Congresso traz como tema 'Agroecologia na Boca do Povo'
De 20 a 23 de novembro, acontecerá, no Rio de Janeiro, o 12º Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA). Organizado pela Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e apoiado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), o evento ocupará o espaço da Fundição Progresso, na Lapa.
A expectativa para o congresso é alta, como contou Cristiane Coradin ao Informe ENSP: “Cada vez mais, o campo agroecológico é entendido como promoção da saúde”, afirmou a agrônoma e professora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Cristiane faz parte da Associação Brasileira de Agroecologia e integra a Comissão Organizadora do CBA. O congresso acontece desde 2003, de dois em dois anos, mas o último foi em 2019 devido à pandemia de Covid-19. Agora, acontece em um cenário de reestruturação de políticas públicas. São mais de 3 mil trabalhos que serão aprovados em 15 eixos de pesquisa. O fortalecimento das redes de estudantes, acadêmicos, a participação ativa e ampla de instituições de ensino, pesquisa e extensão, e de setores da sociedade civil organizada, envolvidos com demandas da agricultura familiar e dos povos, e comunidades tradicionais são alguns dos destaques, de acordo com a organização do evento.
Ao longo de seus vinte anos, o CBA – que começou como um evento acadêmico de valorização da agroecologia como ciência – se consolidou como um espaço de diálogo entre os conhecimentos científicos e cotidianos, construído por uma rede ampla de parcerias do campo e da cidade, no Brasil, na América Latina e no mundo.
Assim como Cristiane, o agrônomo Márcio Mattos de Mendonça também fala da expectativa positiva para o congresso: “É um congresso acadêmico em que a academia vai falar para a sociedade, mas também vai ouvir a sociedade. E as pessoas da sociedade que têm experiência com agroecologia”, disse (ver entrevista).
Com o tema “Agroecologia na Boca do Povo”, um dos principais objetivos do congresso será trazer visibilidade ao conceito de agroecologia para além do ambiente acadêmico e dos movimentos sociais. Cristiane aceitou o desafio de resumir um conceito polissêmico como agroecologia: “Agroecologia é uma prática, um modo de vida, baseado na produção e no consumo de alimentos saudáveis e sustentáveis que contribuem com a saúde. É uma forma de organização social da produção. É ciência que se faz junto com as populações dos campos, florestas, águas e cidades. Está relacionada à agricultura familiar e à agricultura orgânica e, também, à cultura e à memória desses povos”, resumiu.
No Dicionário de Agroecologia e Educação, publicado em 2021 pela editora Editora Expressão Popular, em parceria com a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) com o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), o termo traz um extenso verbete de definição. Nele, lê-se que “tem sido reafirmada por um conjunto de sujeitos sociais, organizações, instituições de pesquisa e ensino como uma ciência, um enfoque ou disciplina científica, como prática (social) e como movimento ou luta política. Pode apresentar uma abordagem restrita, como um campo de cultivo agrícola; considerar um agroecossistema mais complexo, como uma unidade de produção ou mesmo uma região; abarcar todo o sistema agroalimentar; ou convidar a repensar o metabolismo sociedade-natureza, como parte de um projeto societário. Em todos esses níveis e dimensões, a agroecologia se apresenta como uma contraposição a determinadas práticas, enfoques ou concepções”.
Concentração, desigualdade, passivos ambientais e sociais do agronegócio
Essas práticas a que a agroecologia se opõe, no Brasil, têm um nome: agronegócio. Esse tipo de agricultura é praticada no país com alta concentração de terra nas mãos de poucos proprietários, mas, de acordo com Cristiane, é nas pequenas propriedades que são produzidos os alimentos que vão parar na mesa da população . “As grandes monoculturas não produzem alimento para o consumo humano em sua maioria”, conta.
No Centro-Oeste do país, predomina esse tipo de produção, voltada em grande parte para cultivo de grãos que servirão de ração animal. “A agricultura convencional ou agronegócio vem com um ‘pacote’: agrotóxicos, violência no campo, condições precárias de trabalho, concentração de renda…”, lista a pesquisadora. Desigualdades sociais, baixo dinamismo das economias locais e um passivo ambiental muito grande em termos de contaminação sistêmica, causada por agrotóxicos, figuram nesse rol de problemas trazidos pelo modelo de agricultura de monocultura praticado em grandes extensões de terra. “De 2019 a 2022, houve a liberação de mais de 2 mil produtos, alguns deles proibidos na maioria dos países desenvolvidos”, relembra.
