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O fardo do mercúrio: seminário na ENSP debate uso na odontologia

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Publicado em:10/01/2018
*Por Ana Cláudia Peres

O fardo do mercúrio: seminário na ENSP debate uso na odontologiaO mercúrio é um metal pesado. Tomado em sentido literal, isso quer dizer que se trata de um elemento químico de elevada densidade. Mas não apenas. Pesadas, robustas, ameaçadoras são também as consequências do mercúrio para a saúde e o meio ambiente. Altamente tóxico, quando inalado em forma de vapor ou consumido por meio de alimentos contaminados, pode atingir os sistemas nervoso central, urinário e cardiovascular, danificando rins, pulmões, tireoide, olhos e causando distúrbios neurológicos e comportamentais. Em mulheres grávidas, perpassa a placenta e pode comprometer o desenvolvimento do feto e acarretar problemas futuros nas crianças, como dificuldades de aprendizado, memorização e concentração.

Acesse a Playlist no Youtube: Seminário Os Aspectos Toxicológicos do Mercúrio sobre a Saúde Humana e o Ambiente.

Para discutir o tema, a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) realizou, entre os dias 9 e 10 de novembro de 2017, o seminário Os Aspectos Toxicológicos do Mercúrio sobre a Saúde Humana e o Ambiente, promovido pelo Programa de Saúde Pública e Meio Ambiente (PSPMA), da ENSP, em parceria com a International Academy of Oral Medicine and Toxicology, capítulo Brasil. O seminário ocorreu no contexto da ratificação da Convenção de Minamata no Brasil e na controvérsia a respeito do uso da amálgama, historicamente atravessada por duas linhas teóricas básicas: a primeira defende o banimento do mercúrio e afirma não haver uso seguro do metal presente na lista das Nações Unidas como uma das dez substâncias químicas que mais ameaçam a saúde do planeta; e a outra cuja argumentação alega a possibilidade do uso seguro, durabilidade, baixo custo e ausência de material restaurador odontológico substitutivo à amálgama (liga metálica que contém mercúrio). Os vídeos do seminário estão disponíveis no Canal da ENSP no Youtube.

 

O alerta de cientistas, pesquisadores e ambientalistas de todo o mundo soou mais alto e, desde agosto de 2017, o Brasil passou a ser signatário da Convenção de Minamata, tratado internacional que estabelece critérios rigorosos para combater o uso do mercúrio, liberado no ambiente indevidamente a partir de atividades como o garimpo ilegal e a produção de cimento ou ainda com a utilização da substância em tratamentos de saúde bucal e nos medidores de pressão arterial, por exemplo. Depositado na sede das Nações Unidas, o documento que ratifica as investidas do país rumo ao banimento do mercúrio entrou oficialmente em vigor em todo o território nacional, em novembro.

A partir de agora, têm início de modo mais sistemático uma série de iniciativas para cumprir o protocolo que, entre outras medidas, prevê a proibição da abertura de novas fontes de mercúrio, a eliminação progressiva das já existentes, ações de controle sobre as emissões atmosféricas e a regulamentação internacional sobre o setor informal da mineração artesanal e de ouro em pequena escala. As grandes mineradoras, oficialmente, não utilizam mercúrio, mas elas também estão subordinadas ao que determina o tratado de Minamata, assim como o setor industrial. “Estamos unindo todos os esforços na elaboração de um plano intersetorial para implementação da Convenção”, diz Thais Cavendish, coordenadora geral de Vigilância em Saúde Ambiental do Ministério da Saúde, acrescentando que uma minuta do plano já está em andamento. “Teremos eixos que tratam de gestão de equipamentos e materiais contendo mercúrio no setor saúde. Outros sobre a promoção de pesquisa e estudos relacionados à exposição ao mercúrio. E ainda os que tratam de definição de normativas e políticas públicas ligadas à saúde e ao metal”, completa.


