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Pesquisadores refletem sobre aspectos éticos em pesquisas em saúde com povos indígenas

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Publicado em:23/05/2023
Por Danielle Monteiro

No início do ano, em meio a uma crise sanitária histórica, circulava na internet a foto de uma indígena Yanomami que sofria de grave situação de desnutrição. Em decorrência de sua condição de saúde, ela faleceu dias após fotografada. A intensa e descontrolada exposição da imagem fez a Urihi Associação Yanomami pedir a interrupção da circulação da foto, em virtude de questões culturais. Isso porque, para os Yanomami, o nome da pessoa morta não deve ser pronunciado, seus pertences são queimados e, consequentemente, suas fotografias não devem ser divulgadas. 

O fato acendeu alerta para a importância do respeito à cultura ao se abordar temáticas relacionadas aos povos indígenas. As pesquisas que envolvem essas populações implicam cuidado especial e têm regulamentação própria. Para contribuir com a reflexão sobre o tema, o CEP Informa conversou com o pesquisador e integrante do grupo de pesquisa em Epidemiologia, Antropologia e Saúde dos Povos Indígenas da ENSP, Andrey Cardoso, e a pesquisadora do Departamento de Ciências Sociais da ENSP e membro do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/ENSP), Maria Lúcia Cardoso. Nesse bate-papo, eles apontam questões importantes sobre ética ao se fazer pesquisa envolvendo saúde de populações indígenas. Confira, a seguir:

O que pensar e planejar sobre a pesquisa em saúde com povos indígenas antes de sua realização?

Andrey: Os povos indígenas têm os mesmos direitos que a população geral. Por isso, do ponto de vista ético, desenvolver pesquisa com populações indígenas não foge muito do que é desenvolver pesquisa de maneira ética em quaisquer outros grupos sociais. Porém, há detalhes aos quais é preciso estar atento, especialmente, o respeito às particularidades socioculturais de cada povo e o cumprimento da regulamentação específica de ética em pesquisa com povos indígenas (Resolução CNS 304/2000).

No Brasil, foram identificadas 305 etnias indígenas no Censo Demográfico 2010, o que representa uma das maiores sociodiversidades do planeta. Apesar dessa diversidade, esses povos compartilham processos históricos similares de opressão e de relação assimétrica com a sociedade envolvente. Encontram-se em uma situação de maior vulnerabilidade, em função dessa relação assimétrica, tanto relacionada à questão socioeconômica, como à questão de desigualdades, particularmente, no campo da saúde. Então, só faz sentido realizar uma pesquisa com povos indígenas quando há uma justificativa muito clara, e não é possível realizar essa mesma pesquisa em outras populações em situação de menor vulnerabilidade. 

Outro aspecto é seguir a legislação específica sobre o tema: o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) deve ser redigido de forma clara, com linguagem acessível, podendo ser bilíngue, incluindo a língua materna do povo indígena no qual se realizará o estudo. O TCLE bem estruturado, além de conter todos os detalhes recomendados na legislação, deve ser apresentado às lideranças e aos indivíduos participantes da pesquisa, com a colaboração de um tradutor que esclareça quaisquer dúvidas que possam surgir. É comum o/a pesquisador/a se deparar com práticas de obtenção das assinaturas do TCLE próprias de algumas localidades ou comunidades, como a autorização passar por associações indígenas ou lideranças das aldeias, antes de se solicitar a autorização dos indivíduos que irão participar da pesquisa, o que, muitas vezes, ocorre em um segundo momento, já durante o andamento da pesquisa.

Portanto, um ponto fundamental que o/a pesquisador/a deve ter em mente é compreender como aquela população indígena se organiza localmente para seguir suas recomendações para aprovação de uma pesquisa de forma ética, informada e ágil. 

Maria Lúcia: Vale lembrar que a Resolução CNS 510/2016 sobre pesquisa em Ciências Humanas e Sociais define que o Registro de Consentimento Livre e Esclarecido pode ser realizado de diversas formas, não apenas escrito. Assim, antes de ir a campo, é importante pensar em formas de registro de acordo com as condições dos/das participantes. Pode ser em áudio, por exemplo, falado no idioma materno, com auxílio de tradutor/a. Ou mesmo em vídeo, caso não cause constrangimento. E isso requer uma preparação prévia. 

Andrey: Outro aspecto que precisa de atenção é que os estudos com povos indígenas exigem uma avaliação da Conep. Além disso, a realização de pesquisa em campo exige também uma autorização prévia da Funai para ingresso em terra Indígena para fins de pesquisa científica. Vale ressaltar que é comum ocorrerem adaptações dos procedimentos de autorização das pesquisas, a depender do contexto e de sua amplitude, o que demanda do/a pesquisador/a uma compreensão prévia para evitar atrasos e gastos desnecessários, bem como respeitar as determinações dos povos envolvidos. 

Maria Lúcia: Em uma perspectiva ética mais ampla, considero que a preparação para a pesquisa com uma população indígena demanda um conhecimento da cultura daquele povo. A familiaridade com os hábitos, a organização social, o sistema de crenças e valores, a ocupação territorial, além da forma como lida com a sociedade envolvente é um diferencial importante e faz com que o/a pesquisador/a se aproxime da compreensão do que é considerado ético para o grupo participante. 

Até mesmo o domínio de um vocabulário básico, no caso de grupos e/ou parte deles que são monolíngues, facilita muito. Atualmente há ampla bibliografia, sobretudo, no campo da antropologia, sobre todos os povos indígenas no Brasil, o que contribui muito com essa preparação.

