Entrevista Márcio Mendonça: “A agroecologia é mais do que uma prática, é uma crítica ao modelo de produção”
“A agroecologia traz um elemento muito importante: o território. Quem vive, quem interage, quem interagiu ao longo dos séculos com aquele território.” Para além das questões ambientais e daquelas relacionadas a uma forma de fazer agricultura livre de elementos nocivos para a saúde humana, o agrônomo Márcio Mendonça, coordenador do programa de Agricultura Urbana da organização AS-PTA - Agricultura Familiar e Agroecologia - aborda, em entrevista ao Portal ENSP, os conceitos-chave em termos políticos e sociais para a discussão sobre a produção de alimentos no país. A AS-PTA é uma associação de direito civil sem fins lucrativos que, desde 1983, atua para o fortalecimento da agricultura familiar e a promoção do desenvolvimento rural sustentável no Brasil. Para Márcio, o momento em que será realizado o 12º Congresso Brasileiro de Agroecologia, que acontece de 20 a 23 de novembro no Rio de Janeiro, é de reconstrução de políticas públicas e de diálogo: “Acredito que vai ser um congresso em que a academia vai falar para sociedade, mas vai também ouvir a sociedade”, declara.
O que é agroecologia?
Existem alguns olhares restritos que, muitas vezes, consideram a agroecologia como um conjunto de técnicas de produção somente. A agroecologia não deixa de ser uma forma de se fazer agricultura. Para muito além disso, a agroecologia é uma ciência que bebe em diversas áreas de conhecimento, como a ecologia, a sociologia, a antropologia e a agronomia. Mas não só isso, a agroecologia é uma disputa de modelo de sociedade; são propostas de uma outra construção social e política no meio rural e urbano também. A agroecologia é movimento, é luta pela terra, luta por igualdade, por direitos: direito à alimentação, ou seja, entender o que é agroecologia, na verdade, é entender essa complexidade de coisas, porque ela diz respeito também à transmissão de conhecimentos, às experimentações, às formas antigas como as pessoas se relacionam com o ambiente, às formas ancestrais de se fazer agricultura.
Há, também, uma aplicação acadêmica e uma aplicação prática no fazer agricultura; e uma aplicação disso como movimento, como luta, como bandeira de luta pelo direito à terra, pelo direito à água, pela segurança alimentar e nutricional. E, no caso urbano, pelo direito à cidade: pela ocupação da cidade de outras formas, em que se consideram as pessoas que vivem nos lugares. A agroecologia traz um elemento muito importante: o território. Quem vive, quem interage, quem interagiu ao longo dos séculos com aquele território: isso é a “leitura” de territórios. Então, a agroecologia é esse complexo de coisas, que traz o elemento das tradicionalidades, e por aí vai…
Qual a relação da agroecologia com a agricultura familiar e com a agricultura orgânica?
Nessa perspectiva de um olhar para uma agricultura que está contextualizada nos territórios, contextualizada nas histórias de vida, a agroecologia dialoga com a agricultura camponesa, com o campesinato, com as comunidades tradicionais e com o conceito de agricultura familiar. Existe uma lei que define com clareza o que é a agricultura familiar. Em linhas gerais, essa lei [Lei 10.831, de 23 de dezembro de 2003 - nota da edição] menciona a relação das pessoas com o trabalho e com a terra. Quem trabalha a terra é a família. O núcleo familiar está envolvido no trabalho, na terra, tem proximidade com aquele lugar onde produz e gera renda; então, tem uma relação forte com a economia da agricultura. diferente do agronegócio, em que a agricultura e a terra são vistas como mercadorias. No modo capitalista de produção, tudo é visto como mercadoria, a água, a terra, a semente, o trabalho. E tudo se explora.