Formado por representantes dos ministérios da Saúde e do Meio Ambiente, das secretarias municipais e estaduais de Saúde e de instituições como Fiocruz e Instituto Evandro Chagas, o grupo aguarda agora a publicação de uma portaria governamental para passar a funcionar institucionalmente. Assim como acontece em outros tratados internacionais voltados para a eliminação global de substâncias tóxicas, inicialmente será realizado um inventário para identificar as principais fontes de mercúrio no país e o quanto elas contribuem para a poluição do meio ambiente, informa a professora e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz) Sandra Hacon. “A partir daí, é necessário estabelecer um prazo para a substituição por outras tecnologias”, comenta.

Por exemplo, desde março, estão proibidos a fabricação, a importação, a comercialização e o uso em serviços de saúde de termômetros e esfigmomanômetros (medidores de pressão arterial) com coluna de mercúrio. A resolução foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mas as empresas fabricantes e os órgãos de saúde terão até 1º de janeiro de 2019 para se adequar às exigências e substitui-los por termômetros digitais. Apesar da pequena quantidade do mercúrio presente nos termômetros de vidro — dois gramas —, o contato com o metal, em caso de acidentes quando a cápsula é quebrada, também representa risco para a saúde. Dados do Ministério do Meio Ambiente revelam que a exposição a 1,2 miligramas de mercúrio por algumas horas pode causar bronquite química seguida por fibrose pulmonar.

Mineração e Yanomami

Mas o termômetro está longe de ser a principal preocupação quando o assunto é a emissão do mercúrio. “Do ponto de vista brasileiro, principalmente falando na perspectiva do setor saúde e ambiental, a fonte de mercúrio que provém do processo de mineração é a mais preocupante”, afirma à Radis Thais Cavendish. Isso porque, nas áreas de garimpo, ela explica, o mercúrio está relacionado à exploração do ouro, sendo utilizado com uma liga metálica específica, formando uma cintura de amálgama durante o aquecimento para separação do ouro em pó. “Nesse processo, você pode deixar resíduos de mercúrio que serão carregados por longas distâncias nas águas dos rios gerando contaminações difusas ao longo do tempo”, esclarece. “Além disso, quando aquecido na casa de queima durante a venda do ouro, os vapores de mercúrio entram na atmosfera e voltam a se condensar com as precipitações, retornando para os compartimentos ambientais”.

O efeito perverso do mercúrio na mineração pôde ser constatado na prática a partir de uma pesquisa realizada pela Ensp/Fiocruz, em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), que comprovou a contaminação do povo Yanomami pelo metal. De acordo com o estudo, divulgado em 2016, algumas aldeias chegam a ter 92% das pessoas examinadas afetadas pelo mercúrio, com um nível mais alto do metal presente nas populações mais próximas ao garimpo ilegal praticado às margens do rio Uraricoera, em Roraima. No leito dos rios, em contato com microrganismos, o mercúrio inorgânico passa por um processo biológico, originando o metilmercúrio que, como informa Sandra Hacon, é uma das formas mais tóxicas do metal.

A professora da ENSP foi a vice-coordenadora da pesquisa. Ela explica que, nesses casos, a contaminação ocorre principalmente a partir da ingestão de pescados contaminados, em especial de peixes carnívoros, isto é, aqueles que comem outros peixes e estão no topo da cadeia alimentar. O estudo atendeu a uma demanda dos próprios Yanomami e Ye´kwana, povos indígenas que desde a década de 1980 convivem com a ameaça do garimpo na região. Entre novembro e dezembro de 2014, as equipes visitaram dezenove aldeias produzindo um relatório a partir de 239 amostras de cabelos cortados e, depois de analisados, devolvidos à população indígena, uma vez que, para os Yanomami, todos os pertences e partes do corpo devem ser cremados após a morte. Foram priorizadas amostras de crianças, mulheres em idade reprodutiva e adultos com algum histórico de contato direto com a atividade garimpeira, grupos mais vulneráveis à contaminação. Além disso, a pesquisa coletou 35 amostras de peixes que são parte fundamental da dieta alimentar desses povos.

