Dia Nacional de Prevenção da Obesidade: ENSP debate as atribuições do Estado sobre a questão
Dados demonstram que 54% dos adultos e 33,5% das crianças sofrem com excesso de peso e obesidade. O consumo insuficiente de frutas e verduras e o aumento do consumo de ultraprocessados, somados ao baixo perfil de atividade física, contribuem para a crescente prevalência de excesso de peso e obesidade e da incidência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Um estudo, publicado no Cadernos de Saúde Pública, analisou as ideias em disputa em torno das atribuições do Estado na prevenção e controle da obesidade infantil no Brasil. 11 de outubro é o Dia Nacional de Prevenção da Obesidade, e a ENSP reforça a discussão sobre o tema.
No artigo Ideias em disputa sobre as atribuições do Estado na prevenção e controle da obesidade infantil no Brasil, as autoras Patrícia Henriques, Luciene Burlandy, Patricia Camacho Dias e Gisele O'Dwyer afirmam que as concepções sobre obesidade infantil, bem como as ações propostas para seu enfrentamento, estão relacionadas com as ideias e os interesses em torno dos tipos de intervenção que são possíveis; do papel que os governos desempenham; do âmbito de atuação governamental; e das atribuições dos diferentes setores e instituições envolvidos. Portanto, elas dizem que as ações regulatórias que tensionam o setor privado comercial e podem incidir diretamente no lucro das empresas envolvem disputas em torno de atribuições estatais que podem afetar sua margem de lucro.
As ideias em disputa sobre os fatores condicionantes da obesidade, sobre a forma como se explica o problema e sobre quais as ações devem ser adotadas pelo Estado indicam a dinâmica de interesses e influências que envolvem a questão alimentar e nutricional em torno do Estado, acrescentam as pesquisadoras. “As estratégias governamentais de apoio, incentivo e proteção são igualmente importantes, mas sua operacionalização impõe desafios políticos e de gestão que são distintos.” E ainda: As ações regulatórias que se propõem a criar diretrizes e/ou restrições para a atuação do setor privado comercial são as que mais provocam o debate sobre os limites de atuação do Estado na regulação das atividades comerciais e/ou de espaços institucionais. “Essas ações objetivam proteger a população contra práticas não saudáveis e abusivas, no entanto, são capitaneadas no discurso do setor privado como ações que cerceiam a liberdade dos indivíduos, ainda que sejam voltadas para regular as práticas deste setor”, denunciam.
De acordo com o artigo, os argumentos contrários à atribuição regulatória do Estado são pautados nos condicionantes “individuais” da obesidade, o que a princípio parece ser um contrassenso, pois são as práticas institucionais do setor privado comercial que são objeto de regulação e não o comportamento dos indivíduos. “Esse tipo de argumento é parte da ação política corporativa, pois omite os conflitos de interesses com o setor privado comercial, que vêm contribuindo para retardar a redução da prevalência da obesidade em diferentes países.”
Segundo artigo, o governo brasileiro propôs um conjunto de ações para a Promoção da Alimentação Adequada e Saudável (PAAS), com reflexos potenciais no enfrentamento da obesidade infantil, formalizadas nos documentos da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) e da Política Nacional de Promoção da Saúde, além dos Guias Alimentares para a População e para as crianças menores de dois anos, e do Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional. No entanto, o ritmo de implementação é descompassado, pois afeta de forma distinta os interesses dos atores envolvidos. Esse processo é condicionado pelas ideias em disputa sobre as atribuições do Estado e dos governos, e sobre os limites de intervenção estatal na vida privada e nos setores econômicos, especialmente na regulação das práticas produtivas e comerciais da indústria.
