Artigo critica a inclusão do ‘kit-covid’ no Programa Farmácia Popular do Brasil
O Ministério da Saúde estuda incluir no programa Farmácia Popular do Brasil (PFPB) o "kit Covid" (cloroquina e seu derivado, a hidroxicloroquina, a ivermectina, a nitazoxanida, o remdesivir e a azitromicina). Um artigo com participação da pesquisadora Claudia Garcia Serpa Osorio-de-Castro, do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica-NAF/ENSP, abordou a exposição da população brasileira a riscos inadmissíveis, potencialmente relacionados ao uso não racional destes medicamentos.

O artigo O “kit-covid” e o Programa Farmácia Popular do Brasil, publicado no Cadernos de Saúde Pública, de autoria das pesquisadoras Cláudia Du Bocage Santos-Pinto, Elaine Silva Miranda e Claudia Garcia Serpa Osorio-de-Castro, relata que, desde o início da pandemia, muitos medicamentos já utilizados em outras doenças foram propostos como possibilidades terapêuticas contra a Covid-19 - os chamados medicamentos “reposicionados”, entre eles a cloroquina e seu derivado, a hidroxicloroquina, a ivermectina, a nitazoxanida, o remdesivir e a azitromicina. Entretanto, quase um ano após o início da pandemia, não há evidências científicas que respaldam o uso dessas substâncias na prevenção ou tratamento da Covid-19.
O artigo manifesta que países que, em um primeiro momento, viram em alguns desses medicamentos uma esperança de cura, hoje os descartaram de seus protocolos. Em junho de 2020, o governo dos Estados Unidos suspendeu a autorização de uso emergencial que permitia que o fosfato de cloroquina e o sulfato de hidroxicloroquina fossem utilizados para tratar pacientes hospitalizados com Covid-19, fora de ensaios clínicos. O comunicado emitido pela Agência Americana de Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA), dizia que os eventuais benefícios atribuídos à cloroquina e hidroxicloroquina não compensavam os riscos conhecidos de seu uso.
Mesmo diante deste cenário, a postura adotada pelo governo brasileiro foi a de incentivar a utilização dos medicamentos, dando à cloroquina e à hidroxicloroquina status de “bala de prata” contra a Covid-19, atentam as pesquisadoras. Protocolos do Ministério da Saúde, ainda vigentes, incluem estes medicamentos como indicações para o manejo de pacientes com sintomas leves, moderados e graves, e nas diversas fases de evolução da doença.
Conforme dizem as pesquisadoras, a promoção do uso de cloroquina e hidroxicloroquina trouxe consequências diversas. Uma pesquisa do Conselho Federal de Farmácia (CFF) comparou as vendas de medicamentos e suplementos alimentares, de janeiro a março de 2019, com as de 2020, mostrando um aumento de 68% nas vendas de hidroxicloroquina nesse período. Em decorrência, foi observada escassez generalizada do medicamento nas farmácias, prejudicando pacientes que dele dependiam para outras condições de saúde.
No fim de maio de 2020, o Governo Federal anunciou o recebimento de uma doação dos Estados Unidos de cerca de 2 milhões de doses de hidroxicloroquina. O momento coincidiu com o anúncio do abandono do uso desse medicamento para tratamento da Covid-19 nos Estados Unidos. A doação foi recebida pelo Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército, e se somou ao quantitativo já produzido pelo órgão. Esse investimento do governo brasileiro na produção de cloroquina se tornou alvo de investigação por parte do Tribunal de Contas da União (TCU), e também de questionamento pela Câmara dos Deputados, em função do montante gasto na produção de um medicamento sem comprovação científica para Covid-19, o que poderia ferir o princípio da eficiência na administração pública.
Relatório que analisou padrões de desinformação entre países durante a pandemia mostrou, por meio de análises hipergeométrica e qualitativa, que o Brasil é o país que mais se destaca no que diz respeito à desinformação relacionada a medicamentos. Cloroquina e hidroxicloroquina continuam sendo mencionados como possíveis tratamentos ao longo da pandemia, indicando que as evidências científicas não estão sendo adequadamente captadas pelo debate público brasileiro. Tal fato tem forte relação com o posicionamento de autoridades e órgãos governamentais, como o próprio Ministério da Saúde, mostrando a desinformação como tática intimamente ligada às disputas políticas internas no país.
O artigo observa que a defesa do “tratamento precoce”, baseado em cloroquina/hidroxicloroquina e outros medicamentos, tornou-se, no Brasil, símbolo do viés político no enfrentamento da epidemia. A alternativa dada pelo governo perpassa a disponibilização do dito “kit-covid” em unidades básicas de saúde, o que foi adotado em alguns municípios brasileiros, alinhados com a premissa do Governo Federal. O “kit-covid” consiste em uma variação de combinações que incluem, invariavelmente, a cloroquina/hidroxicloroquina, a azitromicina, a ivermectina, e mais outros medicamentos, a depender da localidade. Agora, o Governo Federal sinaliza para a disponibilização do “kit-covid” também nas farmácias conveniadas do Programa Farmácia Popular do Brasil (PFPB).
O PFPB foi criado com o intuito de ampliar o acesso a medicamentos no país, visando as condições de saúde mais prevalentes, e a parcela da população com menos recursos. Estima-se que, durante muito tempo, guardadas as críticas existentes sobre o direcionamento de recursos para o setor privado em detrimento do investimento público, o PFPB foi capaz de cumprir seu propósito, seguindo os preceitos dispostos na Política Nacional de Assistência Farmacêutica, e na Política Nacional de Medicamentos. Observou-se um grande volume de usuários atendidos e uma grande capilaridade do PFPB, por meio das unidades próprias e conveniadas em todo país.
