9º Seminário 'A Epidemia das Drogas Psiquiátricas': Painel discute alternativas para além da medicalização
O painel “Para Além da Medicalização” encerrou as discussões do 9º Seminário Internacional 'A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Reflexões Críticas sobre Evidências e Práticas de Cuidado Desmedicalizantes', realizado nos dias 30 e 31 de outubro, na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). Organizado pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da ENSP, em parceria com o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE/Fiocruz), o evento promoveu um amplo debate sobre o que são evidências na psiquiatria e sobre os caminhos possíveis para a construção de práticas e cuidados desmedicalizantes. Com a participação de especialistas nacionais e internacionais, a nona edição do seminário buscou refletir criticamente sobre o uso de psicofármacos, suas implicações e alternativas. O painel de encerramento abordou temas como a prescrição responsável de psicotrópicos, as práticas e desafios em saúde mental, e os processos de medicalização e desmedicalização das infâncias.
Sob a coordenação do professor e pesquisador do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Rafael Coelho Rodrigues, o debate contou com a participação dos psiquiatras Holmes Martins e Paulo Telles, e da psicanalista Luciana Jaramillo.
“Não há especificidade em psicotrópicos”, afirmou, ao relatar o caso de uma paciente que, sob efeito de antidepressivos, não conseguia chorar pela morte da mãe. “A especificidade é conceito aplicável à cardiologia, não ao cérebro, onde há receptores espalhados por toda parte”. Holmes ressaltou que o uso de medicamentos psicotrópicos pode ter efeitos ambíguos e que, em determinadas situações, a chamada “apatia” pode ter uma função protetora. Relatando a experiência de atendimento a sobreviventes do Morro do Bumba, em Niterói, lembrou que, diante de perdas traumáticas, 'o antidepressivo pode provocar uma apatia necessária, temporária, para suportar o luto'. “A elevação da prolactina, a perda da libido e a apatia não são efeitos colaterais, são efeitos desejados. O medicamento tira a pessoa de cena — e é isso que, em alguns momentos, buscamos.”
Segundo a pesquisadora, o desenvolvimento infantil precisa de uma temporalidade que não condiz com a pressa contemporânea. Para ela, o modelo de cuidado atual elimina os efeitos de instâncias como família, escola e relacionamentos, e atribui unicamente causas biológicas e médicas aos comportamentos que trazem desconforto. Nessa tentativa de encontrar um causa única para individualidades dentro das múltiplas formas de ser criança, instaura-se uma saída generalista e patologizante: o remédio.
Frente a um contexto em que pacientes esperam a prescrição, o psiquiatra Paulo Telles apresentou o uso de substâncias psicodélicas, naturais e sintetizadas, como alternativa à lógica da medicalização. O professor da UFF contextualizou que, apesar da proibição de algumas delas, inclusive por pressões mercadológicas, já que não podem ser patenteadas, diversos estudos sobre sua eficácia ganham espaço novamente. Essa tendência surge com uma nova abordagem: não acreditar apenas no efeito biológico, mas também considerar a experiência subjetiva e o contexto social.
Para além da prescrição: Por uma psiquiatria cuidadora e não iatrogênica
O psiquiatra Holmes Martins apresentou a conferência 'Crises Psicóticas Graves: como prescrever psicotrópicos de forma não iatrogênica', durante o painel “Para Além da Medicalização”. Abrindo sua fala, Holmes pediu licença "à dor das mães e familiares das vítimas do massacre ocorrido no Rio de Janeiro, no último dia 28", e dedicou sua reflexão ao compromisso de que “o trabalho em saúde mental possa contribuir para encerrar o longo ciclo necropolítico de ignorância, ódio e populismo que tem atingido nossa população e nossas culturas”. Intitulando sua fala de “Consciência crítica e anos de formação”, o psiquiatra resgatou sua trajetória profissional, iniciada na medicina clínica e cardiológica antes da psiquiatria, para questionar os rumos da prescrição medicamentosa e os impactos éticos e sociais das práticas farmacológicas.
Inspirado no diretor de teatro Amir Haddad, o psiquiatra comparou o uso responsável de psicotrópicos à condução de uma cena teatral. " O remédio pode 'tirar o paciente de cena' temporariamente, mas é fundamental que ele 'volte à cena'. O sofrimento pode ser uma forma de expressão psíquica. Cabe a nós desacelerar, repensar e compreender o que está por trás — jurídico, financeiro, social. Nem sempre conseguimos resolver, mas compreender já é parte do cuidado.”
Durante sua fala, Holmes criticou a linguagem de mercado que permeia a prática médica, destacando que até os formatos de receituário são pensados para o controle de substâncias, não para orientar o paciente. Por isso, propôs substituir o termo “receituário” por “prescricionário”, e ressaltou que “fármaco não é alimento”. O psiquiatra revelou ainda estar trabalhando na elaboração do Dicionário Decolonial da Psiquiatria, previsto para lançamento em 2026, voltado a repensar conceitos e práticas cristalizadas no campo da saúde mental.
