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“A política ainda não é vista como lugar de mulher, tampouco postos de poder em empresas e instituições”, alerta pesquisadora da ENSP

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Publicado em:05/10/2023
Por Danielle Monteiro

De acordo com dados da organização Terra de Direitos e Justiça Global, apenas cerca de 13% dos cargos eletivos de todas as esferas políticas do Brasil são ocupados por mulheres. Entre os fatores que explicam a baixa representatividade e participação feminina na política nacional está a chamada violência política de gênero. 

Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, violência política de gênero  é a “agressão física, psicológica, econômica, simbólica ou sexual contra a mulher, com a finalidade de impedir ou restringir o acesso e exercício de funções públicas e/ou induzi-la a tomar decisões contrárias a sua vontade”. O conceito explica os números encontrados em levantamentos sobre gênero feminino na política: além do árduo caminho até a eleição, as mulheres precisam enfrentar uma série de obstáculos para permanecer no cargo conquistado. 

‘Violência Política de Gênero, discursos de ódio e desinformação em interface com a saúde’ é o tema de um dos projetos selecionados pelo Edital de Pesquisa 2021, lançado pela ENSP, por meio da Vice-Direção de Pesquisa e Inovação, no âmbito do Programa de Fomento ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico Aplicado à Saúde Pública. 

Em entrevista ao Informe ENSP, a coordenadora do projeto e pesquisadora da Escola, Vera Marques, fala sobre os resultados esperados, as contribuições do estudo para a popularização da ciência, a relação entre as diversas vertentes da violência de gênero, assim como as políticas públicas necessárias para o enfrentamento à violência política de gênero contra mulheres e pessoas LGBTI+.

Confira, abaixo:

Quais são os objetivos do projeto, como ele será desenvolvido e quais são os principais resultados (apontamentos) esperados?

Vera: O projeto pretende analisar aspectos da violência política de gênero contra lideranças políticas  (mulheres e pessoas LGBTI+), as repercussões desse tipo de violência na saúde física e mental e as estratégias de enfrentamento adotadas por essas lideranças. Estamos atentos também ao uso de desinformação e discursos de ódio como estratégias de impetração de violência política de gênero. Para tanto, tomamos o processo eleitoral de 2022 como referência para este estudo, haja vista o quanto foram violentas as eleições de 2018. O desenho do projeto prevê três etapas: acompanhar o tratamento dispensado a um conjunto de campanhas eleitorais de mulheres e pessoas LGBTI+ por portais de notícias de relevância nacional para avaliar se foram veículos de violência; mapear discursos de ódio e desinformação produzidos em torno dessas campanhas, particularmente, em rede social; e entrevistar as candidatas/os, cujas campanhas foram acompanhadas, e outras/os parlamentares que sofreram violência política de gênero.

No momento, já finalizamos as duas primeiras etapas e estamos realizando as entrevistas. Esperamos que, ao final, possamos conhecer um pouco melhor o modo como a violência de gênero se expressa no âmbito do sistema político formal e na relação com a sociedade. Apesar da significativa presença das mulheres cisgênero nos mais distintos setores produtivos, sua inserção em espaços e posições de poder ainda é muito reduzida. Mais ainda, se forem mulheres negras, e quase inexistente, se mulheres trans. Trata-se de um fenômeno complexo, relacionado a desigualdades estruturais, que legitimam exclusões diversas. Por exemplo: por meio de instalações físicas - o banheiro feminino do plenário do Senado só foi construído em 2016; por normativas como a que quer proibir banheiros unissex no país – pauta recente na Câmara dos Deputados -; e mesmo por violências interpessoais. Em um país com tantos problemas sociais, o tema ‘banheiro’ não deveria ser uma questão. Só o é porque informa que corpos têm o “direito” de existir e de estar em posições de prestígio e quais não o tem. Compreender, portanto, como a violência de gênero interseccionada por raça, classe social, sexualidade, presença de deficiência física/mental, dentre outros marcadores sociais, atua nos espaços políticos é crucial para o estabelecimento de ações de enfrentamento. Vale destacar a contribuição deste estudo para o campo científico, onde encontramos significativa escassez de pesquisas a respeito. Esperamos publicar um artigo a respeito em breve.   

Quais são as contribuições do projeto para a sociedade e a popularização da ciência?

