Desafios contemporâneos da saúde do trabalhador é o tema da edição de dezembro da 'Ciência e Saúde Coletiva'
O último número do ano da revista Ciência & Saúde Coletiva trata dos “Desafios da Saúde do Trabalhador (ST) no Mundo Contemporâneo”, fruto de um processo de trabalho coletivo tendo no papel protagonista o Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh/ENSP/Fiocruz), que possibilitou o diálogo com instituições e movimentos sociais que integram a grande rede de ST no país. Segundo o editorial, assinado por Kátia Reis de Souza, Gideon Borges dos Santos, Luciana Gomes, Maria de Fátima Ramos Moreira, Renato Bonfatti, Rosângela Brito, pesquisadores do Cesteh, os artigos giram em torno dos seguintes eixos temáticos: desemprego, informalidade e saúde do trabalhador; formação e comunicação em Saúde do Trabalhador; precarização e intensificação do trabalho; saúde mental e trabalho; vigilância em Saúde do Trabalhador e substâncias químicas nas indústrias e a saúde de trabalhadores e populações.
Vive-se no Brasil uma crise sanitária, política e humanitária sem precedentes. A pandemia do novo coronavírus expressa, entre outros aspectos, a dramaticidade da questão social, como aprofundamento da concentração de renda e das desigualdades consequentes, dizem os pesquisadores. “No mundo do trabalho registram-se perdas de direitos e retrocessos de conquistas históricas da classe trabalhadora, como aposentadorias e previdência pública, bem como ampliou o número de acidentes e doenças ocupacionais.”
Retornaram, com mais força, antigos e novos modos de exploração do trabalho por meio da intensificação da jornada laboral, precarização do trabalho e desemprego estrutural, traços marcantes das estratégias de dominação da classe trabalhadora, acrescentam os autores.
“Soma-se a esse cenário desalentador governos conservadores de ultradireita e anticiência que atuam na direção do aumento dos privilégios de classe. Nada exatamente novo, pois tratam-se de estratégias que acentuam as formas de exploração e opressão de raça e gênero, o que contribui para a triste expansão da violência, fome e declínio na qualidade das condições de vida e de saúde da classe trabalhadora”, criticam eles. Por outro lado, eles dizem que trabalhadores(as) desenvolvem novos modos de ação e estratégias criativas, individuais e coletivas, para driblar as adversidades do trabalho e se contrapor às ofensivas do capital.
No que tange, especificamente à relação trabalho, saúde e ambiente, compreende-se que o trabalho está associado, permanentemente, à produção de danos à saúde, podendo causar doenças, reduzir a vida profissional e levar à morte do trabalhador quando realizado em condições ambientais inadequadas, de acordo com o editorial. “Todos os processos de trabalho envolvem situações de risco, que atuam direta ou indiretamente de diferentes formas, como fisiológicas, psicológicas e emocionais, sobre o(a) trabalhador(a). Importa considerar, ainda, que no plano estrutural as condições ambientais são modificadas de acordo com os interesses e conveniência de reprodução do capital, gerando impactos à saúde e aumento de vulnerabilidades humanas e sociais.” Nessa perspectiva, não existe desastre verdadeiramente natural, considerando que natureza, vida e ação humana estão metabolicamente interligados, reprovam os estudiosos.
Confiram os artigos dos pesquisadores da ENSP.
Lutas operárias da Construção Civil no COMPERJ: questões para a ação sindical e a saúde dos trabalhadores Civil, de Hugo Pinto de Almeida, Kátia Reis de Souza, e José Augusto Pina trata do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, uma das maiores obras da construção civil pesada no Brasil. Em 2014, foi realizada uma grande greve por melhorias nas condições de trabalho que expôs diferentes perspectivas acerca da representação dos trabalhadores e por motivo sindical. O estudo analisa os sentidos postos pelos modos de ação operária e sindical em suas implicações à defesa coletiva da saúde nesta experiência grevista. Nos resultados, produziu-se uma reconstrução dessas lutas sob a perspectiva dos trabalhadores, analisando as pautas de greve e a organização, mobilizações e tensões presentes entre trabalhadores de base e o sindicato da categoria. Ressaltou-se a formação de uma Comissão de Base, por decisão dos próprios operários, na tentativa de atuar de maneira autônoma ao sindicato oficial. Constatou-se diferentes respostas do Estado, empresas e sindicato representativo como forma de desarticular a luta dos trabalhadores. Ao fim, verificou-se luta para melhoria das condições de trabalho e defesa coletiva da saúde, por parte das organizações de trabalhadores nos locais de trabalho.
