Pesquisadora da ENSP, autora de estudo sobre causas de inundações de Petrópolis, avalia situação atual
O Dia Mundial da Água, 22/3, é uma data criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1992, com o objetivo de alertar a população sobre a importância da preservação desse recurso para a manutenção de todos os ecossistemas no planeta. Mas a água também gera problemas. Petrópolis, cidade do Rio de Janeiro atingida por um forte temporal, há mais de um mês, que matou 233 pessoas, é um exemplo disso. A pesquisadora do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da ENSP, engenheira Rafaela Facchetti, concedeu entrevista ao Informe ENSP, em que avalia a situação da cidade. Ela é autora de um estudo sobre as causas e agravos das inundações do município, e explica questões como ocupação desordenada, desigualdade social, leniência do poder público e mal uso do dinheiro público. Confira!
Informe ENSP: Em sua tese de doutorado ‘Petrópolis - um histórico de desastres sem solução? Do Plano Köeler ao Programa Cidades Resilientes’, defendida em 2015, a senhora analisa as causas e agravos das inundações e deslizamentos de Petrópolis, município da Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro, tomando-se como base o Plano do engenheiro alemão Julio Köeler para o uso, ocupação e parcelamento do solo urbano e o Programa de Cidades Resilientes, a fim de solucionar o problema. Analisam-se os resultados das Comissões Parlamentares de Inquéritos, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e da Câmara Municipal de Petrópolis (CMP), por indicarem caminhos à solução dos problemas correlatos, e tentaram responsabilizar os agentes públicos, por omissão diante dos riscos a que a população se encontra exposta.
Em fevereiro último, vimos uma tragédia matar 233 pessoas e deixar 4 desaparecidas, devido ao forte temporal que atingiu a cidade de Petrópolis. A senhora diz que se Köeler houvesse sido respeitado na sua integralidade, inclusive se tivesse sido replicado para os demais distritos, os problemas seriam bem menores. O plano deveria estabelecer, além da indivisibilidade dos prazos de terra, suas taxas de ocupação. O planejamento dele seguiu diversas premissas que fundamentam o plano urbanístico. Entretanto, as cidades não são um objeto inerte, são corpos orgânicos que, em certas ocasiões, fogem ao controle estrito do planejamento. Como conjugar esses interesses?
Rafaela Facchetti: A tese constrói a hipótese de que, se o plano Köeler houvesse sido respeitado em sua integralidade e replicado para todos os distritos, poderia se ter uma cidade de menor porte, com talvez, menos de 1/3 dos atuais habitantes. Mas a sua observação é lógica, de que uma cidade é orgânica, e, portanto, não há um controle absoluto ao longo do tempo. A crítica que faço se deve mais ao fato de que o poder público municipal ao longo dos anos foi omisso e permitiu, e até incentivou, a ocupação desordenada das encostas.
Nunca houve uma política pública de habitação de interesse social contínua. Apesar de ter sido feito um plano de habitação de interesse social, em 2012, esse nunca foi colocado em prática. A cada desastre, se distribui aluguéis sociais, e se constrói um número insuficiente de moradias de baixíssima qualidade para atender aos desabrigados. Sendo assim, temos vários problemas gerados pela ineficácia do poder público e agravados pelas intempéries.
O Plano de Redução de Risco de Petrópolis, concluído em 2017, aponta que há mais de 15 mil casas só no primeiro distrito em áreas de risco, e mais de 27 mil na totalidade do município, grande parte dessas ocupa áreas de preservação permanente, ou em encostas ou em faixa marginal de proteção dos rios.
Desde o dia 15 de fevereiro de 2022, a Defesa Civil interditou 1,7 mil casas, segundo a Tribuna de Petrópolis (14/03/22). Essas casas serão demolidas? Os relatos são de saques a essas casas por ladrões, a tendência é que os moradores voltem a ocupar grande parte dessas casas por falta de oferta de imóveis para alugar na cidade em áreas seguras e por receio de ficar sem seus bens.