Holmes compartilhou resultados de um estudo sobre condutas terapêuticas em primeiras crises psicóticas, que acompanhou cinco casos durante a pandemia. “Com uso breve e monitorado de antipsicóticos, nenhum cronificou”, apontou. Defensor de uma psiquiatria alinhada aos princípios do SUS, o médico destacou a importância do vínculo e da escuta no processo terapêutico. “Prefiro o termo retirada, não desmame. E reforço o compromisso do prescritor: não ser patologizante, mas cuidador.” Encerrando, Holmes propôs substituir a lógica do autocuidado pela do intercuidado, conceito que sintetiza o sentido coletivo do cuidado em saúde mental. “Falar em autocuidado, especialmente no sofrimento mental, é muitas vezes deixar a pessoa sozinha — e ela afunda. O que nos sustenta é o intercuidado: cuidar uns dos outros, inclusive das nossas próprias fragilidades.”
Medicalização e desmedicalização das infâncias: o cuidado com a criança-sujeito
"É urgente pensarmos em saídas desmedicalizantes”, defendeu a psicanalista Luciana Jaramillo, que abordou a medicalização das infâncias. A doutora em Psicologia Clínica explicou que se trata de um fenômeno sociocultural, com vieses históricos, políticos e econômicos, que transforma comportamentos infantis que anteriormente poderiam ser tolerados em “coisa médica”. Nesse contexto, denunciou as redes sociais como propagadoras de discursos patologizantes.
As redes sociais se consolidam, assim, como uma das principais vias de produção e transmissão desse discurso. “Vemos a banalização dos diagnósticos, a memeficação da psiquiatria e a trendificação dos transtornos mentais, cujas raízes se alicerçam na tríade: patologização, medicalização e mercantilização”, alertou.
Jaramillo destacou que existe uma visão idealizada da infância que associa normalidade com felicidade, porém ela lembra que a fase também é repleta de desafios. “Quando as crianças não correspondem a esse ideal social, familiar e escolar, são concebidas como doentes”, pontuou. A convidada explicou que, através das mídias, tais discursos encontram pais e cuidadores sobrecarregados e preocupados e reforçam a associação da criança com o complexo industrial dos transtornos mentais, que surge com a promessa de cura. Para a psicanalista, a presença cada vez maior dos pequenos nas redes também faz parte do problema: “o uso exacerbado de telas impacta significativamente a sua constituição psíquica, suas relações familiares e suas experiências infantis”.
“É imprescindível considerar que os cuidados com as crianças também envolvem os aspectos médico-pedagógicos, mas não se restringem a eles. Há uma preocupação legítima dos profissionais, mas também uma demanda social pelo remédio, para aplacar o mal-estar de forma rápida e eficaz", ressaltou. Por fim, a pesquisadora defendeu a participação ativa e subjetiva das crianças em seu próprio cuidado.
Práticas e desafios em saúde mental
O pesquisador destacou os psicodélicos clássicos, como psilocibina, LSD, DMT e mescalina, que possuem potencial terapêutico contra depressão resistente, transtorno de estresse pós-traumático, anorexia nervosa, uso indevido de drogas, entre outras questões psiquiátricas. “O efeito dessas substâncias não é simplesmente mediado pelo uso. Ele passa pela experiência subjetiva, ou seja, inclui o set, o estado psicológico da pessoa, e o setting, o contexto social em que ela se insere”, esclareceu. Segundo Telles, o uso dessas substâncias é pontual, com poucas doses, mesmo assim, pesquisas apontam para resultados duradouros. Além disso, todo o processo precisa ser associado a sessões preparatórias e de acompanhamento psicológico. Para o convidado, essa interação humana é um dos fatores que leva ao sucesso desse modelo terapêutico.
Para explicar como os alucinógenos alteram o funcionamento cerebral, o palestrante recorreu a uma analogia: “para as pessoas que estão em um círculo vicioso, por exemplo, não conseguem sair da depressão ou superar um caso de estresse pós-traumático, é como reiniciar um computador que está congelado”. Telles, que também é diretor do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas (Nepad) da Uerj, pontou que é importante pensar em ações contra o uso indevido de drogas, mas destacou a utilidade e a segurança da maconha medicinal em muitos tratamentos.
“O ponto principal é a construção de um novo modo de pensar, que passe da correção bioquímica para a valorização da experiência subjetiva. O foco dessa terapia está na relação entre dimensões biológicas, psicológicas e sociais. A desmedicalização parece ser o novo horizonte. O desafio não é substituir remédios velhos por novos, mas repensar o lugar da medicação na saúde mental. Ciência, experiência e cuidado precisam caminhar juntos por uma psiquiatria mais integrativa e menos medicalizante”, concluiu.
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