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“É preciso repensar lógica cis e heteronormativa do SUS”; confira debate sobre saúde trans promovido pela ENSP

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Publicado em:31/01/2024
Por Barbara Souza e João Guilherme Tuasco*

Barreiras ao acesso, dificuldades de adesão, subnotificação de violências, invisibilização da existência e uma série de burocracias são os principais entraves impostos à saúde das pessoas transexuais e travestis. Os problemas foram debatidos nesta quarta-feira (31/1) no webinário ‘Saúde Integral de Pessoas Trans e Travestis no SUS: avanços e desafios’, realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) em alusão ao Dia Nacional da Visibilidade Trans, celebrado em 29 de janeiro. Os palestrantes convidados apontaram diferentes aspectos do preocupante cenário da assistência às pessoas transvestigêneres e concordaram que o Sistema Único de Saúde reflete características de uma sociedade cisnormativa. 


“A lógica do SUS é cisgênera. É algo que precisamos repensar. Esse sistema de saúde tão maravilhoso contempla outros corpos que não sejam o cisgênero e o heterossexual?”, questionou a assessora-técnica da Coordenadoria Executiva da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio de Janeiro, Daniela Murta. Psicóloga e doutora em Saúde Coletiva, a especialista destacou que identidade de gênero é um determinante de saúde e que os desafios à saúde integral da população trans passam prioritariamente pela transfobia. “Como essa transfobia é extremamente naturalizada, os procedimentos que vêm na sequência [do atendimento] acabam sendo arranjos”, afirmou Daniela Murta. 

Em 2023, houve 155 mortes de pessoas trans no Brasil, sendo 145 assassinatos e dez suicídios cometidos em consequência de violências ou da invisibilidade. O número de assassinatos é 10,7% maior do que o registrado no ano anterior. Os dados são da 7ª edição do Dossiê ‘Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras’, feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra). O país é onde mais se assassinou pessoas trans no mundo pelo 15º ano consecutivo. O Brasil também é o país que mais consome pornografia com transexuais nas plataformas de conteúdo do adulto. Do total de homicídios, 72% das vítimas eram pessoas negras. “É um cenário terrível e que tem a ver com a gente, com a saúde pública, com a saúde coletiva, com os profissionais de saúde. Precisamos pensar em soluções que acolham as interseccionalidades”, alertou a pesquisadora colaboradora da Vice-direção de Ambulatórios e Laboratórios da ENSP, Claudia Fonseca Santamarina, que foi moderadora do webinário.

Médico da Estratégia Saúde da Família do Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria (CSEGSF/ENSP), Yuri Martins Guerra compartilhou suas experiências e percepções como profissional da Atenção Primária. “Temos muitas barreiras de acesso e isso é o que dificulta nosso trabalho. A gente fala muito dos obstáculos externos, das dificuldades de trazer as pessoas para dentro do nosso serviço. Há estimativas de que, num grupo de 3 mil pessoas adscritas, teríamos de 20 a 30 pessoas trans. Mas onde estão essas pessoas, por que não as temos cadastradas?”. 

Os que chegam a acessar os serviços muitas vezes evadem. Dentre os motivos apontados estão falhas no acolhimento. “A adesão tem muito a ver com acolhimento, envolve não só o ambiente, mas perpassa, principalmente, pelo nome social. Se não for garantido à pessoa o uso do nome social, ela não volta. Isso é perverso”, afirma a assistente social Patrícia Moquedace, especialista e mestre pela ENSP. Desde 2013, o reconhecimento do nome social é assegurado na atenção básica e, desde 2016, obrigatório nas instituições públicas. Patrícia reforçou, durante sua fala, que a saúde é direito de todos os seres humanos e é preciso que profissionais reconheçam que “esse outro traz, como legítimo e singular, a necessidade de saúde”. “Se a pessoa se sente parte daquele serviço, ela volta e, assim, a gente consegue orientar”, completa. 

A assistente social já atendeu mais de 500 pacientes em 8 anos trabalhando no Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione (IEDE), que recebe pessoas trans desde 1999. O IEDE acolhe a população transgênera e realiza cirurgias de mastectomia (retirada de mama) em parceria com os hospitais universitários da Uerj e da Unirio. Também fornece medicamentos para o tratamento hormonal a maiores de 18 anos. Mas o acesso aos serviços do IEDE tem sido cada vez mais difícil, segundo Patrícia, porque os pacientes não estão sendo encaminhados para o Sistema Estadual de Regulação, que direciona ao Instituto.

O médico do CSEGSF também ressaltou que, na maioria das vezes, a terapia hormonal é a porta de entrada. Yuri destacou que as pessoas trans sofrem com a dificuldade de conseguirem empregos e o preço de uma ampola usada em tratamento hormonal pode chegar a R$ 300. Assim, muitas pessoas acabam fazendo uso incorreto por conta própria. Então, a busca pela hormonioterapia numa unidade do SUS possibilita que outras questões de saúde que não são exclusivas da população trans sejam tratadas. Daniela Murta também comentou o tema. “Doenças crônicas são potencializadas pela ausência de cuidado e pelas barreiras de acesso”. Ela afirma ainda que há escassez de conhecimento sobre consequências a longo prazo das terapias, por exemplo, o que não se explica apenas pelo fato de serem procedimentos relativamente recentes. “Já há tempo para termos estudos sobre isso. Há pouco avanço técnico científico e isso também constitui uma barreira. A gente também não sabe mais porque é uma população que morre muito cedo”.

As discussões suscitadas no webinário também provocaram questionamentos sobre a tradicional campanha do Outubro Rosa, voltada para o combate ao câncer de mama. A abordagem mais comum, voltada para mulheres cis “exclui corpos”, afirmou Cláudia Santamarina, que acrescentou que a expressão “aleitamento materno” exclui os homens trans que também amamentam. “É uma relação pai-bebê que pode começar de uma forma muito amorosa”, disse.

Informações úteis e contatos:
Projeto Garupa: garupa.ceds.rio@gmail.com

Assista ao webinário na íntegra:


*Estagiário sob a supervisão da jornalista Barbara Souza


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