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Pesquisadores da ENSP analisam desafios e perspectivas do trabalho e da educação no SUS

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Publicado em:16/01/2025

Por Júlia Da Matta

Os profissionais que atuam no Sistema Único de Saúde (SUS) são fundamentais para sua estrutura e para a qualidade do cuidado em saúde, sendo frequentemente reconhecidos como a espinha dorsal do sistema. Nesse contexto, a criação e o fortalecimento de instâncias de debate e formulação de propostas para a gestão do trabalho e educação na saúde, considerando o enfretamento das condições laborais precárias e iniciativas voltadas para os processos de formação e educação permanente, assumem uma importância crucial. Eles não apenas contribuem para o desenvolvimento das políticas de saúde, mas também desempenham um papel essencial para a democracia e para efetivação da participação social, uma das diretrizes do SUS, institucionalizada e regulada pela Lei 8.142/1990, que estabeleceu os Conselhos e Conferências de Saúde em todas as esferas de governo. 

Neste cenário, após 18 anos desde a última edição, a 4ª Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde (4ª CNGTES) reafirmou sua importância como um espaço fundamental de mobilização e deliberação sobre as políticas de educação e desenvolvimento do trabalho no SUS. Realizada de 10 a 13 de dezembro de 2024, no Centro Internacional de Convenções do Brasil (CICB), em Brasília, a conferência reuniu gestores, conselheiros de saúde, pesquisadores e membros de instituições de todo o país para discutir a valorização e a proteção dos trabalhadores do SUS e a qualidade da formação dos profissionais. 

Com o tema “Democracia, Trabalho e Educação na Saúde para o Desenvolvimento: Gente que faz o SUS acontecer”, as discussões e programação do evento foram estruturadas a partir de três eixos principais: Democracia, Controle Social e o Desafio da Equidade na Gestão Participativa do Trabalho e Educação na Saúde; Trabalho Digno, Decente, Seguro, Humanizado, Equânime e Democrático no SUS; e Educação para o Desenvolvimento do Trabalho na Produção da Saúde e do Cuidado das Pessoas que Fazem o SUS Acontecer.

O processo da conferência teve início com as etapas estaduais e distrital e conferências nacionais livres, que contaram com a participação de mais de 10 mil pessoas de todas as regiões do Brasil, e chegou à fase nacional, onde delegados de todo o país discutiram as propostas geradas nas etapas anteriores. 

A etapa nacional foi o momento decisivo de análise das 85 diretrizes e 293 propostas decorrentes das etapas anteriores, com o objetivo de atualizar e fortalecer as políticas de gestão do trabalho e da educação na saúde. A programação da conferência incluiu mesas-redondas, oficinas, apresentações culturais e plenárias deliberativas, nas quais foi enfatizada a centralidade da valorização do trabalho e da formação profissional para o fortalecimento do SUS. 

Para refletir sobre os principais desafios atuais na gestão do trabalho e da educação no SUS, o Observatório do SUS conversou com pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) que participaram do evento e compartilharam suas perspectivas sobre os desafios atuais e as potencialidades da conferência no contexto atual de recuperação democrática e social no Brasil. 

Desafios e Perspectivas para a Gestão do Trabalho no SUS 

A qualidade do trabalho no SUS está intrinsecamente ligada ao reconhecimento profissional e à criação de carreiras estruturadas, o que torna urgente garantir uma trajetória estável para os profissionais, com incentivos à educação e qualificação contínua, por meio de políticas consistentes de valorização do trabalho e da educação. 

De acordo com Gideon Borges, coordenador de Lato Sensu da Vice-Direção de Ensino da ENSP, a gestão do trabalho e da educação no SUS enfrenta diversos desafios, muitos dos quais estão interligados. Dentre eles, o pesquisador destacou a questão da carreira dos profissionais, tendo em vista a precarização dos vínculos de trabalho e transitoriedade nas unidades de saúde. Essas questões constituem obstáculos legais para o acesso aos processos de educação permanente o que, consequentemente, “interfere diretamente nas práticas dos serviços de saúde que apresentam inúmeros desafios a serem vencidos por meio da educação, como por exemplo, os modos de pensar e fazer o atendimento a grupos vulnerabilizados socialmente”, afirmou Gideon.  