Com os resultados em mãos, os pesquisadores recomendaram a interrupção imediata da exposição por meio do garimpo e a avaliação clínico-neurológica dos indígenas contaminados. Em algumas aldeias, a contaminação chega a 85%, entre as crianças de zero a cinco anos. Levado à Fundação Nacional do Índio (Funai), ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e às Nações Unidas, o relatório gerou uma ação da Polícia Federal para impedir a prática do garimpo nas terras Yanomami. “Mas após algum tempo, tudo voltou a ser como era antes. Isso é frustrante”, lamenta Sandra. No Brasil, não há minas de mercúrio. O metal presente no garimpo entra em nossas fronteiras por meio de contrabando, onde a fiscalização é insuficiente.

Características do Hg

Aquele elemento de aparência inofensiva; o líquido branco prateado e inodoro que evapora com facilidade, conhecido também como prata-viva; o hydrargyrum (ou Hg da tabela periódica) de número atômico 80; o metal pertencente à família do zinco encontrado também em pilhas e lâmpadas fluorescentes; o mercúrio está na lista das Nações Unidas como uma das dez substâncias químicas que mais ameaçam a saúde do planeta. Segundo a ONU, anualmente, até 8,9 mil toneladas do metal pesado são lançadas nos ecossistemas. Somente as atividades de mineração expõem 15 milhões de trabalhadores, vivendo em 70 países, ao risco de intoxicação por mercúrio.

Muitas outras profissões estão expostas aos riscos do mercúrio como aquelas relacionadas às indústrias de equipamentos eletrônicos, produção de cimento, manufatura de tintas, serviços de cremação e ainda os dentistas e técnicos em odontologia, cujo manuseio da amálgama constitui uma polêmica à parte. É consenso que não há limite seguro para a exposição ao mercúrio. A Organização Mundial da Saúde (OMS) utiliza como parâmetro de referência um indicador que considera que níveis acima de seis microgramas de mercúrio por grama de cabelo podem trazer sérios danos à saúde, principalmente aos grupos mais vulneráveis.

Também não há tratamento padronizado nem medicamento que retire completamente o mercúrio do organismo. “Existem algumas substâncias quelantes (utilizadas no tratamento de intoxicação por metal) usadas em situações extremas, quando há contaminação aguda, com altos índices de mercúrio no organismo”, explicou o médico Paulo Basta, coordenador da pesquisa junto aos Yanomami, em entrevistas concedidas na época. É por isso que, para Sandra Hacon, é urgente reduzir os níveis de mercúrio no meio ambiente e, consequentemente, seus efeitos sobre a população humana. “O mercúrio pode ficar até dois anos circulando na atmosfera. Mesmo que os países reduzam o seu uso, a concentração do metal poderá resistir por um tempo”.

No Brasil, país considerado um emissor global relevante na América Latina e Caribe, ainda que não seja possível traçar uma escala com dados objetivos sobre os grupos sociais mais expostos aos riscos, Thais Cavendish estima que, além dos garimpeiros e das populações adjacentes às regiões de garimpo (povos tradicionais, ribeirinhos e população indígena), há ainda um outro segmento vulnerável. “Trata-se das pessoas diretamente envolvidas com os resíduos sólidos, que vivem próximas aos lixões. Essa população muito precarizada tem contato não só com o mercúrio, mas com uma quantidade muito grande de elementos químicos nocivos à saúde, entre os quais o mercúrio figura de forma considerável”, calcula.