O artigo “Parceiros” assimétricos: trabalho e saúde de motoristas por aplicativos no Rio de Janeiro, Brasil, de Letícia Pessoa Masson, Simone Oliveira, Márcia Teixeira e Samara Leal, da ENSP; Denise Alvarez, da UFF; Gabriela Siqueira Salomão, Sarah de Paulo do Amaral, e Cirlene de Souza Christo, da UFRJ, é fruto de resultados preliminares de uma pesquisa em andamento com motoristas por aplicativo e tem por objetivo discutir sobre como tem se dado o jogo de forças nas relações que se estabelecem entre as empresas, os trabalhadores, os órgãos reguladores e a sociedade. O estudo exploratório, com abordagem qualitativa, utilizou análise documental, questionário e entrevistas semiestruturadas com motoristas ligados a associações do Rio de Janeiro/RJ. Tendo como base o referencial teórico-metodológico da Ergologia, e a partir dos espaços micro e macroscópico da vida social, a análise se deu em uma perspectiva tripolar, abarcando os pólos referentes à atividade humana, ao mercado e à política. Os resultados apresentam normas antecedentes que vêm sendo construídas sobre este trabalho na relação com as empresas, com os passageiros e entre os próprios motoristas, além de questões trazidas a partir da pandemia de Covid-19. Conclui-se ser necessário não contrapor a evolução tecnológica à conquista de direitos e da saúde dos trabalhadores, sendo imperativo lembrar que nenhuma ação que vise garantir a conciliação entre saúde, trabalho e direitos conseguirá avançar sem contar com uma dinâmica frutífera, e tendencialmente equilibrada, entre os três pólos mencionados.
Trabalho docente, desigualdades de gênero e saúde em universidade pública, artigo de Katia Reis de Souza, Andréa Maria dos Santos Rodrigues, Eliana Guimarães Felix, Luciana Gomes e Maria Blandina Marques dos Santos, da ENSP; e Regina Helena Simões-Barbosa, da UFRJ, tem como objetivo do presente estudo foi problematizar aspectos do trabalho docente do ensino superior em relação a gênero, políticas de avaliação e saúde. Para tal, realizou-se uma pesquisa social de caráter qualitativo sob a vertente dos estudos participativos e do enfoque do feminismo materialista. A análise do material foi efetuada por meio da análise de conteúdo, na modalidade temática, e identificados quatro temas principais: conflitos entre trabalho docente e trabalho doméstico; trabalho docente, maternidade e culpa; políticas de avaliação do trabalho docente e relações de gênero; divisão sexual do trabalho e docência. Percebeu-se o quanto as demandas da esfera produtiva têm extrapolado o tempo da jornada de trabalho para a esfera reprodutiva e a vida privada das professoras, comprometendo a luta e a defesa pela saúde que podem levar a processos de sofrimento e adoecimento. O tema da divisão sexual do trabalho em universidades públicas desponta como importante questão que evidencia sobrecarga de trabalho e mal estar psíquico, especialmente em um momento em que o trabalho docente se torna crescentemente competitivo. Concluiu-se pela imperativa necessidade de investimentos em políticas públicas que garantam igualdade de gênero no trabalho do ensino superior.
No artigo Pessoas vivendo com HTLV: sentidos da enfermidade, experiência do adoecimento e suas relações com o trabalho, estima-se uma prevalência de 2,5 mi lhões de pessoas infectadas pelo vírus linfotrópico de células T humanas (HTLV) no Brasil, atingindo sobretudo populações negras e de baixo nível socioeconômico. O artigo apresenta parte dos resultados de pesquisa que objetivou compreender a experiência do adoecimento de pessoas vivendo com HTLV, os modos de andar a vida e as relações com o trabalho. A análise do discurso utilizou referenciais das Ciências Sociais e as narrativas orais constituíram o corpus analisado com o uso do software Sketch Engine. As manifestações do HTLV trazem prejuízo funcional e influenciam nos modos de andar a vida, repercutindo no trabalho formal, informal e doméstico. As narrativas evidenciaram queixas relativas a sintomas físicos e outros problemas de saúde além de preconceito, falta de apoio familiar e expressivas repercussões no trabalho. As condições materiais, simbólicas e subjetivas dos trabalhadores causadas pela perda progressiva da capacidade física e a aposentadoria precoce afetam não somente a esfera física, assim como a psíquica e social. A autoria do artigo é de Maria Clara Leal Teixeira e Élida Azevedo Hennington, da ENSP.
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Imagem: Tela "Operários", de Tarsila do Amaral
Fonte: Ciência e Saúde Coletiva