Os números desse desastre são assustadores, a prefeitura tem publicado o Petrópolis Boletim, que em 13/03/22 informa que o número de deslizamentos foi de 4.868, e a Tribuna de Petrópolis (15/03/22) que foram 4.970, não importa, a ordem de grandeza é impressionante.
As ruas e as margens dos rios estão danificadas por todo o centro da cidade, nem mesmo a limpeza urbana conseguiu-se fazer após um mês.
E pouco se está falando do drama de todos que perderam familiares, e moradia, afetados por problemas psicológicos que o desastre acarreta e que a saúde pública do município terá que atender. Casos de estresse pós-traumático abundam nos postos de saúde e perduram por anos a fio.
O que se está querendo demonstrar é que, quando ocorre o desastre, algumas providências são tomadas, mas o problema em si não é tocado.
Quando abordei na minha tese o Programa Cidades Resilientes da ONU como um caminho para a cidade, foi porque Petrópolis se tornou signatária dele ao se inscrever nele, em 2014, mas de lá para cá pouco foi efetivamente feito.
Após o Desastre de 2011 na Região Serrana, houve avanços nacionais na prevenção de desastres com a edição da Lei 12.608, de 10/04/2012 que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, um marco importante para o país, a criação do CEMADEN - Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, através do Decreto nº 7.513, de 1/07/2011, mas se toda a sociedade não for capacitada para o “estar preparada” para o enfrentamento de desastre, nunca será o bastante apenas decretos e leis.
Reconhece-se que a Prefeitura de Petrópolis ao criar, em 2012, a Secretaria Municipal de Proteção e Defesa Civil fez um grande avanço, mas houve descontinuidade nas políticas a cada troca de comando pelo poder público. Enfim, é preciso ampliar as ações de capacitação da população para estar preparada e saber agir quando há o alerta de chuva forte, aumentar o número de sirenes nas áreas de risco e fazer manutenção nas existentes para que não haja falhas na operação, colocar sirenes também nas áreas passíveis de inundação.
Crianças e adultos necessitam saber nadar e como agir em caso de fortes correntezas. Nessa última chuva, muitas pessoas morreram afogadas, coisa que era rara de acontecer nos eventos anteriores. A falta de mobilidade urbana ou de iniciativa por parte dos motoristas pegos pela inundação e que não souberam como agir foi gritante, várias ruas não foram interditadas a tempo, o número de carros resgatados foi de 451, de acordo com o Petrópolis Boletim de 13/03/22, fora os dois ônibus que caíram no rio Quitandinha, cujas imagens chocaram a todos.
O município tem graves deficiências na micro e na macrodrenagem, demandando obras estruturais. Nesse quesito, que já se sabe não haver planos de ação imediata, o Comitê Piabanha está contratando estudos para propor soluções.
Nesse primeiro mês, várias entidades da sociedade civil estão mobilizadas na busca de soluções e na expectativa de poder exercer o controle social na fiscalização das verbas emergenciais para que essas sejam bem empregadas. Novamente, depois de onze anos, me vejo engajada no acompanhamento das providências pós-desastre e com esperança de que dessa vez se vá alcançar resultados positivos. Dado que quando fechei a minha tese, a Comissão das Chuvas tinha ótimas expectativas para a sua continuidade, no entanto, as verbas estaduais secaram no decorrer de 2015, as obras pararam e, somente em 2020, foram entregues unidades habitacionais para vítimas de vários outros desastres, inclusive algumas de 2011. Mas ainda há várias pendências judiciais, as obras de recuperação das margens dos rios foram retomadas em 2021, mas ainda não foram concluídas e apresentam problemas na execução, ou seja, depois de 11 anos, o desastre de 2011 ainda não acabou. Quanto tempo o de 2022 levará para ser resolvido? Quando teremos uma solução integral para os moradores das áreas de risco? Quando o problema das inundações será mitigado? E ainda, quando teremos outra chuva extraordinária? A cidade estará preparada?
Informe ENSP: A cidade de Petrópolis foi ocupada de forma desordenada, como disse. Por que os planos habitacionais não são eficientes?
