Negros e jovens são os mais vitimados pela violência no Brasil. Segundo o Atlas da Violência 2017, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Jovens do sexo masculino, entre 15 e 29 anos, correspondem a 47,85% do total de óbitos. As mulheres negras são as maiores vítimas de homicídio. De acordo com o Dossiê Mulher 2018, a cada três mulheres assassinadas, duas são negras. Entretanto, resistindo com arte à falta de recursos e a todo tipo de violência, uma geração de empoderadas ultrapassou espaços antes delimitados a outra classe e etnia. São jovens negras que pintam, cantam, interpretam e vêm ocupando o Parlamento, a academia e as passarelas de moda. O empoderamento é político e estético. Elas são chamadas de geração tombamento.
Jessica Marcele faz parte dessa geração corajosa, que, de certa maneira, resgata o poder negro da década de 1970 – representado pelos Panteras Negras, na política, e pela musa Pam Grier, representando o gênero blaxploitation, no cinema, nos Estados Unidos. Embora, o Brasil sofra de sucessivas tentativas de apagamento histórico anteriormente, de 1944 a 1961, o Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado pelo ator e economista Abdias do Nascimento, teve papel fundamental na valorização da construção de uma identidade negra, na alfabetização da população negra e ao possibilitar a formação de um elenco negro.
Nascida e criada na periferia de São Paulo, Jessica participou do Lançamento do Núcleo de Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes), na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). Encontro marcante que promoveu a troca de saberes, sabores e linguagens diversas, o Neepes abarcou acadêmicos, movimentos sociais e populares, artistas em um movimento de pensar a conjuntura que irrompeu.
Ao encontro da proposta do Neepes, da academia ter mais diálogo com a sociedade, o Informe ENSP buscou uma linguagem menos formal para conversar com a slammer, poetisa, atriz e ativista Jessica Marcele, demarcando risos, pausas, o respeito aos gêneros diversos e a falta de algumas pontuações, que acompanham o ritmo da poesia falada. Como instiga sempre o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, fundador da Universidade Popular dos Movimentos Sociais, “A universidade é uma instituição em convulsão”. Para Boaventura – que viveu na favela do Jacarézinho para escrever sua tese –, é preciso inovar por meio da ecologia dos saberes, da troca de conhecimentos, sem hierarquizá-los.
Informe ENSP: Apresente-se.
Jessica Marcele: Meu nome artístico é o mesmo de registro: Jessica Marcele. Escolhi não reinventar codinomes, afinal, quando estou "artistando", é o momento em que me sinto verdadeira comigo mesma. Sou nascida e criada em São Miguel Paulista, bairro do extremo leste da cidade de São Paulo. Atriz em formação pela Escola Livre de Teatro de Santo André, atualmente, integro o Grupo PARDOnizadas, com Jaque Alves, Myla Silva e Bruno Nathan. Este é um coletivo de intervenções cênicas-poéticas que aborda, por meio da linguagem do teatro e da poesia, assuntos relacionados às mulheres negras, em sua maioria periféricas.
Do mesmo modo, fiz parte das Companhias Teatrais "Cia Cínicos Cênicos", "Cia Utilidade Pública" e “Grupo Melancolia”, e do Módulo de Pesquisa Teatral Continuada, realizado com apoio da Aldeia Satélite Espaço Cultural. Sou cofundadora do Brechó Breguenaite e do selo Cultura Independente em Movimento.
Escrevo desde criança por ser filha única e passar boa parte da infância sozinha. Tive alguns diários, nos quais me expressava pela escrita. Na época da escola, gostava muito de redação, o que me fez aprimorar meus textos. Com o passar do tempo e as demandas da vida adulta, parei de escrever até conhecer o movimento do slam, em 2016, que reavivou minha paixão pelas palavras, aprimorada com a vivência do teatro.
Informe ENSP: Quando e como você começou no slam?
Jessica Marcele: Conheci o slam em 2016 por intermédio dos meus primos, igualmente artistas e poetas, Luck Vas e Jaque Alves, que frequentavam o Sarau da Praça, organizado pelo coletivo MAP (Movimento Aliança da Praça). O mesmo coletivo organiza três slams no bairro onde moramos: o Slam Função, com poesias no padrão de até três minutos; o Slam do Corre, com poesias de até 10 segundos; e o Slam Racha Coração, com poesias de amor, do íntimo e erotismo.
O Slam Função e o Slam Uma Tacada Só – organizado pelo Coletivo Estopô Balaio, do Jardim Romano, o único slam com júri artístico que avaliava não a poesia, mas a performance do poeta – foram os primeiros slams que participei.
Informe ENSP: Qual a importância do slam para os jovens periféricos?
Jessica Marcele: Acredito que o slam traz pra nós, jovens da periferia, uma possibilidade de expressão, uma vez que temos, por diversas razões incoerentes, nossas vozes silenciadas. Além de ser um momento de troca de afeto, de conhecimento, de vivências. Oportunidades, que, muitas vezes, nos são impedidas dentro do ambiente acadêmico e nos padrões tradicionais. Foi e é no Slam que tive e tenho minhas melhores experiências: pessoais, profissionais e artísticas. Sendo eu, uma jovem que antes não tinha perspectiva, vejo o slam como uma chave que abre vários horizontes.