No primeiro momento da pandemia de Covid-19, o PFPB, coadunante com as regras de distanciamento social, se organizou para ampliar as quantidades de medicamentos do Programa autorizadas para dispensação, por paciente, e facilitou sua retirada por terceiros, visando diminuir a circulação de pessoas, principalmente aquelas pertencentes a grupo de risco. No entanto, em dezembro de 2020, o PFPB passa a ser noticiado pela possibilidade de dispensação do “kit-covid”.
Esta não é a primeira vez que o PFPB desempenha papel durante emergências sanitárias. O artigo recorda que o fosfato de oseltamivir (Tamiflu), utilizado no tratamento da gripe H1N1, começou a ser dispensado pelo PFPB em abril de 2010. O Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fundação Oswaldo Cruz (Farmanguinhos/Fiocruz) foi o responsável pela produção do medicamento, a partir do princípio ativo que o Ministério da Saúde tinha em estoque, e todas as unidades próprias do PFPB - cerca de 530 à época - passaram a disponibilizar, no total, mais de 2 milhões de tratamentos a pacientes com sintomas de gripe. O oseltamivir também foi disponibilizado nas farmácias privadas conveniadas, com subsídios do governo. O Ministério da Saúde recomendou também às Secretarias de Saúde dos estados e municípios que descentralizassem os estoques do medicamento, de modo a proporcionar o acesso imediato. Ressalta-se que a indicação do medicamento então aprovada no país, dispunha que o oseltamivir deveria ser utilizado apenas em pacientes com quadro de doença respiratória grave, e nos quais o início dos sintomas tivesse ocorrido nas 48 horas anteriores.
As pesquisadoras explicam que, naquele momento, havia início de pânico instaurado e, ao mesmo tempo, a propaganda massiva do produto pela indústria. Deste modo, o oseltamivir, que posteriormente foi reconhecido pela comunidade científica como tendo eficácia modesta e limitada no combate ao H1N1, foi transformado em objeto de desejo de pessoas com quaisquer sintomas suspeitos, aumentando o volume de prescrições. A dispensação nas unidades da PFPB por todo o país, patrocinada pelo Governo Federal, oportunizou a discussão sobre a qualidade desse uso e a apropriação do Programa para distribuição dos estoques do medicamento.
Elas alertam que, diante da pandemia da Covid-19, novamente aventa-se o uso da Farmácia Popular para promover a distribuição de medicamentos. Desta vez, porém, além de não existirem evidências de benefícios de eficácia e segurança na doença em questão, há claras indicações de potenciais riscos. O uso de cloroquina e seus derivados pode levar ao agravamento de quadros de pacientes com doença cardíaca prévia. Somam-se assim novas questões, envolvendo a prescrição e a dispensação de medicamentos para uso não aprovado pelo órgão regulador, amplificando os riscos sanitários relacionados à pandemia.
O uso off-label é, por definição, não autorizado pela agência reguladora, mas, muitas vezes, é um uso absolutamente necessário, como quando os trâmites de autorização não avançam na mesma velocidade de evidências de benefício, ou quando a falta de ensaios clínicos em alguns grupos de pacientes impede a indicação que se estima segura e potencialmente eficaz nesses grupos.
De acordo com o artigo, admitiu-se o uso off-label para a cloroquina e para a hidroxicloroquina no momento inicial da pandemia, quando ainda pairavam as hipóteses sobre sua eficácia na Covid-19. O Conselho Federal de Medicina (CFM) se posicionou apontando que o uso prescrito desses medicamentos na Covid-19 poderia ser resultante de consenso entre médico e paciente. Entretanto, esta posição encontra-se seriamente abalada após a publicação de consensos de especialistas no Brasil e de estudos que apontam a falta de benefício clínico destes medicamentos, aumentando o questionamento da persistência das prescrições e da dispensação destes medicamentos para a Covid-19.
A Assistência Farmacêutica, parte integrante e essencial do sistema de saúde brasileiro, é responsável pela disponibilização de medicamentos à população, prezando pelos princípios de segurança e eficácia, e tendo o uso racional sempre como norte de suas atividades. Em um cenário de pandemia, com incertezas que cercam o uso de medicamentos, a orientação farmacêutica se faz mais necessária do que nunca. O PFPB, hoje, diferente do momento vivenciado pela epidemia de H1N1, está exclusivamente concentrado no comércio varejista de medicamentos. Nas farmácias privadas, a dispensação por vezes é executada por indivíduos sem capacitação técnica ou obrigação de prestar esclarecimentos e orientar sobre o uso racional de medicamentos (URM). Deste modo, quais seriam os resultados esperados da oferta não monitorada de medicamentos do “kit-covid” pelo PFPB?
Segundo o artigo, a possibilidade de o governo brasileiro usar a PFPB como repositório e distribuidor de medicamentos desprovidos de evidência de eficácia e segurança poderá causar, primeiramente, o desperdício de recursos públicos direcionados para a distribuição dos medicamentos e para ressarcimento dos possíveis custos operacionais das farmácias privadas. Recursos esses que poderiam ser redirecionados para atividades efetivas de resposta à pandemia. E em segundo lugar, o ponto mais preocupante: a exposição da população brasileira a riscos inadmissíveis, potencialmente relacionados ao uso não racional destes medicamentos.
Para as pesquisadoras, trata-se da subversão do papel do PFPB pelo governo brasileiro, que parece colocar a agenda política à frente das prioridades sanitárias e do bem-estar da população.
Fonte: Cadernos de Saúde Pública
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