Rafaela Facchetti : Primeiro, o crescimento populacional na segunda metade do século XX foi exponencial em todo o planeta, demandou políticas sociais que nunca foram efetivamente postas em prática. A desigualdade social é gritante.
Segundo, Petrópolis foi pensada como um lugar de vilegiatura, não nos cabe aqui fazer juízo de valor sobre isso, é fato que foi a partir de terras particulares do Imperador Pedro II que se construiu um vilarejo para que a família Imperial e a Corte tivessem um local para passar o verão, onde o clima fosse ameno e houvesse salubridade em relação às febres transmitidas por mosquitos. Aparentemente, não se pretendia de fato ter nada além de casas de veraneio e uma colônia agrícola composta por trabalhadores livres para alimentar os visitantes.
O que deu errado? Os imigrantes alemães que vieram para cidade não eram agricultores como o pretendido, vieram famílias inteiras, em que os homens eram, na sua maior parte, artesãos, e, também, as terras da Fazenda Córrego Seco, diferentemente das do Padre Côrreas, não eram propícias para o cultivo. Logo nas primeiras décadas, começaram a aparecer empreendimentos fabris: cervejarias, tecelagens e marcenarias que se expandiram pela cidade, atraindo mais mão-de-obra e aumentando a população. Por conta de empregos nessas fábricas, houve várias ondas migratórias que vieram a ampliar a população de Petrópolis.
Com o declínio das indústrias em meados do século XX, as vilas operárias foram desmontadas e os operários buscaram as encostas como opção barata para moradia. Então, estamos falando de pelo menos 60 ou 70 anos de falta de uma política habitacional consistente.
Nas últimas décadas, a Prefeitura não ampliou por concurso público os seus quadros técnicos, muitos dos servidores se aposentaram e não foram substituídos, o que culmina, hoje, na quase inexistência de fiscais e engenheiros nesses quadros.
Temos aí causas para as ocupações desordenadas, falta de política habitacional, empobrecimento da população e falta de fiscalização que impeça as construções no seu nascedouro.
Informe ENSP: Então, é lógico, que a culpa das inundações e deslizamentos não é só do volume de água, como as autoridades gostam de alegar?
Rafaela Facchetti: Por tudo que foi exposto acima, eu diria que só uma parte é culpa da chuva extraordinária. Realmente, não haveria nenhuma obra que desse conta de impedir a última inundação, mas poderia ter havido uma atenuação. Os deslizamentos ocorreriam, talvez, em menor número, dada a geomorfologia da região que é propensa a ter esses movimentos de massa, mesmo em áreas intocadas. O que poderia ser evitado são as mortes por ocupação das áreas de risco.
Informe ENSP: Essa leniência do poder público é a grande responsável pelas mortes e prejuízos com os desalojados e desabrigados. Por que as prefeituras não exercem o seu poder de coibir as construções irregulares?
Rafaela Facchetti: A leniência do poder público somada à não tomada de posição de toda a sociedade. A cidadania ainda é pouco exercida pelos brasileiros. Temos muito pouca consciência de que temos que exercer um controle social efetivo. Quantas pessoas fazem trabalho voluntário nesse país, quantos participam efetivamente de conselhos municipais ou acompanham as providências, desses, quantos sabem, participam de comitês de bacia? Quantos acompanham as ações do Ministério Público de interesses difusos? Quantos se mobilizam para proteger o meio ambiente, a saúde, as águas?
Sim, o poder público é leniente, há mal uso do dinheiro público, a justiça nem sempre ocorre, e talvez a principal responsabilidade dos políticos brasileiros seja com a falta de uma educação, para que a nossa população atue pela cidadania.
Informe ENSP: A senhora, como moradora de Petrópolis, disse estar engajada no acompanhamento das providências pós-desastre e com esperança de que dessa vez se vá alcançar resultados positivos. Como engenheira, pesquisadora da ENSP e participante do Comitê da Bacia Hidrográfica do rio Piabanha, continua participando de que forma no alerta dos problemas? Está vendo solução para a cidade, um mês depois do temporal?