Ainda de acordo com o pesquisador, outro aspecto importante é a saúde dos trabalhadores do SUS, que enfrentam situações que exigem grande esforço e energia, como sobrecargas de trabalho e baixa remuneração.  

Esse contexto é atravessado por ameaças contínuas ao SUS, especialmente por meio do desfinanciamento e pela crescente presença do setor privado no sistema. Como exemplo, Gideon ressaltou que a formação dos profissionais de saúde tem sido dominada pela iniciativa privada e multinacionais que não priorizam a capacitação para a saúde pública. 

Os desafios atuais enfrentados pela gestão do trabalho e da educação na saúde, para Gideon, refletem uma disputa entre a saúde pública, estruturada pelos princípios do SUS, e a saúde privada, orientada pela lógica de mercado e lucro. Ele destacou que tanto o Estado, por meio do Ministério da Saúde, quanto gestores e profissionais, precisam lidar com essa disputa no contexto do sistema de saúde. 

Para o pesquisador, a 4ª CNGTES representou um marco na reafirmação da democracia e da importância da participação social nas políticas de saúde, sublinhando a presença de diversos grupos sociais, elemento essencial para a construção de um projeto democrático e participativo, como é o caso do SUS. 

No entanto, reconhecendo que existem limites dessa participação, o pesquisador ressaltou a dificuldade de promover o engajamento de trabalhadores em uma sociedade desigual, onde grande parte do tempo é dedicada à garantia da sobrevivência e ao consumo. Essa realidade dificulta o engajamento em projetos coletivos, especialmente em um contexto marcado por disputas e interesses individuais, destacando a necessidade de repactuar constantemente as políticas públicas para superar esses obstáculos. 

A Centralidade do Trabalhador no SUS  

Marcia Fausto, pesquisadora da ENSP e coordenadora da Rede Brasileira de Escolas de Saúde Pública, também analisou os desafios impostos pela precarização do trabalho no SUS, ressaltando a importância de colocar o trabalhador no centro das discussões. Para ela, a conferência teve um grande valor simbólico, pois trouxe à tona um tema que não era discutido há 18 anos. “Retomar a pauta da gestão do trabalho e da educação na saúde, num cenário marcado pela precarização e desigualdades, foi um grande desafio. Mas essa retomada só foi possível em um contexto político favorável”, afirmou Márcia. 

A pesquisadora reforçou a ideia central da conferência, sintetizada pela frase “cuidar de quem cuida”, como marco importante: “A qualificação das ações de saúde deve refletir também nas condições de trabalho dos profissionais, garantindo um ambiente de trabalho digno e seguro”. No contexto atual de precarização das relações de trabalho e baixa formalização dos vínculos, segundo a pesquisadora, “o grande desafio é avançar para que o SUS seja um espaço onde os trabalhadores se sintam seguros e felizes, para que possam, assim, oferecer um atendimento de qualidade”. 

A Precarização e a Carência de Planejamento 

Na análise de Eduardo Melo, vice-diretor da Escola de Governo em Saúde e coordenador do Observatório do SUS, três problemas centrais afetam a gestão do trabalho e da educação na saúde. O primeiro problema é a fragilidade no planejamento e na regulação da formação e distribuição de profissionais de saúde, incluindo especialistas. O segundo problema é a precarização e a terceirização progressiva dos vínculos de trabalho, aliada à baixa presença de carreiras públicas no SUS, fator que compromete a continuidade e qualidade dos serviços prestados. O terceiro ponto diz respeito a baixa adequação da formação dos profissionais de saúde às reais necessidades sociais e às demandas do SUS.  