Os dados do Censo Agropecuário de 2017 do IBGE mostram que 70% do total de alimentos produzidos no país vêm da origem da agricultura familiar. “Ou seja, 70% do que a gente come”, reforça a agrônoma, apontando ainda que 25% de toda emissão de CO2 do país vêm do rebanho bovino. O Centro-Oeste é uma área de expansão da fronteira agrícola - e ali acontece uma pressão de desmatamento sobre áreas de conservação. Atualmente, a maior parte das pequenas propriedades onde a agroecologia é praticada está localizada principalmente no Sul – Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina – seguido das regiões Nordeste e Sudeste.
Histórico
A agrônoma explica que a agroecologia surge com uma preocupação de tornar a agricultura no país mais sustentável, desde a década de 1960 e 1970, e trazer melhores condições de vida e de geração de renda para os agricultores, por meio, por exemplo, da comercialização direta dos produtores para os consumidores. De acordo com Cristiane, o enraizamento dessas práticas naquele período ainda era muito pequeno no Brasil. A partir dos anos 2000, foi estabelecido, pelos movimentos sociais ligados ao tema, um calendário permanente de mobilizações, atividades e eventos, dentre os quais destaca-se o Encontro Nacional de Agroecologia, que resultou na criação da Articulação Nacional de Agroecologia. Nos anos 2000, houve um incentivo a partir de um incremento de políticas públicas, como a Política Nacional de Produção Orgânica e Agricultura Familiar, de 2013, junto com a política de compras públicas, que dá prioridade aos produtos provenientes de produção agroecológica. Essas políticas estimularam processos de transição agroecológicos para as várias regiões do Brasil
A pesquisadora relembra a diferença entre a agroecologia e agricultura orgânica (ver também entrevista). Na agricultura orgânica não são usados adubos de origem sintética ou fóssil, apenas produtos biológicos e naturais, para suprir o sistema de produção. Sobre a produção de alimentos orgânicos no Brasil, Cristiane conta que os dados são “muito pulverizados”, mas que é possível verificar o seu crescimento. Enquanto a produção convencional cresce 3% ao ano, a produção orgânica cresce 10% ao ano no país, de acordo com os dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Ela aponta que vêm sendo desenvolvidos, e serão discutidos no Congresso, mecanismos de fortalecimento dos sistemas participativos para os alimentos produzidos de maneira orgânica e em sistemas agroecológicos.
Para que a agroecologia se expanda e se desenvolva, Cristiane aponta que são necessárias ações intersetoriais que integrem a produção, o beneficiamento, o consumo e que envolvam a saúde, para construir mais resiliência, capacidade de adaptação, de mitigação, em um cenário de mudanças climáticas permeado por escassez e desastres. “Manter os mananciais de água, o ar puro, as florestas, o cuidado com a vida”, reitera. A agroecologia, para ela, “é uma forma de enfrentar um processo global de sindemia, de crise civilizatória, de epidemia de obesidade, de subnutrição e de mudanças climáticas”, acrescenta.“É entendida não apenas como uma prática, mas todo um conjunto de relações sociais. Um processo humanista, descolonizador, que possibilita uma transformação social”, reforça a pesquisadora. Como aponta o Dicionário de Agroecologia, “não é possível compreender essa prática sem considerar seus sujeitos principais, os camponeses e camponesas e os povos originários, tomados enquanto classe social em luta”.
Cristiane Coradin tem pós-doutorado em Saúde Pública e pesquisa interseccionalidades, agroecologia e vigilância popular participativa de base territorial. Atualmente, ela analisa o protagonismo das mulheres no campo. Historicamente, a tarefa das mulheres na agricultura, voltada para a alimentação da família, foi desvalorizada e invizibilizada, mas isso vem se transformando: “São as mulheres, por uma relação patriarcal, que tradicionalmente estão vinculadas ao cuidado. São elas que assumem os quintais produtivos. A agroecologia devolve o espaço produtivo das mulheres como agricultoras”, aponta. As mulheres agricultoras participam de todas as atividades que movimentam a economia, produzem renda e produzem o cuidado com múltiplas formas de vida. “As mulheres, como Cristiane conta, sempre fizeram tudo isso e não tinham renda. É aí que se dá todo um salto, com autonomia financeira das mulheres, por meio da agroecologia”, relembra. É necessário, segundo a pesquisadora, um reposicionamento democrático do cuidado, ou seja, que seja ampliado para os homens e para toda a sociedade também esse papel.
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