Vera: São várias as possíveis contribuições do projeto para a sociedade. Acreditamos que a conscientização sobre diferentes tipos e formas de violência, assim como a valorização da diversidade e do respeito às diferenças, contribuem para a promoção de uma cultura de paz, de relações saudáveis e verdadeiramente democráticas. Do ponto de vista da popularização da ciência, criamos um perfil no Instagram, onde semanalmente publicamos conteúdo embasado em conceitos e dados científicos. Tem sido um grande desafio traduzir “a ciência” de forma que seja acessível a um grande público. 


Qual a relação entre violência de gênero, violência política de gênero e violência contra pessoas LGBTI?

Vera: São todas definições que partem da premissa de que a categoria gênero, assim como raça, classe, dentre outras, estruturam e hierarquizam nossa sociedade, produzindo, por consequência, desigualdades e injustiças em todas as suas dimensões, desde econômica a cultural. María Lugones fala de um sistema colonial moderno de gênero racializado, onde o homem branco, europeu, cisheteronormativo se coloca como referência de humanidade e todos os outros seres humanos são a ele subalternizados. O uso de violência de gênero assegura a manutenção dessa ordem de forma pedagógica: castiga as mulheres para ensiná-las sobre seu lugar na sociedade, ao mesmo tempo em que a violência que recai sobre uma mulher destina-se a ela e a todas as outras, para que aprendam com o ocorrido, e se “comportem”. Do ponto de vista histórico e dos estereótipos de gênero, a política, tão associada à vida pública, ainda não é vista como lugar de mulher, tampouco postos de poder em empresas e instituições. Então, o conceito violência política de gênero, por um lado, evidencia a violência de gênero presente nesses espaços e, por outro, questiona sobre suas especificidades. A violência contra pessoas LGBTI+ tem também por referência o homem cisheteronormativo. Nesse sistema, as mulheres, definidas a partir de um paradigma biologizante, devem servir sexualmente aos homens e os homens, além de cisheteronormativos, devem se enquadrar em um certo padrão de masculinidade que valoriza a virilidade, a dominação, a habilidade no uso da força em prol da manutenção da “ordem” social. Portanto, todas, todos e todes que não se enquadrarem nessas normativas estão sujeitas à violência.             

A violência política contra a mulher passou a ser tipificada como crime em agosto do ano passado, quando foi sancionada a Lei n. 14.192. Em 15 meses, a cada 30 dias, ocorreram sete casos envolvendo comportamentos para humilhar, constranger, ameaçar ou prejudicar uma candidata ou mandatária em razão de sua condição feminina. Quais são as contribuições da lei e quais outras políticas públicas podem ser adotadas no enfrentamento à violência política de gênero contra mulheres e pessoas LGBTI?

Vera: A lei brasileira vem na esteira de um conjunto de normativas internacionais, protagonizadas por países latino-americanos, visando o enfrentamento à violência política de gênero. Após o feminicídio político de Marielle Franco, esse tema ganhou maior repercussão, intensificando o debate no país e levando à promulgação dessa lei. Portanto, representa uma vitória das brasileiras na luta por seus direitos tanto políticos quanto a uma vida sem violência. Desta forma, a lei traz inúmeras contribuições à sociedade. Primeira de todas, me parece, é o aprofundamento de nossa democracia – não há democracia efetiva sem a participação política plena de mulheres, pessoas negras, LGBTI+, ou seja, dos grupos sociais historicamente minorizados. Também nomeia um tipo de violência, permitindo a tomada de consciência, o debate, a denúncia e a punição daqueles que querem silenciar as mulheres. Com isso, resguarda seus direitos e contribui com sua proteção. Infelizmente, o que ocorreu com Marielle evidencia que a inserção política das mulheres coloca suas vidas em risco, o que acaba por afastá-las dos espaços de poder. Há diversas iniciativas em curso na América Latina que podem servir de inspiração para o Brasil, como protocolos de enfrentamento e punição à violência política de gênero voltados para as Câmaras Legislativas, para os partidos políticos. Nesse sentido, é fundamental que os conselhos de ética dos parlamentos assumam essa pauta. Importante o fortalecimento das campanhas eleitorais femininas e da política de cotas eleitorais, para que sejam efetivas. Campanhas midiáticas de conscientização também são necessárias: proliferam os discursos de ódio nas redes atentando contra a saúde e a dignidade de lideranças políticas. Da mesma forma, esse tema deve entrar nas escolas, nos grêmios estudantis, na formação de lideranças infanto-juvenis para que a mudança cultural que tanto almejamos se sustente ao longo do tempo. 



 


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