A regionalização pode contribuir para o avanço do SUS?
A regionalização é um processo técnico-político relacionado à definição de recortes espaciais para fins de planejamento, organização e gestão de redes de ações e serviços de saúde. Segundo a pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da ENSP Luciana Dias Lima, por seus significados e pelas relações existentes entre regiões e redes de atenção no país, o avanço do processo de regionalização pode interferir positivamente no acesso à saúde, pois permite observar os determinantes sociais de saúde no modo como estes se expressam no território; estabelecer portas de entrada e hierarquia tecnológica com base em parâmetros de necessidade e utilização dos recursos disponíveis; disponibilizar recursos sociais e políticos que incentivem o compartilhamento de responsabilidades entre os governos e a participação da sociedade nesse processo, entre muitos outros benefícios. E você, o que pensa sobre a importância da regionalização para o avanço do SUS? Responda a pergunta e participe do mais novo tema do Blog Saúde em Pauta. Escreva! Dê sua opinião!
O Sistema Único de Saúde e o surgimento da regionalização
O SUS conforma o modelo público de ações e serviços de saúde no Brasil. Orientado por um conjunto de princípios e diretrizes válidos para todo o território nacional, parte de uma concepção ampla do direito à saúde e do papel do Estado na garantia desse direito, propondo uma ruptura do padrão de estratificação da cidadania social que modulou por mais de 50 anos a assistência à saúde no país.
Na década de 1990, a implantação do SUS foi marcada pela descentralização que redefiniu responsabilidades entre os entes governamentais e resultou na transferência de funções antes concentradas na União para os estados e, principalmente, os municípios. A descentralização foi importante para a expansão da cobertura de serviços e recursos públicos provenientes dos governos subnacionais. Entretanto, não foi capaz de resolver as imensas desigualdades regionais presentes no acesso, utilização e gasto público em saúde, além de não ter conduzido à integração de serviços, instituições e práticas no território.
Segundo Luciana, somente no contexto dos anos 2000, a regionalização adquiriu maior destaque entre as diretrizes nacionais que orientam a implantação do SUS. A regionalização é um processo técnico-político relacionado à definição de recortes espaciais para fins de planejamento, organização e gestão de redes de ações e serviços de saúde.
“A própria noção de rede regionalizada e hierarquizada, prevista no texto constitucional, pressupõe a região como atributo fundamental para sua organização e funcionamento. Esta se constitui por um conjunto de unidades - ou pontos de atenção -, de diferentes funções, complexidades e perfis de atendimento, que devem operar de forma articulada no território, de modo a atender as necessidades da população”, explicou ela.
De acordo com a pesquisadora os mecanismos de coordenação e cooperação entre os entes são especialmente críticos para a regionalização da saúde no caso brasileiro. Frente às particularidades da nossa federação, a interdependência federativa é uma característica constitutiva do SUS, sendo as regiões também espaços privilegiados de articulação intergovernamental.
Para Luciana, por seus significados e pelas relações existentes entre regiões e redes de atenção, o avanço do processo de regionalização pode interferir positivamente no acesso à saúde, pois permite: observar os determinantes sociais de saúde no modo como estes se expressam no território; projetar necessidades de organização dos serviços de forma ampla incorporando diferentes campos da atenção e visão de futuro; e atender uma população que não necessariamente se restringe aos territórios municipais.
Além disso, pode estabelecer portas de entrada e hierarquia tecnológica com base em parâmetros de necessidade e utilização dos recursos disponíveis; utilizar melhor os recursos humanos e tecnológicos presentes na região de forma a desbloquear fluxos e garantir resolutividade na atenção; disponibilizar recursos sociais e políticos que incentivem o compartilhamento de responsabilidades entre os governos e a participação da sociedade nesse processo.
O processo de regionalização e sua dinâmica
O processo de regionalização vem se associando, em cada estado, às dinâmicas socioeconômicas, às políticas de saúde anteriores, ao grau de articulação existente entre representantes do Conselho de Representação das Secretarias Municipais de Saúde e da Secretaria Estadual de Saúde e sua capacidade de gerar consensos sobre a divisão de responsabilidades gestoras e desenhos regionais adotados em cada estado.
Segundo Luciana, malgrado os esforços e os ganhos de institucionalidade observados nos anos 2000, a iniquidade resiste e o Brasil ainda é um país que apresenta marcantes heterogeneidades na oferta de serviços de saúde. Isso decorre de um conjunto de fatores que dizem respeito à própria implementação da política de saúde, e que condicionam a forma como a atenção à saúde se materializa no território.
Para a pesquisadora um primeiro fator a ser observado diz respeito à própria abrangência e à natureza das ações desenvolvidas, que ensejam a possibilidade de se considerarem e se utilizarem diferentes critérios para a organização regional dos serviços de saúde: por tipos de assistência prestada (ambulatoriais, hospitalares de diversos tipos, domiciliares, urgência e emergência); por níveis de complexidade da atenção à saúde (atenção básica, média e alta complexidade); pela direcionalidade das ações (agravos, grupos populacionais e áreas específicas da atenção à saúde); e, ainda, por modelos de prestação do cuidado.
“Existem tensões entre as distintas lógicas que orientam a organização dos serviços, que muitas vezes não se coadunam no território, ou conformam redes específicas pouco articuladas entre si. Tais problemas expressam propostas de planejamento e de financiamento conduzidas de forma fragmentada, seja por uma mesma esfera de gestão ou, ainda, pelos vários entes governamentais que exercem influência político-administrativa sobre determinada região”, apontou ela.
