Que ações humanas influenciaram o desastre das chuvas no Rio Grande do Sul?
Pesquisadores da ENSP descrevem fenômenos naturais alterados por atividades antrópicas cujos impactos foram inundações recordes, vidas perdidas e prejuízos econômicos
Por Barbara Souza
Desmatamentos, alterações no ciclo hidrológico, destruição de matas ciliares, mudanças em cursos de rios, expansão de monoculturas em substituição a vegetação nativa… Antigas e recentes, diferentes intervenções humanas contribuíram com o potencial destrutivo das chuvas no Rio Grande do Sul. Pesquisadores do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental (DSSA) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) explicam e comentam fatores antrópicos que ajudam a entender a intensidade e o volume da tempestade que assolou os gaúchos entre abril e maio de 2024.
Em entrevista ao Informe ENSP, o oceanógrafo Paulo Barrocas e o engenheiro civil Marcos Denicio, atual chefe do DSSA, analisaram desde características geográficas da região Sul até possíveis falhas e deficiências da infraestrutura de saneamento de Porto Alegre. De acordo com os pesquisadores, há condições naturais para as chuvas intensas, no entanto os desastres são consequência da intervenção humana no meio ambiente e de falta de medidas de prevenção, adaptação e mitigação. Além disso, o risco hidrológico já era previsto.
Em relatório publicado em 2022, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) afirmou que uma das poucas regiões sobre a qual havia dados suficientes para fazer uma previsão era o Sudeste da América do Sul, área que abrange o estado do Rio Grande do Sul. O IPCC considerou de alta confiança as evidências científicas que demonstraram o aumento da pluviosidade na região, indicando a possibilidade da ocorrência de eventos catastróficos de chuva extrema.
Já o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) emitiu um alerta sobre o risco de desastre no Rio Grande do Sul no dia 30 de abril, quase uma semana antes do primeiro registro de morte no estado. O órgão de monitoramento também divulgou uma nota técnica em 5 de maio. No documento, o Cemaden afirma que faltou ‘resiliência’ da gestão de Porto Alegre quanto às estruturas hidráulicas, como comportas e bombas de sucção, que refreiam o avanço do lago do Guaíba, localizado junto da capital gaúcha.
Atividade agrícola e degradação do Cerrado
Ao introduzir o tema das características naturais da região do Rio Grande do Sul, o pesquisador Marcos Denicio explicou que, em tese, a área deveria ser desértica. Ele detalhou que, devido a sua latitude, o local sofre efeitos da chamada ‘célula de Hadley’, um padrão de circulação atmosférica que gera ambientes áridos na altura do paralelo 30°, como o Atacama, o Kalahari e o deserto australiano. Denicio destacou que, graças à umidade da Amazônia, a área tem água e, consequentemente, solo fértil. Por isso e pelo relevo predominantemente plano, o sul brasileiro é favorável à agricultura, principal atividade econômica praticada pelos europeus que se estabeleceram na região no século XIX.
Ter essas considerações em mente é importante para compreender uma das alterações promovidas pelo ser humano na natureza que impactaram o meio ambiente a ponto de influenciar, por exemplo, a dinâmica das chuvas: o desmatamento da região central do país. Produtores rurais, incluindo uma quantidade expressiva de migrantes do Sul, se deslocaram para o Centro-Oeste e iniciaram um processo de degradação ambiental que tem alterado o Cerrado, um dos biomas mais ameaçados do mundo atualmente, deixando a região mais seca e mais quente.
A ocupação da área do Cerrado pela agropecuária foi um propulsor da economia brasileira, já que uma parcela considerável da produção de carne e grãos sai de lá. Gaúcho, o pesquisador Marcos Denicio destaca a participação de migrantes do Rio Grande do Sul nesse movimento. “O europeu que se estabeleceu no Sul tinha como atividade principal a agricultura. Para isso, ele precisava de água e solo fértil. Essa região tem e eles foram para lá. Com o tempo, exploraram aquele território e começaram a se expandir para outras regiões. Houve então um movimento para o plantio na região central do país”, explica.