Em oposição a isso, agroecologia é praticada por comunidades camponesas tradicionais de agricultura familiar. Quanto à relação da agroecologia com a agricultura orgânica, a agricultura orgânica surge de um questionamento à “Revolução Verde”, que trouxe esse elemento da mecanização, das sementes melhoradas geneticamente, dos agroquímicos, dos agrotóxicos, ou seja, da adubação química com muita força. A agricultura orgânica vem em oposição a isso. As pessoas começam a questionar - no meio urbano, principalmente, mas também no meio rural - a forma de fazer produção, a forma e o resultado daquilo que se produz. Questiona-se também o impacto dessa agricultura tecnificada, com muito uso de insumos e baseada na monocultura. Nesse processo de questionar, diversas agriculturas vão sendo criadas. Inclusive uma agricultura que acaba se tornando, na ponta da caneta da lei, aquela que é chamada de orgânica. É uma agricultura que está baseada no uso de meios naturais de fazer produção em que você não tem contaminante no ambiente e, portanto, não tem contaminante nos alimentos.
Então, a agricultura orgânica é pautada por normas de produção: para você dizer que um alimento é orgânico, ele precisa ser cultivado em um solo que não levou nitrogênio nem compostos derivados de agrotóxicos dos vizinhos, que não tem contaminantes, que é produzido com água limpa. Então, agricultura orgânica é uma forma de se fazer agricultura baseada em técnicas regulamentadas por uma lei: a lei dos orgânicos. A agricultura orgânica é sempre voltada para o produto. A certificação é do produto produzido de maneira orgânica.
A agroecologia não se restringe à agricultura orgânica. Porque a agroecologia discute temas como a reforma agrária, por exemplo. Claro que tem relação com a qualidade de vida, com a ocupação de terras, com a produção do alimento, e também com o alimento orgânico. Mas é muito mais amplo. A agricultura orgânica, como eu falei, é focada no produto final. Por exemplo, a banana orgânica que vai chegar num supermercado, num consumidor com um selo atestando que foram seguidas certas normas de produção. Mas a agroecologia é muito mais do que isso. É uma crítica ao modelo de produção. Que fique bem claro: alimentos são chamados de orgânicos quando são certificados. Quando não são certificados, não podem ser chamados de orgânicos, pela lei. Então, se uma banana é produzida dentro daquelas normas, mas ela não foi certificada, ela não pode ser vendida como orgânica.
Com isso, você viu que agricultura orgânica tem uma finalidade muito clara de garantir que os alimentos que chegam à mesa do consumidor sejam alimentos que seguem certas normas. Então, se você pegar uma banana orgânica e disser essa banana é orgânica, ela é agroecológica, com certeza. Mas, se ela não foi certificada, ela pode ser agroecológica, mas não ser orgânica, porque ela não teve a certificação. Mas ela foi produzida sem veneno, foi produzida em assentamento rural em bases familiares, com água pura dentro de um contexto de valorização da vida, em que as mulheres, as crianças são valorizadas, entendeu? Mas não necessariamente tem a certificação, então não pode nem ser vendida como orgânica no mercado. A agricultura orgânica, no final das contas, vai atender ao mercado, ela vai ao consumidor, de acordo com normas. A agroecologia é muito mais, é uma prática social.
E o que você considera que o 12º Congresso Brasileiro de Agroecologia, que será realizado em novembro, trará de mais relevante?
Primeiro: O congresso apresenta uma ciência diferente. Diferente no sentido de que é uma ciência que faz dialogar saberes populares, que faz valorizar aquilo que agricultores, camponeses, agricultores familiares, o pessoal do campo, o pessoal do Quilombo e o pessoal da agricultura urbana fazem com aquilo que a academia está estudando. Então, não é um congresso acadêmico em que a academia vai falar para a sociedade, é um congresso acadêmico em que a academia vai falar para a sociedade, mas vai também ouvir a sociedade, não é? E as pessoas da sociedade que têm experiência com agroecologia.
Segundo: Eu acho que um congresso acontecer neste momento traz uma relevância enorme, porque nós estamos no primeiro ano do governo Lula, um governo que está reconstruindo a política nacional da agroecologia e da produção orgânica, depois de termos tido desmontes e abandono nos governos anteriores. A gente tem a reconstrução, neste momento, dos conselhos e das políticas voltadas para abastecimento alimentar das camadas mais desfavorecidas, para o combate à fome. Ou seja, nós estamos num momento-chave de reconstrução de políticas. O Congresso Brasileiro de Agroecologia acontecer exatamente no final do primeiro ano deste governo vai ser um momento importante por causa desse diálogo. Então, acredito que vai haver um diálogo entre a academia, a sociedade e o governo sobre esse tema. (E.B.)
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