Outro fator citado por Luciana diz respeito à própria forma como foi moldada a descentralização no SUS. Foram estabelecidos acordos diferentes entre estados e municípios no âmbito das Comissões Intergestores Bipartites (CIB), inclusive quanto à repartição das responsabilidades de gestão das unidades prestadoras de serviços. Em muitos casos, a divisão de funções respeitou a densidade tecnológica dos estabelecimentos de saúde, em outros, a natureza dos serviços oferecidos (se ambulatoriais ou hospitalares) ou sua abrangência (local, regional ou estadual).
Uma análise da regionalização da política de saúde
De acordo com a pesquisadora a análise da regionalização da política de saúde nos últimos dez anos não deixa dúvidas sobre o papel central desempenhado pelo Executivo Federal na regulamentação desse processo. Por meio de diferentes dispositivos normativos, têm sido definidas estratégias e instrumentos que estimulam a organização de redes regionalizadas de atenção à saúde, a pactuação e formalização de acordos federativos no âmbito estadual e regional. A interdependência federativa, por sua vez, favorece a introdução de novos arranjos de gestão colegiada, que requerem ações mais coordenadas entre os governos.
“As atuais diretrizes expressas no Decreto N. 7.508 de 2011 ressaltam a necessidade do fortalecimento do enfoque territorial e da capacidade de planejamento e gestão intergovernamental em suas múltiplas escalas (nacional, estadual, regional). Entretanto, é preciso considerar que existem atributos do planejamento que são próprios de cada esfera de governo”, avaliou Luciana.
Segundo ela, por um lado, no âmbito nacional e estadual, a regionalização não se resume a agregação de um processo de planejamento de base local e ascendente. Por outro, o resgate do território no planejamento e gestão de políticas de saúde exige esforços de articulação intersetorial. O território agrega a perspectiva da diversidade regional - que se traduz em dinâmicas territoriais específicas -, do desenvolvimento, da integração de políticas sociais e econômicas e da articulação dos diversos campos da atenção à saúde (assistência, vigilâncias, desenvolvimento e provisão de recursos humanos, tecnologias, insumos para a saúde).
Os desafios para o avanço da regionalização
Nesse sentido a pesquisadora considera que o avanço da regionalização da saúde no Brasil, na atual fase de construção e consolidação do SUS, apresenta enorme desafios, entre eles:
- Introdução de alterações organizacionais, desenvolvimento e incorporação de tecnologias de informação no Ministério da Saúde e nas Secretarias de Saúde, que possibilitem um olhar integrado sobre o território e o reforço do planejamento regional do sistema de saúde;
- Elaboração de uma pauta de negociação regional, no plano nacional e estadual, que subsidie compromissos a serem assumidos pelos gestores no sentido de integrar a atenção à saúde às ações de fomento ao complexo industrial da saúde, às estratégias de formação e alocação de recursos humanos e à política de ciência e tecnologia do SUS;
- Formulação de propostas específicas que apoiem a regionalização do SUS nos estados brasileiros, levando em consideração condicionantes e estágios diferenciados de implementação de cada um;
- Valorização, atualização e diversificação dos mecanismos de negociação e pactuação intergovernamental, com: (a) ampliação da representatividade e do debate sobre temas de interesse regional nas instâncias federativas do SUS (ex: CIT, Conass, Conasems, CIB, Cosems e CIR); (b) reforço da institucionalidade das instâncias federativas no plano regional (incorporação de pessoal permanente, qualificação de equipes técnicas e dirigentes, reforço das funções de planejamento e regulação) e criação de novos arranjos em situações específicas (tais como as regiões metropolitanas, as áreas fronteiriças, as zonas limítrofes entre estados, as áreas de proteção ambiental e reservas indígenas); (c) consolidação de parcerias intergovernamentais (por meio de consórcios e contratos) baseadas em planos regionais de saúde formulados e acordados nas instâncias de pactuação federativa do SUS;
- Reformulação dos mecanismos e instrumentos de transferência e gestão intergovernamental de recursos financeiros sob à ótica regional;
- Elaboração de um plano nacional de investimento para permitir uma oferta à saúde adequada e menos desigual nas diferentes regiões do país.
Segundo Luciana, “as decisões acima não são simples. Elas envolvem um processo de negociação intenso entre atores políticos do Executivo, do Legislativo e da sociedade, e um maior comprometimento das diferentes esferas de governo na gestão e financiamento do SUS”.
Região e Redes: o caminho da universalização no Brasil
Com o objetivo de avaliar, sob a perspectiva de diferentes abordagens teórico-metodológicas, os processos de organização, coordenação e gestão envolvidos na conformação de regiões e redes de atenção à saúde, além de seu impacto para melhoria do acesso, efetividade e eficiência das ações e serviços no SUS foi criado o site Região e Redes: caminho da universalização da saúde no Brasil, fruto da pesquisa nacional ‘Política, Planejamento e Gestão das Regiões e Redes de Atenção à Saúde no Brasil’, coordenada pela USP com a participação de quase cem pesquisadores de diversas instituições no Brasil, entre eles, representantes da ENSP. Conheça o site!
*Luciana Dias Lima é pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da ENSP e integrante do Comitê Guia da Dimensão Governança Regional na pesquisa nacional ‘Política, Planejamento e Gestão das Regiões e Redes de Atenção à Saúde no Brasil’. Todas as informações contidas no texto fazem parte de diversos estudos previamente desenvolvidos pela pesquisadora na área.