A nota técnica do Cemaden cita o período prolongado de altas temperaturas e baixa umidade nas regiões Centro-Oeste e Sudeste do Brasil como um dos motivos para a concentração dos efeitos da tempestade no Sul. O documento explica que a parcela do território entre a Amazônia e o Sul estava sob a influência de um sistema de alta pressão atmosférica que, além de impedir que parte da umidade da Amazônia precipitasse na região, bloqueou as frentes frias provenientes do Sul. Ou seja: toda água se concentrou apenas nessa região, gerando chuvas extremas. Portanto, as ações humanas no Centro-Oeste têm responsabilidade na gravidade do fenômeno.
Águas da Amazônia desviadas e mudanças climáticas
Para dar a dimensão do volume de água proveniente da Floresta Amazônica, Denicio ressaltou que só o Rio Amazonas é responsável por 20% de toda água doce que chega aos oceanos. São 17 bilhões de toneladas, ou litros, de água por dia. Além disso, os chamados ‘rios voadores’ transportam cerca de 20 bilhões de toneladas de vapor d'água pela atmosfera da Bacia Amazônica para outras partes da América do Sul. No entanto, a grande massa de ar seco formada no centro do Brasil desviou toda essa umidade para o Rio Grande do Sul, sendo limitada pelo Oeste pela cordilheira dos Andes.
“Formou-se um grande centro de alta pressão no meio do país. Então não tinha como chover lá. Portanto, a umidade que veio da Amazônia e que, teoricamente precipitaria no Mato Grosso e em São Paulo, por exemplo, foi desviada. Além disso, o centro de alta pressão impede a passagem das frentes frias. Somou-se então a frente fria vinda da região Polar, que avançou até o Rio Grande do Sul e encontrou essa barreira. Toda a chuva caiu no Sul”, detalhou Paulo Barrocas.
As mudanças climáticas têm alterado diversos fenômenos naturais. O ciclo hidrológico tem sido afetado, com várias alterações no padrão das chuvas. Uma delas é justamente o aumento da frequência e da magnitude de grandes tempestades, como explica Barrocas. “Eventos climáticos extremos estão se tornando mais frequentes. Então, as grandes enchentes que aconteciam a cada 20 anos vão começar a acontecer em intervalos de tempo menores. Além disso, passa a chover numa semana o que se espera que chova em cinco meses, como aconteceu no Rio Grande do Sul. Essas previsões estão nos prognósticos que os modelos para as mudanças climáticas apontam”.
Outro fator que impulsionou as chuvas no Rio Grande do Sul foi o El Niño, fenômeno marcado por temperaturas oceânicas acima da média no oceano Pacífico junto a costa do Peru. Somado às alterações climáticas - ou - ou até mesmo agravado por elas -, o El Niño foi mais um ingrediente do desastre, afinal o aumento da temperatura tende a elevar a umidade na atmosfera, alterando todo o ciclo hidrológico. Os pesquisadores acrescentaram que há uma tendência de El Niños mais intensos e mais longos como consequência do aquecimento global, algo alarmante para chuvas extremas.
Rio Grande do Sul: relevos, lagos e interferências humanas
Caracterizado por grandes planícies, os chamados pampas, o relevo do Rio Grande do Sul favorece a agricultura, mas também inundações. Os muitos rios que cortam o estado, descendo da Serra Gaúcha, por exemplo, convergem para o Lago Guaíba. Depois, a água vai para a Lagoa dos Patos, de onde, finalmente desagua no oceano. De acordo com avaliação do pesquisador Marcos Denicio, “em termos hidráulicos, o Rio Grande do Sul tem uma situação hidrodinâmica desfavorável, conduzindo diversos rios e afluentes para o lago Guaíba”. Ele afirma que são características naturais da região, mas que “mecanismos criados para reduzir o potencial de enchentes na parte mais baixa não funcionaram adequadamente”. Já Paulo Barrocas explica o que ocorre em momentos em que frentes frias se aproximam do estado. “Sobe um vento Sul que passa sobre as superfícies alagadas, empilhando a água na direção norte, dificultando que ela vá do Guaíba para a Lagoa dos Patos e que, de lá, vaze para o oceano”, descreveu o pesquisador ao comentar a demora para que os níveis dos lagos e das inundações baixem na Região Metropolitana de Porto Alegre, por exemplo.
