“Por que desejamos ajustar quimicamente o nosso bem-estar?": ENSP debate uso crônico de antidepressivos
Por Danielle Monteiro
Nos tornamos sujeitos com pouca tolerância ao sofrimento e aos obstáculos da vida? Essa reflexão permeou o debate da mesa “O uso crônico de antidepressivos e outras substâncias”, que integrou a programação do ‘8º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas’, na manhã desta sexta-feira (6). No encontro, especialistas chamaram a atenção para o crescente uso de antidepressivos, seus efeitos no organismo e as possíveis razões desse aumento.
Por que é tão difícil interromper o tratamento com antidepressivos? Podemos falar em dependência desses medicamentos? E como eles atuam em nível molecular? Essas perguntas nortearam a apresentação do professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Marcos Ferraz.
Ao explicar como os antidepressivos funcionam no corpo humano, o biólogo e psicólogo atentou para a queda da Teoria das Monoaminas. Essa hipótese sugere que “a causa da depressão seria resultado de transmissão monoaminérgica funcionalmente deficiente no Sistema Nervoso Central”. Com base nessa suposição, os antidepressivos teriam a capacidade de facilitar essa transmissão monoaminérgica. O ponto é que, segundo o professor, estudos sobre pacientes que convivem com depressão não foram capazes de sustentar essa teoria. Por outro lado, a manipulação farmacológica da transmissão de monoaminas ainda permanece como enfoque terapêutico de pacientes com o transtorno.
Ferraz também alertou para os impactos provocados pelos antidepressivos no corpo humano, tais como aumento de apetite e risco cardiovascular, efeitos sedativos, além de dependência e abstinência quando são retirados do organismo. Segundo o palestrante, afirmar que a abstinência é provocada pela interrupção abrupta do medicamento sem consentimento do médico é uma inverdade, pois, mesmo seguindo corretamente a prescrição, o paciente, ainda assim, será vítima da dependência. Conforme alertou o professor, após a retirada da medicação, o indivíduo pode, até mesmo, desenvolver sintomas que não tinha antes, como, por exemplo, ação suicida. “É a redução abrupta da fase final (da retirada da medicação pelo médico) que vai levar à abstinência. Como os sinais da abstinência incluem sintomas de depressão, o discurso é que o paciente continua com depressão, não sendo, assim, possível retirar a medicação”, explicou.
Ainda como ponto crítico no debate sobre o tema, Ferraz mencionou o curto período (de até oito semanas) usado como base para estudos científicos que avaliam o uso de antidepressivos, sendo que, na prática, os medicamentos são prescritos por um tempo muito superior, até mesmo por décadas.
Diante de toda essa conjuntura, Ferraz defendeu a necessidade de regulação da quantidade de antidepressivos e a importância da ‘vivência da abstinência’, do luto e da melancolia como um processo e trabalho psíquicos.
Posteriormente, o professor e psicólogo da Universidade de Zurich, Michael Hengartner discorreu sobre os motivos e as consequências do uso crônico de antidepressivos, alertando para o aumento no consumo dos medicamentos, derivado de prescrições a longo prazo. Para melhor compreendermos o aumento no consumo de antidepressivos, é importante, segundo o palestrante, “nos perguntarmos por que estamos tão inclinados a ajustar quimicamente o nosso bem-estar”.
O professor explicou que as pessoas, equivocadamente, reduzem processos mentais a mecanismos cerebrais e buscam uma correção rápida para problemas complexos. Nesse conjunto de possíveis explicações para o aumento no consumo de antidepressivos, existe, ainda, outro fator: a ideia, vendida pela indústria farmacêutica, de que transtornos mentais comuns são distúrbios neuroquímicos que podem ser corrigidos com antidepressivos.
“Não podemos deduzir o que acontece mentalmente somente estudando as atividades do cérebro. A mente não é quantificável. A questão é que o mundo mental é muito complicado, pois temos que lidar com nós mesmos, nosso meio ambiente, nossa história, aprendizados, crenças, atitudes e como nós reagimos. Por isso, presumivelmente, as pessoas acham que tudo se resolve na química do cérebro. É mais fácil assim. E isso pode ser outro motivo desse aumento e favoritismo da cura química. E, junto com isso, nós temos esse marketing farmacêutico muito poderoso”, observou.
Conforme constatou o palestrante, o aumento no uso de antidepressivos tem provocado consequências cognitivas, emocionais e corporais, como aumento do pessimismo, redução da autoeficácia, menor empatia, maior apatia, ganho de peso, insônia, disfunção sexual e entorpecimento emocional: “Muitos usuários, que usam esses medicamentos a longo prazo, relataram que não estão nem mais tentanto e não sentem mais nada. Alguns disseram que não conseguem nem mais chorar quando vão a um funeral ou ficar feliz quando estão em uma situação feliz”.
Outra questão preocupante levantada pelo palestrante se refere ao mecanismo de ação desses medicamentos na depressão. Segundo Michael, estudos científicos não oferecem qualquer evidência de que pessoas com o transtorno mental tenham níveis diferentes de atividades ou concentração de serotonina, em comparação com os outros indivíduos. “Ironicamente, alguns principais acadêmicos psiquiátricos afirmam que isso não é novidade e que já sabiam disso há todo esse tempo e nunca haviam afirmado isso”, questionou o professor.
Encerrando a atividade, a moderadora da mesa e coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP), Ana Paula Guljor, também chamou a atenção para a forma como a sociedade lida com o sofrimento: “Isso tem nos transformado em sujeitos com pouca tolerância ao sofrimento, o que nos coloca com enorme dificuldade para a superação dos obstáculos da vida”.
+ Assista à transmissão completa da mesa
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