Artigo relata trajetórias de vida de mulheres negras em situação de violência no RJ

Segundo as autoras, a violência, aparentemente restrita à relação entre parceiros íntimos, se desdobrou para outras relações familiares. A compreensão da violência como “falta de respeito” produziu uma espécie de “central de vigilância” entre as mulheres, evidenciando a construção de uma rede de solidariedade, disseram. E completam: “ao narrarem suas trajetórias de vida, essas mulheres rememoram o passado, o presente e o futuro e também a expectativa de se reinventarem como mulheres, negras, pobres e trabalhadoras”. O artigo considera ser preciso um esforço conjunto e contínuo da sociedade civil, das instituições de ensino e da esfera política para desconstruir modelos culturalmente instituídos que persistem em colocar as mulheres negras no lugar de submissão, de inferioridade e de marginalização.
O estudo trouxe à tona um universo limitado de mulheres em situação de violência de gênero que conseguem apoio institucional para romper com o ciclo da violência, tendo como perspectiva o distanciamento da dicotomia vítima-agressor e reconstruindo relacionamentos fora da lógica de aceitação e controle. Elas indagam, entretanto, “onde estão aquelas que ainda não tiveram a oportunidade de refletir sobre como as violências, ora públicas ora privadas, atravessam suas trajetórias? Como criar um contexto (pessoal, institucional, comunitário) suficientemente consistente para romper com relações violentas em territórios marcados pela obliteração dos seus habitantes? É preciso um esforço conjunto e contínuo da sociedade civil, das instituições de ensino e da esfera política para desconstruir modelos culturalmente instituídos que persistem em colocar as mulheres negras no lugar de submissão, de inferioridade e de marginalização”.
A partir da atuação da primeira autora do artigo como enfermeira de uma unidade básica de saúde da família localizada em um município da Baixada Fluminense do Estado do Rio de Janeiro, deriva a percepção de que esses territórios são ocupados por indivíduos cuja voz quase sempre é silenciada. Essa invisibilidade se traduz nos precários serviços de saúde, saneamento básico, no deficiente sistema educacional, dada a ineficiente atuação do poder público nesses territórios.
De acordo com o artigo, a questão territorial tem um ônus considerável quando pensamos em políticas públicas e representação social. Há um estigma atribuído ao “ser um morador da Baixada Fluminense do Rio”, uma impressão de deslocamento que desconecta a Baixada do Estado do Rio de Janeiro. A representação do periférico aponta não só para o espaço geográfico em si, como também para o contingente populacional que dele faz parte. Persiste a imagem da Baixada Fluminense como um lugar pobre, sujo e violento. "A ideia de lugar precisa ser compreendida não como uma categoria estática, mas como resultado de fluxos e interpretações diversas". A autora reforça que “...lugares são carregados de interpretação, sendo, portanto construídos socialmente, e não somente espaços geograficamente dados”. Logo, os discursos reproduzidos acabam influenciando as relações sociais e o modo de comunicação dos grupos. As distorções do havia entre eles e traz o componente racial como fator preponderante para os insultos sofridos.
As autoras também observaram que a violência de gênero presente no cotidiano das interlocutoras não era localizada ou pontual, mas atravessava toda uma trajetória de vida. Essas mulheres vivenciaram as mais diferentes formas de violência, muitas vezes travestidas de “sutilezas” que, na verdade, deflagravam o racismo, o sexismo, a solidão afetivo-sexual e o desrespeito. A análise, segundo elas, permitiu apreender que a violência, como prática e comportamento entre parceiros íntimos, não está restrita ao universo dos pares envolvidos, sendo estendida e partilhada ao seu grupo social, e sua dinâmica abrange diferentes padrões de interação. “Apesar desse emaranhado de relações, é preciso não perder de vista que seu enfrentamento deve partir do reconhecimento das desigualdades de poder em detrimento de abordagens que advogam pela preservação de valores familiares.”
A rota crítica das mulheres envolve descompassos que se traduzem em uma rede socioinstitucional nem sempre facilitadora e capacitada para dar suporte às mulheres em situação de violência. Embora as delegacias e os Conselhos Tutelares sejam em geral a porta de entrada dessas mulheres na rede de enfretamento à violência, o vínculo efetivo é estabelecido no Centro Especializado de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CEAM).
A pesquisa também concluiu que o apoio institucional foi fundamental como espaço de escuta e troca de experiências, embora as práticas e as abordagens nos grupos de reflexão, por vezes, insinuassem um caráter terapêutico e tutelar sobre as mulheres ao enfatizar aspectos ligados à autoestima ou às escolhas pessoais. Outros temas como sexualidade, racismo, trabalho e geração de renda ficaram à margem das discussões dos grupos, ameaçando a capacidade de politizar e redefinir as posições dessas mulheres. Ainda assim, era inteligível o processo de ressignificação da violência para as interlocutoras pela incorporação de valores que lhes permitiram compreender sua condição anterior ou situacional e, por fim, romper com o ciclo da violência.
Para as autoras, é urgente ampliar o debate que cerca a violência de gênero e a interseccionalidade, visto que esses pontos são essenciais para a construção de políticas públicas e para a capacitação de profissionais no enfrentamento da violência. Sendo assim, é preciso fomentar mais pesquisas no âmbito da saúde que levem em consideração especificidades e subjetividades das mulheres negras, dentre as quais situações de violência, e que permitam dar voz a essas mulheres. “Na área na saúde, é de fundamental importância capacitar os profissionais para além dos modelos padronizados de cuidado já existentes. É preciso ampliar esse cuidado de modo e estruturá-lo e considerá-lo a partir das esferas sociais (família, histórias de vida e práticas singulares de cuidado).”
Confira na íntegra o artigo.
Fonte: Cadernos de Saúde Pública
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