Essas questões são geradas e agravadas, dentre outros fatores, pelo subfinanciamento do SUS e a pressão das lógicas privada e de mercado. De acordo com Melo, “a inserção de práticas corporativistas e conservadoras enfraquecem a gestão pública e comprometem a formação de profissionais qualificados”. Para ele é importante analisar em que medida e como a conferência aborda estes e outros problemas. 
Reconhecendo que o cenário atual é marcado por intensos debates e disputas, Eduardo observou que algumas movimentações emergentes estão diretamente relacionadas à pauta da gestão do trabalho e da educação na saúde. Nesse contexto, ganha destaque a oposição ao ensino a distância (EAD) nas graduações de saúde, que tem sido discutida, especialmente no que diz respeito à qualidade da formação dos profissionais e à dificuldade de integrar aspectos essenciais ao currículo. Nesse sentido, Melo mencionou ainda as iniciativas voltadas para as residências em saúde e a reafirmação da importância da educação permanente. 

Além disso, o coordenador do Observatório apontou o aumento das discussões sobre as iniquidades e violências que atingem os profissionais de saúde, particularmente nas dimensões de gênero, raça e outras formas de discriminação. Essas questões, de acordo com Melo, são cada vez mais reconhecidas e debatidas, o que aponta para necessidade de mudanças na busca por ambientes de trabalho mais inclusivos e igualitários.  

Melo ressaltou ainda, com relação a questões emergentes no contemporâneo, o fortalecimento da defesa de carreiras no SUS, essencial para a estabilidade e a valorização dos profissionais, e as movimentações contra a precarização e terceirização, que reconhecem seus impactos negativos sobre a qualidade dos serviços e a condição de trabalho dos profissionais. Para ele, a 4ª CNGTES trouxe à tona essas questões, mas as formulações para a gestão do trabalho e da educação na saúde exigem mais esforços, sendo necessário que haja um acompanhamento contínuo e ações concretas para mudanças que impactem o atual cenário de precarização e desfinanciamento. 

Trabalho e educação na saúde: uma agenda permanente 

A valorização dos mais de 4 milhões de trabalhadores da saúde, aliada à formulação de políticas que assegurem condições dignas e humanas para esses profissionais, constitui um alicerce indispensável para o fortalecimento e a sustentabilidade do SUS. 

De acordo com dados apresentados em 2024 pela Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES/MS), o cenário atual é marcado pela existência uma multiplicidade de formas de contratação, com cerca de 45% de vínculos precarizados no setor público. A necessidade urgente de melhorar as condições de trabalho e a educação, em um contexto de desafios complexos, onde a precarização, o desfinanciamento e a lógica do mercado ainda são ameaças constantes, constituem uma visão compartilhada nas análises dos pesquisadores. 

Nessa perspectiva, a 4ª CNGTES, representou um passo importante, enquanto espaço de mobilização, articulação e formulação para valorização profissional e para os processos de formação e atualização no campo da saúde pública. No entanto, observa-se que, para que os avanços sejam efetivos, é necessário um esforço contínuo para a implementação de políticas que assegurem melhores condições de trabalho e educação permanente para os profissionais do SUS. Trata-se de um compromisso constante, pois as mudanças na orientação da gestão em prol do trabalho digno e da educação de qualidade, longe de serem pontuais, demandam participação social e a sustentabilidade das discussões e proposições. 

Carreiras no SUS

Em março de 2024, o Observatório do SUS, em parceria com a Abrasco, promoveu o Seminário Carreiras no SUS: obstáculos e alternativas, reunindo pesquisadores, gestores e especialistas para discutir os desafios e condicionantes da gestão do trabalho no SUS, além de explorar cenários e propostas para a estruturação e sustentação de carreiras no sistema. Como resultado, foi elaborado um relatório técnico que sintetiza as apresentações e proposições debatidas durante o seminário. Confira o documento completo aqui e acesse a síntese dos relatórios produzidos a partir do ciclo de seminários aqui.  


Fonte: Observatório do SUS
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