Pesquisadores da ENSP relacionam baixa cobertura vacinal à instabilidade política dos últimos anos

O movimento de queda das taxas de cobertura vacinal tem acompanhado a crise política no Brasil nos últimos anos, e não é por mera coincidência. É o que afirmam os pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) Fernando Verani e Raphael Guimarães. Em entrevista ao Informe ENSP, eles analisaram o contexto político e social de um dos mais graves problemas sanitários do país na atualidade. Pesquisador do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Verani associa o início da brusca queda das taxas de cobertura vacinal a uma grande crise política que teve seu auge no ano de 2016. “Os números do Ministério da Saúde revelam que esse movimento, que já se revelava como tendência, foi agravado em 2016, ano conturbado e marcado pelo impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff. Não é uma coincidência. O debate político ocupou o espaço, e os programas, como o PNI, foram por água abaixo”, resumiu o epidemiologista.
De acordo com dados do Programa Nacional de Imunizações, em 2021, nenhuma das vacinas ofertadas ultrapassou os 75% do público-alvo imunizado. Em 2022, se não houver uma improvável reversão de tendência, a situação será ainda pior. Até meados deste mês de outubro, nenhuma vacina de rotina conseguiu passar de 50% da população-alvo vacinada: meningite meningocócica está com 47%, a poliomielite 44%, e o reforço 47%, a tríplice viral chegou a apenas 31%.
Assim como Verani, o pesquisador Raphael Guimarães, do Departamento de Ciências Sociais, vincula a pauta de saúde ao cenário político fragilizado e cheio de incertezas. “A instabilidade política tem consequências muito graves sobre a saúde da população em sua totalidade. A situação da cobertura vacinal é mais um exemplo do quanto essa instabilidade cria ambientes muito desfavoráveis para a saúde pública”, argumenta.
Para Verani, o problema das coberturas vacinais foi deixado de lado no debate público durante o período de eleições. “É lamentável que os candidatos à Presidência do país não tenham trazido esse tema para as discussões”, critica. Já Guimarães não compartilha da opinião. Ele discorda que a campanha eleitoral seja um bom momento para discutir o problema geral da vacinação em baixa. “O mote, no debate sobre as vacinas, poderia ser mais à luz da Covid-19, já que temos um resultado mais palpável e concreto, neste momento, para mostrar o quanto vacinar adequadamente evita mortes”, explicou o pesquisador do DCS/ENSP.
Dentro ou fora das pautas de campanhas eleitorais, a vacinação segue sem as campanhas pelas quais costuma conquistar adesão popular. “Campanha tem que ter festa! Tem que aparecer o Zé Gotinha em balões infláveis em todos os postos de saúde, mas também nos mercados, nas escolas, aeroportos, estações ferroviárias e rodoviárias”, defende Verani. Para ele, a mobilização social, numa campanha de vacinação, deve ocorrer nos níveis estadual e municipal, mas partindo do governo federal.
Já Raphael Guimarães destaca a importância de, além de realizar planos estratégicos a nível nacional, promover ações em nível local. “Para conseguirmos resolver esse quadro de baixa cobertura vacinal, seria necessário mobilizar estados e municípios. É urgente tentar reverter isso, só não acredito que irá acontecer numa ação coordenada entre os entes federativos”, explica. Guimarães cita como exemplo a descentralização das ações em estados do Nordeste, onde há polos regionais além da capital que influenciam os municípios menores do entorno: “organização regional é funcional para qualquer tipo de política pública, porque garante a capilaridade das ações”.
Poliomielite, uma ameaça real
O Dia Mundial de Combate à Poliomielite foi celebrado nesta segunda-feira, 24 de outubro. Mas a data traz mais preocupação do que comemoração. “Ainda não voltamos a ter casos de poliomielite por pura sorte. Se não houver um movimento imediatamente, é só uma questão de tempo”. Fernando Verani aponta outras falhas na vigilância contra a doença, além da baixa cobertura vacinal nas crianças.
“Tem que ter sistema de detecção de casos suspeitos, que aparecem na forma de paralisias flácidas agudas. Quando um caso chega a um hospital, precisa ser notificado às Secretarias e ao Ministério da Saúde em 24 horas. Em seguida, uma equipe deve se deslocar para investigar, colher duas amostras de fezes da criança com a suspeita e mandar para laboratório de referência, no IOC/Fiocruz, que fará análises para identificar o vírus e saber se é vacinal ou selvagem, ou se é importado”, diz o epidemiologista pesquisador da ENSP. Verani explicou que todos os passos são importantes para, se for preciso, iniciar medidas de controle, como a vacinação ou revacinação de todas as crianças do bairro ou até mesmo de uma cidade.