Os cursos dos rios, com características naturais importantes a serem preservadas, tem sido profundamente alterados por atividades humanas. Plantações invadem as margens, bacias são assoreadas e leitos estreitados. O pesquisador Marcos Denicio chama a atenção para o consequente aumento da velocidade do fluxo na calha dos rios. “As plantações precisam de terra, então os produtores vão tomando o território dos rios, estreitando as bacias de inundação que, naturalmente, reduzem a energia acumulada. Ao ganhar velocidade, o rio passa a transportar mais sedimentos, que vão parar no Guaíba”. Esse processo de degradação dos rios, com o comprometimento dos seus meandros e retilinização dos cursos, foi crucial para agravar os impactos das chuvas no Rio Grande do Sul. “Tudo isso levando em consideração que choveu 700 milímetros em dois dias, algo esperado para cinco meses”, acrescentaram os pesquisadores.
Dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e do Instituto Nacional de Metereologia mostram o conjunto de rios e afluentes (Sinos, Jacui, das Antas, Caí, Gravataí, Taquari, etc.) que são interligados ao Lago Guaíba e à Lagoa dos Patos, com a fonte de pluviosidade acumulada entre 28 de abril e 5 de maio:
- PCH Rastro de Auto Barramento, nos municípios de Putinga e São José do Herval: 866,6 milímetros;
- Muçum: 864,8 milímetros;
- PCH Linha Emília Jusante, no município de Dois Lajeados: 803,6 milimetros;
- PCH Cotiporã Jusante, barragem entre Cotiporã e Bento Gonçalves: 800,2 milimetros;
- UHE Itaúba Barramento, usina entre Pinhal Grande e Estrela Velha: 788,4 milimetros;
- UHE Dona Francisca Arroio Carijinho, no município de Nova Palma: 738,2 milímetros;
- Linha José Júlio, no município de Santa Tereza: 725,4 milímetros;
- UHE 14 de Julho Jusante, barragem entre Cotiporã e Bento Gonçalves: 718,8 milímetros;
- Encantado: 708 milímetros.
A vegetação ripária, ou ribeirinha, é essencial para regular a vazão dos rios, impedir a erosão do entorno e limitar danos causados por enchentes como as do Rio Grande do Sul. Por isso, em relação à preservação dos rios, Paulo Barrocas lembra que a legislação referente à proteção das matas ciliares foi alterada. O Código Florestal (12.651/2012) reconhecia essa vegetação como Áreas de Preservação Permanente (APP) e estabelecia uma faixa mínima de vegetação de acordo com a largura do rio. No entanto, uma nova legislação (PL 2.510/2019 e Lei 14.285/2021) passou a permitir ocupações irregulares antigas e novos desmatamentos e ocupações nas margens de rios em cidades. A decisão sobre a metragem de recuo das ocupações passou a ser dos municípios.
Por fim, os pesquisadores analisaram a infraestrutura de Porto Alegre, que revelou ter falhas e ser insuficiente para, pelo menos, atenuar o desastre das inundações. Eles lembraram que, conforme amplamente divulgado, apenas quatro das 23 estações de bombeamento de águas pluviais do sistema de drenagem da cidade estavam operando quando a capital gaúcha foi alagada. Há muros e diques para segurar a água no caso de transbordamento do Lago Guaíba, criados a partir do histórico de alagamentos em Porto Alegre, mas a estrutura apresentou falhas, como nas comportas que dão acesso ao lago. “Foi uma chuva excesso e que nunca ocorreu antes? Foi. Mas, se esses sistemas tivessem funcionado, talvez o impacto teria sido menor”, lamentou Barrocas.
“Construções em áreas com risco de inundações, que já foram inundadas em setembro de 2023, voltaram a ser inundadas novamente em maio de 2024; porém, com maior número de fatalidades. Estruturas hidráulicas que protegem a cidade de Porto Alegre não resistiram às ondas de inundações e romperam, o que sugere que foram subdimensionadas ou que não se consideraram que os volumes de chuvas poderiam aumentar com o tempo. A falta de resiliência de Porto Alegre frente aos extremos de clima e mudança climáticas foi detectada em 2023, e este é o caso de outras grandes cidades que podem não estar preparadas para extremos climáticos como os ocorridos em 2023 ou nas próximas décadas”, apontou a nota técnica do Cemaden.
Fotos: Palácio do Planalto e Mídia Ninja.
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