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Pesquisadores comentam gestão do saneamento: monopólio natural pode ser privado?

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Publicado em:27/06/2024

Por Barbara Souza

Um ano antes do desastre das chuvas no Rio Grande do Sul, movimentos pela privatização dos serviços de saneamento de Porto Alegre ganhavam força. O prefeito Sebastião Melo (MDB) chegou a visitar concessionárias no Rio de Janeiro para conhecer modelos de concessão. Enquanto isso, funcionários do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), da capital gaúcha, já denunciavam precarização da autarquia, com redução de investimentos em infraestrutura e recursos humanos, mesmo com verba disponível. Em maio deste ano, a tragédia das inundações recordes reforçou a necessidade de aprofundar o debate sobre tema da privatização dos serviços de água e esgoto. Por isso, o Informe ENSP entrevistou os pesquisadores do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental (DSSA/ENSP/Fiocruz) Paulo Barrocas e Marcos Denício sobre o tema. 

“O saneamento é tipicamente um monopólio natural. Pode-se, então, escolher se esse monopólio será público ou privado”, enfatizou Barrocas ao introduzir o assunto. Isso significa que, diferentemente da telefonia móvel e da internet, o consumidor não tem como escolher uma operadora para lhe prestar o serviço. “Há muito estudo sendo desenvolvido sobre isso. Há autores que afirmam ser melhor a gestão pública. Outros, a privada. Há ainda os que dizem que a questão não é essa, mas sim como são cobradas as metas de universalização do saneamento”. No Brasil, o modelo adotado prevê a regulação dessas atividades por parte de agências, como a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e dezenas de entidades infranacionais. 

Estrutura do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), em Porto Alegre. Foto: Divulgação DMAE

No entanto, Barrocas critica o funcionamento desses órgãos, especialmente em relação às atividades das empresas privadas. “A regulação dos serviços de saneamento é muito ruim no Brasil. Se funcionasse bem, talvez, a privatização traria menos problemas”, avaliou o pesquisador, que acredita que um dos principais entraves ao bom trabalho das agências reguladoras é a distribuição política dos cargos. Ele acrescenta que, quando se privatiza, há uma tendência ao aumento das tarifas, o que leva à exclusão de parte da população. “Quem não tem água vai continuar sem, há uma parte da população que não interessa às empresas, pois não gera lucro. É evidente que privatizar não necessariamente melhora a eficiência do sistema, menos ainda contribui para sua universalização”. As desigualdades e iniquidades no saneamento, importante indicador social, revelam-se tanto na falta de acesso aos serviços quanto na baixa qualidade da prestação do mesmo. “Em muitos casos, há rede de distribuição, mas o atendimento é precário, sem abastecimento todos os dias, por exemplo”. 

O atual chefe do DSSA/ENSP, Marcos Denício, também destaca a importância de mecanismos de controle para a garantia da qualidade dos serviços. “É preciso que existam ‘amortecedores’ para um controle adequado, principalmente quando a gestão é privada”. Gaúcho, o pesquisador comentou também sobre o caso específico de Porto Alegre. “É uma região que se urbanizou demais, mas não foram criados meios suficientes para dar vazão às águas”. Ele lembra que interferências humanas agravaram o cenário de desastre no Rio Grande do Sul, como aprofundado em matéria anterior do Informe ENSP

A tensão entre a defesa da gestão pública ou privada dos serviços de saneamento é antiga. Com a Lei 14.026/2020, aprovada no governo Bolsonaro, estabeleceu-se um novo marco regulatório para o saneamento básico do país, incentivando a participação do capital privado. Desde então, há várias privatizações efetivadas ou em curso no Brasil, a maior delas foi a da Cedae, no Rio de Janeiro, que deve ser superada pela Sabesp em breve. No entanto, o país vai na contramão da tendência internacional. Há alguns anos, ocorre movimento de reestatização em vários países, como França e Espanha. Há ainda o caso emblemático de Cochabamba, na Bolívia. 

Retomando a questão do monopólio natural, Marcos Denício reforça a comparação entre o saneamento e a telefonia como serviços privatizados. Ele lembra que, há poucas décadas, os telefones fixos e os celulares não eram populares, mas o acesso aumentou a partir da concorrência entre as empresas privadas que passaram a operar o serviço nos anos 1990. “Pode haver melhorias no serviço e um custo elevado. Aumentar o custo é quase certeza quando se privatiza, mas pode melhorar a qualidade. No entanto, só quando existe, mesmo que seja em meio fictício, uma possibilidade de concorrência. Quando não tem concorrência, aí só terá aumento de custo. Por isso, que nessa área do saneamento eu não acredito na privatização”, explicou.

Garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água potável e do saneamento para todos é o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) número 6. Mencionada por Barrocas e Denício durante a entrevista, a meta reafirma a relevância do tema. Em resolução assinada em 28 de julho de 2010, a ONU definiu o acesso à água e ao saneamento como direito humano. “A partir disso, a questão passou a constar, primeiramente, nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e, atualmente, nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, que está na Agenda 2030”, salientou o pesquisador Paulo Barrocas. 

O pesquisador ressaltou um aspecto histórico para sublinhar a relevância do acesso à água de qualidade como condicionante da qualidade de vida. “Civilizações surgiram e decaíram em função da gestão dos recursos hídricos. Para os egípcios, havia a dádiva do rio Nilo. A primeira grande civilização, na Mesopotâmia, se desenvolveu entre os rios Tigre e Eufrates. Já uma das razões da queda dos Maias foi uma grande seca e problemas na gestão do recurso hídrico. Na Europa, Roma tinha seus aquedutos e a cloaca máxima, um sistema antigo de coleta de esgoto. A partir do século XIX, com a implantação de sistemas públicos de esgotamento sanitário e de distribuição de água, começou a ser observado aumento da expectativa de vida e várias doenças foram erradicadas”, mencionou.



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