Como todo problema complexo e difícil de resolver, a queda na cobertura vacinal tem como causas múltiplos fatores. Os mais apontados pelos especialistas são o enfraquecimento das campanhas de mobilização social, os horários restritos de funcionamento dos postos de vacinação – que normalmente abrem e fecham em horário no qual os pais estão trabalhando e não conseguem levar os filhos – e, paradoxalmente, a perda da percepção de risco das doenças evitadas por vacinas. Os pesquisadores acreditam que, justamente pelo sucesso do PNI, pais e mães mais jovens não conviveram com doentes ou pessoas com sequelas da poliomielite, causadora da paralisia infantil. Por essa razão, podem não ter a clareza do perigo que a doença representa e do quão importante é evitá-la.
Para Verani, a percepção de risco distorcida também afeta o trabalho dos pediatras: “É grande a queda da percepção de risco pelos médicos mais novos, principalmente. Muitos nunca viram polimielite. Eles precisam aprender a reconhecer a doença clínica, como também a difteria, a coqueluche e doenças que são imunopreveníveis, que tiveram a cobertura em queda a partir dessa época de 2016”.
No contexto mais recente e de volta à temática política, Raphael Guimarães observa também prejuízos relacionados a movimentos de descrença na ciência – apesar de o movimento antivax ser fraco no Brasil, se comparado à atuação em países da Europa e nos Estados Unidos. Para ele, a negação da vacina contra a Covid-19 por autoridades públicas também contribui para a chamada hesitação vacinal. “Quando se questiona a segurança e a eficácia de uma vacina, isso acaba, por tabela, refletindo em todas as outras. Ou seja, se uma vacina teria um "furo" na qualidade, porque as outras não? Negar a vacina da Covid-19 cria um efeito dominó.”
Estamos preparados?
Os pesquisadores da ENSP Raphael Guimarães e Fernando Verani acreditam que o país não está preparado para responder às demandas de atendimento, internação e suporte que se tornarão necessários em caso de surto ou epidemia de poliomielite. “Em primeiro luga, porque estamos falando de uma doença com a qual não convivemos há muitos anos; então, haveria um problema de mão de obra, de profissionais de saúde que precisariam ser treinados para esse trabalho. E há, também, a precariedade da infraestrutura, toda a parte de reabilitação e fisioterapia ficaria muito sobrecarregada”, afirma Guimarães.Ele lembra que a rede assistencial no país é ainda mais deficiente quando se trata de crianças, justamente o público que mais demandaria atendimento no caso do retorno da poliomielite: “Significaria saturar muito rapidamente as redes de assistência, pública e privada, uma situação muito dramática para o país”.
“Numa epidemia, pode haver alguns milhares de casos de paralisia infantil, e eu não sei se teríamos condições de atender a todos. É algo agudo, que se instala em horas e fica para a vida toda; dependendo do grau de atrofia da pessoa, é irrecuperável. Isso gera um ônus para a família e para a sociedade em sua totalidade. O prejuízo é enorme, econômico, psicológico e humano”, analisa Verani.
Ainda é possível evitar?
Em 2022, apenas o estado da Paraíba alcançou a taxa de vacinação de crianças considerada necessária para proteção contra o poliovírus. Em meados de outubro, o estado nordestino ultrapassou os 95% de cobertura vacinal. Além da Paraíba, apenas o Amapá ultrapassou a marca dos 90% e está mais perto de atingir a meta da campanha de imunização. Esses dois estados não são os mais bem-sucedidos por acaso.
Municípios de ambos foram os primeiros alvos do projeto Pela Reconquista das Altas Coberturas Vacinais, realizado pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos Bio-Manguinhos, da Fiocruz, em parceria com a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Os pesquisadores Maria de Lourdes Sousa Maia e Akira Homma são os coordenadores da iniciativa. “O projeto tem evidenciado que, com uma intervenção capacitadora direta no serviço, é reversível esse quadro das baixas coberturas”, avalia Verani.
Na visão do pesquisador da ENSP, o que se espera é que esse projeto se desdobre pelo Brasil inteiro. Além disso, ele acredita na importância do papel educador e formador da Escola para contribuir com essa reconquista. “É o que a ENSP faz desde o inicio do PNI, lá nos anos 1970 e 1980. Saíamos para treinar profissionais ligadas à vacinação em todo o país. Isso se mantinha como política pública, pois há uma necessidade de se realizar treinamentos e formação de forma contínua.”
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