Informe ENSP: Qual é a relação dos slammers com os livros?
Jéssica Marcele: "Literatura Marginal” é o termo utilizado para enfatizar escritorxs das periferias e, por sua vez, independentes. Minhas amigas e amigos, muitos delxs que conheci por intermédio do slam, são xs escritorxs que mais admiro. Nossas referências estão vivas e nas ruas! No seminário do Neepes, apresentei o trabalho de algumas/alguns delxs: Patrícia Meira, Mariana Felix, Daniel Lobo, Rafael Carnevalli, Beká, Felipe Marinho, Matheus Evolutio, Carolina Hirayama, Sabrina Lopes, Caco Bezerra, MC Martina, dentre outrxs.
O Slam Sujeira, realizado em Poá/SP, em cada edição, aborda uma referência negra a ser lida e estudada em praça pública. Todos os slams que participei, sem exceção, tiveram ao menos um livro como premiação. Quer incentivo maior à leitura? Além disso, desperta em nós a possibilidade de lançarmos nossos próprios livros, incentivando a escrita e a leitura entre os jovens da nossa própria quebrada. Sem contar que os preços são geralmente acessíveis, fazendo com que tenhamos também um círculo monetário entre nós, possibilitando, além do acesso à literatura, o ganho nosso de cada dia. Está nos meus planos lançar meu primeiro Zine de poesias ainda este ano.
Informe ENSP: Como começou seu ativismo?
Jessica Marcele: Tenho algumas questões com a palavra ativista. Penso muito sobre o significado dela. Ser ativista é ser/estar ativo pra revidar de maneira política todas as injustiças sociais que nos cercam. Hoje, penso que, por vezes, minha mãe, minhas tias, minhas avós foram ativistas sem nem ter ideia disso.
A certeza que eu tenho é a de que foi a arte que me abriu os olhos pra muitas questões. O teatro, a poesia, o empreendedorismo social, toda a produção artística que me moldou, me fez revisitar e rever certas atitudes minhas para com as outras pessoas e vice-versa. Se ser ativista é lutar por direitos sociais, não consigo identificar quando começou, mas me arrisco a dizer que estou num processo que, provavelmente, perdurará minha vida inteira.
Informe ENSP: O que representou para você ler trechos de livro com o Boaventura de Sousa Santos, no lançamento do Neepes? Você conhecia a obra do Boaventura? Qual a relação que o pessoal da tua quebrada tem com os livros?
Jessica Marcele: Confesso que eu não o conhecia e foi uma experiência curiosa (risos). Ele como homem, branco, europeu com inúmeros livros lançados, viajando o mundo, e eu uma jovem, se reconhecendo como negra, da quebrada, tentando viver de arte. Representou pra mim o que, por vezes, é retratado no nosso país: "nada de novo sob o sol."
Quando ele me convidou pra leitura, tive uma certa relutância por não conhecer seu trabalho e não saber qual era a real intenção, principalmente por se tratar de um texto que relatava sobre a classe trabalhadora. Fiquei pensando sobre o quão relevante seria abordar esse texto num ambiente em que a maioria dxs funcionárixs presentes pra servir eram negrxs. Eis que, com muita sutileza e carisma, Boaventura me contou que esse texto, na verdade, era de autoria de uma de suas alunas, de Cabo Verde. Aí a perspectiva foi diferente (risos); ler o texto de uma autora negra pra uma plateia 90% branca seria totalmente revolucionário. Então, pedi ajuda aos universitários (risos) e mandei mensagem pra alguns amigxs, e todxs ovacionaram o Boaventura, só então aceitei o convite.
Como disse, as referências literais que trago são de pessoas próximas. Então, poder ler um trecho e ainda ganhar o livro de um escritor renomado de outra nacionalidade, foi, sem dúvida, uma das maiores realizações que a poesia me trouxe.
Flor do Lácio Sambódromo: o que pode essa língua?
Informe ENSP: Conte como foi participar das atividades do Neepes na ENSP/Fiocruz?
Jessica Marcele: Foi uma experiência única! Uma mistura de sentimentos e sensações a cada segundo. Eu, que estudei a vida inteira em escola pública, que nunca tive muito interesse em ter uma participação ativa num âmbito político-social, me perceber ali compartilhando minhas vivências e trocando-as com gente que já tá no front há tantos anos, sentar ao lado das Mães de Manguinhos e de dois Caciques, foi o maior aprendizado da minha vida. Principalmente porque, muitas vezes, não nos vemos nos livros de história, ainda mais como protagonistxs. Ler o livro para pessoas com uma escuta empática, sabendo que nossas histórias são contadas na oralidade, foi um registro que ficará na minha memória. Sem contar, a possibilidade de fazer redes, conhecer pessoas de outros lugares, outras histórias: tudo isso é um acréscimo na nossa bagagem.
