Odontologia em excesso: artigo alerta para exageros em diagnósticos e tratamentos dentários
Pressões econômicas, entre outros fatores, têm levado a recomendações de práticas odontológicas desnecessárias, entres elas, a consulta com o dentista a cada seis meses
Por Danielle Monteiro
A atenção odontológica se apoia pouco na medicina baseada em evidências. O resultado disso é a alta tendência de diagnósticos excessivos e tratamentos desnecessários, que geram danos potenciais a pacientes e desperdício de recursos valiosos que poderiam ser usados em procedimentos terapêuticos necessários e eficazes. É o que afirma artigo publicado na sessão Ponto de Vista, da revista norte-americana JAMA Internal Medicine, assinado por uma equipe de especialistas do Brasil e Reino Unido, liderada pelo pesquisador, epidemiologista e dentista da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), Paulo Nadanovsky.
Com base em uma revisão crítica da literatura científica, os estudiosos argumentam que, ao invés de se basear em dados científicos, o atendimento odontológico se apoia em práticas influenciadas por pressões econômicas na administração do consultório, formação e opinião de profissionais, e expectativas dos pacientes. Segundo eles, esses três fatores levam ao aumento de diagnósticos excessivos e intervenções desnecessárias. “O resultado disso é que, enquanto muitas pessoas de baixa renda ficam sem acesso à atenção odontológica, aquelas que podem pagar estão sujeitas a sobrediagnósticos e sobretratamentos”, explicam os estudiosos.
O sobrediagnóstico acontece quando condições inofensivas são diagnosticadas e consideradas patológicas, levando a potenciais danos e desperdício de recursos. Já o sobretratamento é consequência do sobrediagnóstico e se caracteriza por uma intervenção desnecessária, ou seja, que não traz benefícios ao paciente.
Os pesquisadores explicam que o declínio extraordinário da incidência de cárie dentária, ocorrido na década de 1970, provocou uma redução significativa na carga de trabalho dos dentistas. Esta necessidade financeira, por sua vez, tem levado a recomendações de práticas odontológicas desnecessárias, entre elas, a consulta ao dentista a cada seis meses. “Dois ensaios clínicos randomizados não conseguiram demonstrar que seis meses de intervalos entre checkups dentários resultam em uma melhor saúde bucal, em comparação com intervalos mais longos, de até 24 meses. No entanto, a visita ao dentista a cada seis meses permanece como recomendação padrão”, alertam os estudiosos.
Os autores defendem que o diagnóstico precoce de lesões de cárie não cavitadas, inclusive lesões de manchas brancas, é um exemplo moderno de sobrediagnóstico. Segundo eles, o atual tratamento dessas lesões, que inclui visitas odontológicas semestrais, radiografias periódicas, aplicação tópica de flúor, limpeza profissional dos dentes, instruções de higiene bucal e dietéticas no consultório, assim como selantes e infiltrante resinoso, é um provável sobretratamento. “Nós passamos do ‘ciclo restaurador repetitivo’ (ou da ‘espiral de dano’) antes dos anos 1970 para o moderno ‘ciclo preventivo repetitivo’, que transforma cada indivíduo em um paciente perpétuo desnecessariamente. Este é apenas um exemplo moderno de sobrediagnóstico e sobretratamento na odontologia. Existem muitos outros”, afirmam os estudiosos.
Os pesquisadores também questionam o uso de práticas, como raspagem e polimento, para a prevenção de gengivite e periodontite em pessoas sem doença periodontal: “Até onde sabemos, não há estudos científicos publicados que confirmem a eficácia desse procedimento para prevenir essas condições. As evidências existentes sugerem que o tratamento da periodontite, por meio de alisamento radicular (raspagem da raiz do dente para reduzir a inflamação), leva apenas a um ligeiro aumento no nível de inserção gengival em indivíduos com periodontite moderada ou grave. No entanto, não parece haver vantagens no uso de raspagem e polimento em adultos sem periodontite”.
Como solução para a redução de sobrediagnósticos e sobretatamentos, os pesquisadores propõem a substituição do modelo econômico odontológico predominante, baseado em taxa por serviço realizado, por um modelo ancorado no valor, no qual dentistas seriam pagos para manter a saúde bucal, e não para fornecer tratamentos como restaurações, limpezas e aplicações de flúor. “Um estudo realizado no Rio de Janeiro revelou que, entre pacientes sem indicações de tratamento, uma média de dois dentes foram tratados durante um período de acompanhamento de seis meses. Este número aumentou para 3,6 dentes em casos nos quais o paciente mudou de dentista. Existe uma clara necessidade de estudos que comparem diferentes métodos de pagamento a dentistas, a fim de se avaliar o impacto na saúde bucal, no sobretratamento e no subtratamento”, alertam os estudiosos.
Os autores do artigo também defendem a identificação de procedimentos odontológicos que sejam realmente benéficos e a atualização de diretrizes, por parte das Associações de Odontologia, que ofereçam oportunidades para a alocação de recursos voltados às pessoas que mais precisam de atenção odontológica.
“Não queremos passar a impressão de que o atendimento odontológico não é importante. Pelo contrário. O que defendemos é que procedimentos dentários sejam baseados em efetividade e segurança”, concluem os estudiosos.
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