Os argumentos que balizam a defesa de que uma determinada ação é estratégica para a PAAS estão associados a “soluções” que atendem a determinados interesses e que abarcam desde ações estatais normativas, coercitivas, impositivas, regulatórias ou estratégias mais pactuadas em uma perspectiva de um Estado menos interventor. Conformam-se diferentes ideias sobre o quanto o Estado e os governos devem intervir ou não na esfera privada, como devem e em quais questões. Controvérsias sobre esses temas são históricas e centrais na análise de políticas públicas e atravessam o pensamento acadêmico no campo da ciência política há algumas décadas.
Ideias e argumentos em disputa quanto às atribuições do Estado
Alguns documentos de políticas nacionais sinalizam contradições quanto às estratégias adotadas pelo próprio governo, uma vez que reconhecem que as práticas do setor privado comercial contribuem para o aumento da obesidade, mas sugerem ações que atribuem a este setor o status de “parceiro”.
No discurso do setor privado comercial a solução para a epidemia da obesidade infantil passa pela família, pela educação e pela autorregulamentação da publicidade de alimentos exercida pelo CONAR e não pelos mecanismos de regulação estatal. O depoente do setor privado comercial defende o setor publicitário argumentando que “para muitos, a publicidade de alimentos e refrigerantes tornou-se a vilã que precisa ser banida com a maior brevidade possível e sem maiores discussões, como se essa medida fosse capaz de acabar com a obesidade”. Ainda como parte da mesma narrativa, o Estado deve “fornecer educação”, alimentação escolar, fazer comunicação sobre a alimentação “correta” e estimular o exercício físico.
Contrariamente, a ideia fortemente disseminada pela sociedade civil organizada, e por alguns depoentes do governo, é que o Estado deveria desempenhar um papel regulatório fundamental sobre a ação e a publicidade das indústrias de alimentos ultraprocessados, protegendo a alimentação não só das crianças, mas da população como um todo, por meio de ações que assegurassem alimentação escolar saudável, rotulagem frontal de advertência e tributação de alimentos com alto teor de açúcar.
Programas e ações propostos pelos diferentes segmentos
A escola foi apontada como o espaço mais estratégico para o desenvolvimento de ações de prevenção e controle da obesidade infantil, por possibilitar que as crianças acessem uma alimentação mais saudável e, ao mesmo tempo, vivenciem atividades favoráveis à saúde e à alimentação adequada. Foi consenso entre todos os depoentes que as atribuições do Estado nesse sentido devem focar em programas no âmbito da escola e em ações de educação alimentar e nutricional.
A educação alimentar e nutricional foi reiterada pelos depoentes dos três segmentos como atribuição do Estado. Para além das ações educativas no espaço da escola, a maioria dos entrevistados da sociedade civil organizada e governo citaram o Guia Alimentar para a População Brasileira como potencial para a PAAS, por veicular informações de forma mais acessível e menos prescritiva.
Foi consenso para os depoentes da sociedade civil organizada que o Estado deve regular a publicidade de alimentos dirigida ao público infantil, atualizar o modelo de rotulagem nutricional e propor medidas fiscais para a taxação de alimentos ultraprocessados. Já os depoentes do Estado não foram unânimes quanto a essas perspectivas, especialmente aqueles situados em cargos de confiança e nos mais altos escalões da hierarquia institucional.
Nessa direção, o argumento de parte da sociedade civil organizada refere-se à falta de comprometimento dos representantes governamentais que em princípio deveriam defender o interesse público. “Existem diferenças de intenções individuais e partidárias sem limites éticos, morais e legais que corrompem o objetivo maior do Estado”.
Concluindo, o artigo aponta quanto aos acordos realizados entre o governo e as indústrias de alimentos para a redução dos teores de sódio, gorduras e açúcares, que alguns depoentes da sociedade civil organizada e de instituições governamentais argumentaram que eles não são efetivos para a PAAS e reversão do quadro de obesidade, por considerarem que mesmo que se retire um certo percentual destes ingredientes, os produtos ainda continuam sendo ultraprocessados.
O artigo pode ser acessado, na íntegra, aqui.
Fonte: Cadernos de Saúde Pública