No entanto, senti algumas paredes invisíveis e fiquei pensando sobre o quanto, por vezes, entramos numa bolha, adquirimos discursos que nem sempre são colocados em prática, e o quão sutis são certas violências e reproduções. Como e o que fazer para se evitar, mesmo no meio ativista, um distanciamento de quem/onde queremos atingir positivamente? Essa é uma questão que me atravessa desde o seminário.
Informe ENSP: Como a academia pode contribuir com os movimentos sociais e populares na tentativa de transformar o país em um lugar mais fraterno, justo, diverso e equânime?
Jessica Marcele: Acredito que, primeiramente, abrir as portas, dar acessibilidade a quem nunca entrou e/ou nem tem perspectiva de entrar na academia. É fácil discutirmos entre nós numa roda quando, do outro lado da rua, tem mais um jovem preto favelado sendo estigmatizado, violentado, encarcerado e até morto.
Apoiar um Movimento Social e Popular é saber que é necessário vivenciar com eles, teorizar a partir das práticas. Muitos movimentos vivem e se mantêm ativos de maneira independente, no que diz respeito à verba e à produção, e fazem o que seria uma obrigação do Estado. Por vezes, a gente adoece, por querer produzir artisticamente e não ter o básico pra isso. Abrir portas para esses movimentos é disponibilizar espaços antes não acessados, é pagar devidamente os cachês que as(os) artistas independentes merecem, é ter discussões abertas e diálogo com as favelas, é ter cota racial e de gênero, afinal parafraseando a cantora Bia Ferreira: "Cota não é esmola, é reparação histórica." É deixar contar nossas próprias histórias, porque, só assim, a rua e a academia andarão de mãos dadas na tentativa de transformação social. Aproveito para agradecer à MC Martina, poeta/MC/produtora cultural do Complexo do Alemão/uma dxs organizadorxs do Slam Laje, que me indicou para esse trabalho quando eu só tinha água na minha geladeira. Esse é o verdadeiro não soltar de mãos. Gratidão.
Rel(ATOS)
De onde eu falo?
Qual é a minha tribo?
Já viu quem nasceu rei, virar vassalo?
Não saber de onde venho, é um projeto político: GENOCÍDIO!
Índio Rio de Janeiro - Tupinambá, tribo de guerrilha
Povo que não nasceu pra servir sua ilha "cari oca"..
Porque em "casa do branco"
Só existe reflexo de si mesmo
E ainda querem ver meu povo a esmo!
Há um inimigo comum que se veste diferente
E a gente?
Como faz pra seguir em frente?
Permanecer no Front
Diante da guerra que pra noiz nunca acabou!
Como quem tem certeza da impunidade,
Mas pra matar não vê idade.
Unidade da diversidade
Não preciso de colarinho branco e terno,
Eu sou um povo autônomo que me auto governo!
Pra existir Leblon, tem que existir Manguinhos,
Heliópolis,
Alemão,
Paraisópolis
Capão,
A rua da minha casa,
O beco do seu vizinho.
O que é direito negado,
Pra quem nunca foi visto como merecedor de tal?
Sempre Marginalizado!
Na favela todo dia um corpo jovem negro é tombado ou encarcerado.
Não! Não! E não!
Não dá pra ter calma!
As pessoas estão morrendo
E a tristeza também mata!
Parafraseando Luiza Romão:
Matas virgens, virgens mortas.
São as mulheres pretas que mais sofrem na sala de parto,
Que mais morrem dentro e fora do quarto,
Que atravessam vielas pra salvar vidas em outras favelas,
Que limpam o seu chão, pra botar comida no nosso prato!
E o fato é que nada as abala,
Minha poesia é pra
Fazer com que essas mulheres sejam visíveis por sua própria fala!
E a bala do fuzil, quem viu?
Nas periferias não são perdidas,
São direcionadas e encontradas!
"Tem por bandeira um pedaço de sangue onde flui a correnteza do canal do mangue.. " Salve Elza Soares!
Não compartilhar conhecimento,
é projeto de exclusão e dominação!
"- ele não viu que eu tava com a roupa da escola, mãe?"
Camburão.
Calça azul, camiseta branca..
Quando se entra no presídio é como se entrasse no recreio. Pausa.
Anseio.
Ao invés de cortar os pulsos,
Corta laços que se tornaram nós na garganta.
Espanca, espanca, espanca..
na cama de um hospital..
TORTURA, GENOCÍDIO, RACISMO..
ainda te parece banal?
Levanta a alavanca do medo,
É um beco.. será que tem saída?
A ferida estanca?
Nossa lutas têm mais diferenças ou semelhanças?!
É necessário se aquilombar,
Criar estratégias de denúncias e segurança
Crença no crescimento das crianças!
Na moral..
Termino meu "relato poético-musical"
Com uma pergunta pra que consigo levem:
No final do seminário
Em uma social,
Qual é a cor das pessoas que te servem?
Jessica Marcele