Por isso mesmo, para a representante do Ministério da Saúde, é um alento saber que o Brasil figura entre os 128 países signatários da Convenção de Minamata. O nome do tratado é uma referência à Baía de Minamata, no Japão, que em 1956 enfrentou o caso mais desastroso de contaminação envolvendo o mercúrio. Durante duas décadas, moradores da região sofreram com o despejo contínuo de rejeitos industriais nos afluentes da Baía de Minamata, passando a desenvolver convulsões, psicoses e desmaios. Segundo a ONU, perícias concluíram que cerca de mil pessoas haviam sido envenenadas com mercúrio.

Amálgamas odontológicos

As recomendações da Convenção de Minamata também têm impactos diretos sobre a prática da odontologia, uma vez que o tratado propõe a redução gradual da amálgama — liga que contém mercúrio — nas restaurações dentárias. Nesses casos, a intoxicação pode ocorrer devido à presença contínua da amálgama na boca de pacientes que usam esse tipo de obturação ou ainda quando, durante a substituição da restauração antiga, ocorre a liberação do mercúrio em forma de vapor e pó, com riscos de contaminação tanto para o paciente quanto para os profissionais no ambiente fechado de um consultório dentário.

Nos dias 9 e 10 de novembro, o auditório da ENSP na sede da Fiocruz, no Rio de Janeiro, ficou lotado, principalmente de profissionais de odontologia, durante o I Seminário Internacional Aspectos Toxicológicos do Mercúrio sobre a Saúde Humana e o Ambiente. Na ocasião, o pesquisador americano David Kennedy, da Academia Internacional de Medicina Oral e Toxicologia, foi taxativo em relação ao assunto. Ele disse que pessoas que nunca tiveram amálgama na boca têm níveis de mercúrio no organismo bem abaixo do que aquelas que apresentam obturação com a substância, e revelou dados alarmantes de pesquisas internacionais que apontam a presença de metilmercúrio até no intestino desses pacientes.

O pesquisador expôs ainda casos de comprovada infertilidade feminina entre profissionais que tiveram elevada exposição ao mercúrio. Ao elencar uma série de alterações provocadas pelo contato com a amálgama, entre elas fadiga, perda de apetite, irritabilidade e até depressão, acrescentou: “O mercúrio pode ter a ver com qualquer reação do organismo”. Ao mesmo tempo, Kennedy descartou que a solução seja retirar as amálgamas uma vez que isso expõe os pacientes e profissionais aos mesmos riscos de quando colocados. “Tirar a amálgama não é a solução. Parar de usá-la, sim”, concluiu.

Mas a discussão não é tão simples. Há especialistas que defendem o uso da amálgama. Ao insistir nessa opção, eles apontam que as alternativas em saúde bucal, principalmente dentro do sistema público de saúde brasileiro, ainda não são muito viáveis e alegam ser preciso levar em conta o acesso da população às tecnologias disponíveis. Restaurações com amálgama têm um maior tempo útil, nunca precisam ser trocadas, ao contrário de outros materiais que ainda não estão disponíveis no país e demandam uma substituição constante. Essa é a posição de uma outra corrente também manifestada durante o evento.

A pesquisadora Eliana Napoleão, professora do Programa de Saúde Pública e Meio Ambiente da Ensp/Fiocruz e uma das organizadoras do seminário, aposta que essa é uma discussão que precisa ser enfrentada. Para ela, é importante debater a questão e as implicações dessa decisão para a prática odontológica e a saúde pública, o campo da pesquisa e os trabalhadores do setor. Mas Eliana está convencida de que é preciso reunir esforços com diferentes segmentos sociais e pensar alternativas duradouras e não tóxicas ao uso da amálgama na saúde bucal, levando em conta a realidade brasileira. “Acho que é um grande início discutir quais as medidas de controle e de informação podem ser oferecidas, inclusive junto às escolas de odontologia”, disse à Radis. “Depois de tudo que vi e ouvi no seminário, acho essencial discutir outras opções que não a amálgama”.

*Ana Cláudia Peres é jornalista da Revista Radis.

Fonte: Radis 184, com informações do Informe ENSP

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