mais importante de todos os seres: sua condição humana, além de legitimar desassistência e violência contra elas. Aprofundar as relações entre preconceitos e discriminações em contexto de população vulnerável e serviços de saúde, pode auxiliar projetos terapêuticos que promovam diminuição do sofrimento psíquico, melhor assistência e reconhecimento social de cidadania da PSR.
No artigo Análise das manifestações à Ouvidoria-Geral do SUS, no período de 2014 a 2018: evidências para a tomada de decisões, o objetivo dos autores Rafael Vulpi Caliari, Luciani Martins Ricardi e Marcelo Rasga Moreira é analisar as manifestações dos cidadãos à Ouvidoria-Geral do Sistema Único de Saúde (SUS), no período de 2014-2018, discutindo-as e compreendendo-as como evidências capazes de orientar a tomada de decisões dos gestores do SUS. Para isso, foi extraído o banco de dados do sistema informatizado OuvidorSUS, a partir de 16 variáveis referentes ao conteúdo das manifestações, à sua categorização e ao perfil do cidadão. Foram registradas 216.832 manifestações e 114.618 perfis dos cidadãos que entraram em contato com a Ouvidoria-Geral do SUS nesse período, sendo o principal canal o Disque Saúde 136. Os grupos que mais acessaram a Ouvidoria e responderam ao perfil do cidadão foram mulheres, brancos, heterossexuais, com idade entre 31 e 40 anos, nível superior completo ou incompleto, trabalhadores do setor privado e com renda entre 1 e 2 salários mínimos. As demandas, principalmente relacionadas a solicitações, reclamações e denúncias, tiveram como assuntos mais frequentes a gestão do sistema, a assistência à saúde e a assistência farmacêutica. Os registros apontam a importância da consolidação de variáveis estratégicas da Ouvidoria para a qualificação da gestão do sistema.
Os impactos das mudanças climáticas na Segurança Alimentar e Nutricional: uma revisão da literatura é o artigo de Tais de Moura Ariza Alpino, Maíra Lopes Mazoto, Denise Cavalcante de Barros e Carlos Machado de Freitas que fala da interface entre as Mudanças Climáticas e a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) que tem se destacado na agenda de desenvolvimento sustentável desde o início da década de 1990. Desde então, estudos demonstram que as mudanças climáticas possuem efeitos negativos na SAN, potencializados pela pobreza e desigualdade social. O objetivo deste artigo é realizar uma revisão relacionando mudanças climáticas e SAN. A pesquisa foi realizada no PubMed utilizando os descritores “climate change and food security” no título, selecionando somente artigos em português, espanhol e inglês e com relação direta com os temas. Os principais impactos das mudanças climáticas na SAN foram no acesso, produção, qualidade nutricional e volatilidade dos preços dos alimentos. Estratégias de mitigação/adaptação aos efeitos das mudanças climáticas na SAN também foram apontadas nos estudos, além de um panorama geográfico das publicações com domínio de estudos na África e Ásia, continentes marcados por desigualdade social e pobreza. As mudanças climáticas afetam as dimensões da SAN, especialmente em populações mais pobres e em situação de desigualdade social. A relevância dos temas suscita a premência de maior investimento em políticas públicas, estudos e pesquisas acerca da temática no mundo.
Estratégias adotadas para a garantia dos direitos da pessoa com câncer no âmbito Sistema Único de Saúde (SUS), estudo de Mario Jorge Sobreira da Silva e Claudia Garcia Serpa Osorio-de-Castro, fundamentado na Teoria da Estruturação de Giddens, buscou analisar as estratégias adotadas para garantir os direitos das pessoas com câncer em cinco municípios brasileiros, a partir da experiência de gestores e profissionais de saúde no contexto do Sistema Único de Saúde. Foi conduzido um estudo de casos múltiplos. A unidade de análise foi o município e a subunidade foi a unidade habilitada de atenção oncológica. Foi realizada a análise de conduta estratégica de dez gestores e 15 profissionais de saúde, a partir de entrevistas. Os resultados foram sistematizados em três dimensões: assistencial, judicial e social. Destacaram-se: a necessidade de expansão e organização da rede assistencial diagnóstica e terapêutica; a preocupação com o grande número de demandas judiciais, tanto pela sustentabilidade econômica do sistema de saúde, quanto pela promoção de iniquidades; a pouca resolutividade dos benefícios sociais, uma vez que não atendem a todos aqueles que necessitam. A percepção é de que as medidas adotadas são insuficientes para garantir os direitos da pessoa com câncer no sistema de saúde brasileiro.