Pesquisadora e doutorando da ENSP explicam surgimento do termo racismo ambiental e impactos na realidade da população negra
Garimpo na Região Amazônica, Aterro Sanitário Metropolitano do Rio de Janeiro localizado em bairro de maioria negra, alagamentos nas periferias, deslizamento de encostas nas favelas… Estas situações são exemplos de como o racismo ambiental impacta a realidade e, claro, a saúde de milhões de pessoas. O termo foi além do ambiente acadêmico e ganhou grande visibilidade na mídia quando a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, citou para lamentar as 11 mortes durante um temporal no Rio de Janeiro.
Neste domingo (4/2), o jornal O Globo destacou o assunto numa matéria que contou com a participação da pesquisadora Roberta Gondim e do doutorando Raphael Barreto, ambos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). “As escolhas daqueles que detém o poder podem acentuar ou mitigar os riscos. Na nossa história, vimos que essas escolhas sempre foram em desfavor das populações historicamente vulnerabilizadas, como a população negra. É a distribuição seletiva do risco de morte, em face da valoração racializada e desigual da vida, exercida por aqueles que detém o poder”, explicam. O Informe ENSP traz, na íntegra, a entrevista concedida por eles. Confira!
Como se caracteriza o racismo ambiental e como surgiu o termo?
Roberta Gondim e Raphael Barreto: O nosso histórico colonial escravagista e a posterior organização capitalista têm na racialização de grupos populacionais, nomeadamente negros e indígenas, significativa ancoragem na definição de papeis e lugares sociais, informando as dinâmicas de ocupação espaço-territorial e as políticas ambientais. O racismo é um sistema de poder político, econômico e social que informa também o padrão de manejo e intervenção ambiental, cujas repercussões deletérias desse padrão recaem desigualmente. Portanto, o racismo ambiental se expressa na formulação, implementação ou omissão/inação de políticas ambientais.
Proposto pelo intelectual e militante pelos direitos civis de negros e negras estadunidenses Benjamin Franklin Chavis Jr. na década de 1980, o termo surge em resposta ao aumento de depósitos de lixo em bairros de maioria negra da Carolina do Norte. Após anos de lutas e um protesto que terminou com aproximadamente 500 pessoas presas, o termo passou a ser apropriado pelos movimentos negros dos EUA e de outros países e difundido internacionalmente.
Por ser estrutural, o racismo ambiental se reproduz e se perpetua no modo “normal” na leitura das questões sociais, sendo normalizadas, por exemplos: a histórica inação ou mesmo conivência de governos em relação aos garimpos na Região Amazônica, com o consequente açodamento e poluição por mercúrio dos rios, inviabilizando a vida de imenso contingente de populações indígenas; a localização do Aterro Sanitário Metropolitano do Rio de Janeiro ser em Gramacho, bairro de maioria negra, em Caxias, na Baixada Fluminense; os reiterados alagamentos e deslizamento de encostas nas favelas de grandes centros urbanos como no Rio de Janeiro, que culminam em inúmeras mortes.
Quando o termo passou a ser difundido aqui no Brasil?
Roberta e Raphael: O termo Racismo Ambiental é mais frequentemente debatido no Brasil pelos movimentos negros. Na Eco 92, o debate sobre justiça ambiental ganhou espaço nas arenas políticas, e em 2001 foi criada a Rede Brasileira de Justiça Ambiental. No entanto, esse debate se deu sem considerar a questão racial e sem levar em consideração a raça/cor das populações vulnerabilizadas. Os movimentos negros passaram então a pautar o quão imprescindível é racializar esse debate e, em 2005, o tema ganhou força. Em termos do debate acadêmico e da luta política, temos como importante referência o trabalho da pesquisadora Tania Pacheco, que se debruça há tempos sobre o tema. A partir dos acúmulos e reflexões que levam a constatação de que as injustiças ambientais afetam de forma desigual as populações, colonial e historicamente racializadas, sejam estas do campo, da cidade ou da floresta, estamos falando de racismo ambiental.
No Brasil, como esses fenômenos ambientais são observados e como se relaciona com o histórico de vulnerabilização de pessoas negras?
Roberta e Raphael: Ao falarmos sobre nossa história e as expressões mais atuais do racismo ambiental, devemos retornar ao período pós-abolição, quando os até então escravizados foram libertos em termos legais, mas lhes foram negados formal ou informalmente (porém efetivamente operados), um conjunto de direitos, dentre estes o acesso e inserção às regras protetivas do trabalho remunerado e o direito à terra. Portanto, sobrou como única opção a ocupação de espaços que não interessavam aos antigos senhores. A favelização e a periferização de espaços urbanos, na tônica da precarização, são herdeiras desse e de outros processos, como por exemplo o modelo de desenvolvimento excludente, que repercutiu no êxodo rural de décadas anteriores.