Rafaela Facchetti: Sim, continuo atuando no município, não poderia ser diferente, como moradora de Petrópolis, mas, principalmente, como cidadã consciente da responsabilidade que possuo. Desde a semana do desastre venho participando de reuniões conjuntas do Comitê de Bacia com o Ministério Público, rodas de conversas com a sociedade civil, para começarmos a organizar a tomada de providências de como atuar na recuperação da cidade, e como será possível solucionar os problemas de forma definitiva.
Como servidora do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da ENSP, acredito que eu possa, junto com demais pesquisadores, contribuir para as soluções, tanto dos problemas sanitários e urbanos, quanto de habitação, dado que, entre as expertises do departamento, estão a Saúde Urbana e a Habitação Saudável.
Quanto à atuação do CBH Piabanha, o seu Plano de Bacia, enfim, ficou pronto em 2021, e nele se encontram medidas e ações que contemplam a atuação na prevenção de eventos de cheias e de secas.
Outro ponto, foi assinado um Acordo de Cooperação Técnica do CBH Piabanha com a Câmara Municipal de Petrópolis, no segundo semestre de 2021, que, se acredita, poderá ter efeito em medidas preventivas num futuro próximo.
Esperava-se poder nos articular, nos próximos meses, com a Prefeitura Petrópolis a respeito da drenagem urbana que, no centro de Petrópolis, continua sendo realizada em conjunto com os esgotos sanitários. Dado ser necessário que se utilize um sistema separador absoluto e que se redimensione a micro e a macrodrenagem da cidade, o que irá implicar em muitos investimentos em obras de infraestrutura urbana.
Outra medida que o CBH, junto com Câmara Municipal, vai com certeza interferir é na educação ambiental nas escolas, para que a população entenda a noção de pertencimento dos seus rios, e que todos compreendam a importância de ajudar na despoluição e preservação.
Pretende-se, também, voltar as tratativas de formalizar acordos de cooperação técnica do comitê com a Defesa Civil de Petrópolis e dos outros nove municípios, e com a Defesa Civil Estadual, para uma atuação conjunta no “estar preparado”, na troca de informações e dados, para ampliar a capacidade de resposta dos municípios.
Espero que, em futuro próximo, o Comitê Piabanha assuma um papel de protagonista nos projetos e obras de prevenção de inundações na RH-IV, mas, para isso, teremos que trabalhar em conjunto com os poderes público Estadual e Municipais de toda a região hidrográfica, porque os problemas não se restringem somente à Petrópolis, mas são comuns aos dez municípios de nossa área de atuação.
Informe ENSP: O Dia Mundial da Água, 22/3, data internacional criada em 1992, aborda um tema específico a cada ano, sendo em 2022: “Segurança hídrica para a paz e o desenvolvimento”. Para a Organização das Nações Unidas, ela existe quando há água em quantidade e qualidade. Como a senhora entende a urgência desse tema, mediante as enchentes, contaminação das águas e escassez desse recurso?
Rafaela Facchetti: O Dia Mundial da Água é mais uma data para chamar a atenção da sociedade para a preservação desse bem precioso para a vida em nosso Planeta.
Falar, estudar e divulgar os dados sobre Segurança Hídrica é uma necessidade perante os problemas provenientes dos descasos com os recursos hídricos, que, agora, frente às emergências climáticas parece ter chamado a atenção do poder público que editou um Plano Nacional de Segurança Hídrica, e que vem sendo replicado na esfera estadual. Mas esse alerta foi dado há muito tempo...
O tema requer muito cuidado e responsabilidade, a água não é qualquer coisa, não deve e não pode ser vista como commodities, apenas como um negócio como parece ser a intenção de alguns.
Vejo o tema Segurança Hídrica com muita apreensão, e busco participar como posso, com os meus conhecimentos e pesquisas, para aprimorar a gestão dos recursos hídricos na Região Hidrográfica-IV e, por consequência, no Estado do Rio de Janeiro.
A entrevista foi concedida em 18/03/22, antes das chuvas deste último fim de semana, que causou mais estragos e matou mais pessoas em Petrópolis.
Efemérides