E durante a realização da pesquisa, quais cuidados são necessários? 

Andrey: Quando você já está em território indígena, realizando a pesquisa, o que se recomenda é que tenha respeito à forma com que essas populações enxergam o comportamento do visitante em seu espaço. O/A pesquisador/a em campo deve ser bastante cuidadoso/a e atento/a aquilo que a comunidade entende como um comportamento ético e adequado dentro do seu território e da sua cultura. Isso inclui a forma com que o/a pesquisador/a vai abordar e conversar com as pessoas, caminhar pelo espaço da aldeia, usar vestimentas, utilizar locais para banho e para necessidades fisiológicas, entre outros. 

Há algumas questões de gênero, por exemplo, na comunicação: de homem com mulher, de homem com criança, com pessoas idosas, casadas ou solteiras. Da mesma forma, é comum que o contato físico seja muito restrito nessas comunidades, então, é preciso respeitar esse aspecto cultural. 

Também deve ser levado em consideração aquilo que pode ser um tabu para a comunidade, que afete ou constranja os participantes. Isso deve ser conduzido de forma muito cuidadosa durante uma entrevista e a coleta de dados. 

É importante também que a comunicação com a população e com os indivíduos participantes da pesquisa seja feita, sempre que necessário e pertinente, com auxílio de um/a tradutor/a, alguém da comunidade que possa fazer essa interlocução. Isso minimiza os riscos de falha na comunicação e atuação inadequada por parte do/a pesquisador/a. 

Vale mencionar que uma questão recorrente em campo é o desejo de registrar imagens e sons, tendo em vista os contextos socioculturais, ambientais e de saúde diversos. A legislação é bem clara nesse sentido, de que é vedado o uso de imagem e som dos/as participantes sem prévia autorização expressa. 

Portanto, é possível fazer imagens com o consentimento prévio dos envolvidos, mas apenas para registro pessoal. Para divulgação pública, deve-se solicitar e ter autorização formal prévia da Funai e também dos indivíduos participantes, na hora do registro, com assinatura dos documentos pertinentes.

Maria Lúcia: Sem dúvida, a questão da imagem de pessoas é particularmente delicada quando se trata de comunidades indígenas. É relativamente comum, como vimos no caso dos Yanomami, que o registro fotográfico ou de vídeo seja uma violência do ponto de vista cultural. Pode ser também que haja uma proibição cultural apenas em relação às imagens de pessoas que já morreram, o que torna o uso delas muito complicado a longo prazo. O conhecimento da cultura e a realização da pesquisa de forma conjunta com os representantes da comunidade é fundamental para minimizar esse risco. 

Andrey: É preciso também pensar nas medidas que devem ser tomadas para encaminhar o indivíduo para um cuidado imediato de saúde, caso seja identificado algum problema relevante naquele momento. Qualquer situação que ocorra em campo deve ser comunicada ao representante da comunidade. Em caso de identificação de risco evidente aos participantes, a pesquisa deve ser interrompida, se for o caso. Tudo isso tem que ser pensado anteriormente e conduzido de forma satisfatória no campo. 

Uma dica valiosa para orientar o comportamento ético de pesquisadores em campo é elaborar um manual de procedimentos em campo, estabelecendo claramente as regras que se adequam ao contexto de pesquisa, que devem ser rigorosamente seguidas por aqueles/as que participam das atividades de campo. 

O que é importante fazer após a realização da pesquisa? 

Andrey: É primordial que seja feita a devolução dos resultados às comunidades participantes e aos/às envolvidos/as e interessados/as de forma compreensível e acessível para os/as participantes da pesquisa. Por isso, deve-se planejar um retorno a campo para apresentação dos resultados de forma clara e, preferencialmente, levando elementos para que as populações ou as pessoas envolvidas possam de alguma forma utilizá-los para mobilizar esforços e investimentos para a melhoria das condições de vida. A devolução dos resultados pode ser feita localmente nas comunidades, com cada indivíduo participante ou, mais comumente, se envolvidas muitas comunidades, por meio do debate nas instâncias de controle social do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. É preciso envolver os parceiros e outros setores, como habitação, saneamento, economia, produção de renda, assistência social e todos que possam contribuir na elaboração de políticas públicas adequadas, para a mudança da situação de saúde dessas populações. 

Tudo o que é produzido no campo científico sobre saúde indígena deve, de preferência, ter utilidade na aplicação de políticas públicas ou como subsídios para a elaboração de políticas públicas com vistas à melhoria das condições de vida e saúde dessas populações. 

Maria Lúcia: Em situações de emergência, como se está vivendo hoje com o povo Yanomami, a pesquisa muitas vezes é fundamental para subsidiar ações de curto prazo. Pesquisadores/as já familiarizados/as com esses cuidados e rotinas podem, inclusive, contribuir na formação de profissionais de diversas áreas (não apenas de saúde) que atuem junto à população indígena. Vemos isso acontecendo agora. A postura ética está muito além da pesquisa. 

Andrey: Por fim, é importante ressaltar que “Nada sobre eles, sem eles”. Essa é uma frase que o movimento indígena tem usado como bandeira de luta por seus direitos, e todo processo de pesquisa relacionado aos povos indígenas deve incluí-los na sua concepção, elaboração e execução. Esse é um aspecto ético importante que deve ser considerado no planejamento da pesquisa.



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