Devemos ainda considerar o processo de gentrificação que ocorreu e ainda ocorre em todo o país, segregando socioespacialmente a população negra, à medida que determinados bairros passam a gerar interesses comerciais. Podemos citar como exemplo o que ocorreu nos famosos bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro, Leblon e Lagoa, antes favela da Praia do Pinto. À medida que morar próximo ao mar agrega valor, os moradores da favela foram coagidos a sair, até que um incêndio destruiu o que restava da favela, deixando 9 mil pessoas desabrigadas. As famílias foram, então, removidas para a Cidade de Deus e para a Cidade Alta, enquanto algumas outras, por meio da intervenção e da luta política de pessoas como Dom Helder Câmara, se mantiveram na região, a partir da criação da Cruzada São Sebastião. A Cidade de Deus, que já havia sido inaugurada de forma antecipada para receber os desabrigados da enchente de 1966, recebeu também os desabrigados da Favela da Praia do Pinto. E, ao longo de sua história, a Cidade de Deus já passou por diversas enchentes. Podemos destacar a ocorrida em 1996. Até os dias atuais, há esgoto a céu aberto e coleta de lixo insuficiente, o que acentua o risco recorrente de enchentes. Enquanto no “asfalto” dos bairros da Zona Sul, raramente se ouve falar em vítimas fatais de eventos climáticos.
As escolhas daqueles que detém o poder podem acentuar ou mitigar os riscos. Na nossa história, vimos que essas escolhas sempre foram em desfavor das populações historicamente vulnerabilizadas, como a população negra. É a distribuição seletiva do risco de morte, em face da valoração racializada e desigual da vida, exercida por aqueles que detém o poder. A omissão ou a permissividade, que criam as condições para que esses eventos ocorram de forma mais grave, são informadas a partir de um viés racial de desumanização, geralmente são tragédias anunciadas.
Aqui é importante fazer uma observação: não estamos negando, de forma alguma, que pessoas brancas que habitam territórios marcados pelas expressões do racismo ambiental, também sofram seus efeitos. Por isso mesmo faz-se necessário analisar as diversas intersecções de opressão que recaem desigualmente sobre pessoas, dentre essas a opressão de classe. Ocorre que nos países de histórico colonial como o Brasil, não há como falar de hierarquia de classe sem falar em hierarquia de raça. Mas por sabemos que a população negra é que ocupa majoritariamente os espaços de favelas, ressalta-se a importância da potência transformadora da luta política, ancorada nos movimentos de favelas. Em nossa disciplina, denominada ‘Expressões do Racismo e Saúde’, o debate sobre Racismo ambiental não pode faltar, em face de tudo o que dissemos aqui, mas também em face as desiguais repercussões que as mudanças climáticas vêm acarretando termos globais.
Quando o assunto tomou notoriedade após um post da ministra Anielle Franco, muitas pessoas criticaram o termo. Por que a associação do racismo a esses casos de desastres ambientais ainda encontra resistência?
Roberta e Raphael: Talvez aqui seja importante olhar as críticas, separadamente, a partir dos sujeitos que as enunciam. Por um lado, há mesmo o desconhecimento do debate, em face da falta de recursos de conhecimento por parte de uns, que está aliado a um posicionamento político-ideológico, assim como a tônica atual de ‘lacração’ nas mídias sociais, que sim, recaem fortemente sobre pessoas negras em destaque político, como a Ministra Anielle Franco. Nesses casos os argumentos são profundamente primários, portanto, pouco ou mesmo nada contribuem para o debate. Pondera-se que não se deve reverberar, “dar muito palco”, aos posicionamentos que ainda negam a existência do racismo e suas expressões nas condições reais de vida e de saúde das populações negra e indígena, ou até mesmo aqueles ridicularizam o debate, pois dessa forma estamos dando legitimidade a esse tipo de debate, que muitas vezes flertam com posicionamento extremistas.
Por outro lado, vê-se argumentos que talvez possam vir de leituras de processos sociais mais tradicionais de um dado pensamento social, tanto global como brasileiro, que não levam em consideração o debate étnico-racial, que para nós é fundamental de ser olhado, tendo em vista a formação geopolítica global, com base na colonialidade e na modernidade capitalista. Esse pode sim ser um debate que vale a pena ser travado, pois que se localiza no campo epistêmico e também político, num sentido mais elevado do termo. Porém, aqui nos arriscamos em dizer que parte das críticas que porventura tenham vindo dessa perspectiva, pode se tratar de um exemplo do exercício da manutenção do poder epistêmico e de influência política, no sentido de informar políticas públicas sem racializar a questão.
As produções acadêmicas no Brasil sobre o tema ainda não são muito vastas, mas apresentam densidade epistêmica e vem crescendo nos últimos anos.
É possível reduzir ou até mesmo eliminar os efeitos dos extremos climáticos que recaem sob essa população mais vulnerável? De que forma?
Roberta e Raphael: Esse é o grande debate a nível global, sobre o qual países como o Brasil tem colocado, em alguma medida, na prioridade da agenda governamental. Para reduzirmos os efeitos das mudanças climáticas, para além de termos que rever o nosso modo de produção e acumulação de riquezas, sendo para isso necessário uma outra concertação global, que inclua efetivamente políticas de enfrentamento às desigualdades em todas as suas dimensões. A sociedade tem um papel importante nesse debate.
De forma mais premente, em relação a população negra, é possível mitigarmos os efeitos dessas mudanças. Para isso há de se construir políticas públicas intersetoriais, como de saneamento, habitação, saúde, renda, conjugadas além de estratégias emergenciais mais efetivas de prevenção e mitigação de efeitos dos eventos climáticos cada vez mais frequentes.
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