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Entrevista | Marcelo Firpo: "Não haverá justiça climática sem saúde intercultural de verdade"

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Publicado em:07/11/2025
Crédito imagem: Freepik.
Pesquisador da ENSP/Fiocruz destaca a importância de articular saúde, meio ambiente e direitos humanos em processos democráticos e emancipatórios, com protagonismo dos movimentos sociais e dos povos tradicionais.


Na série especial do Informe ENSP sobre a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP30 Amazônia), o pesquisador Marcelo Firpo, do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh/ENSP/Fiocruz) e coordenador do Núcleo Ecologias e Encontros de Saberes para uma Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes), reflete sobre o tema Justiça Climática e Equidade em Saúde. Em entrevista, ele analisa as desigualdades ambientais, o papel dos povos e territórios vulnerabilizados, e os desafios de incorporar a justiça climática nas políticas públicas e na pesquisa em saúde.

Confira a entrevista!

Informe ENSP: O conceito de justiça climática propõe que as populações que menos contribuem para o aquecimento global são as que mais sofrem seus impactos. Como essa desigualdade se manifesta no campo da saúde pública brasileira?

Marcelo Firpo: O conceito de justiça climática é uma variante do conceito de justiça ambiental, relacionado à ideia de que tanto os riscos e cargas ambientais como o acesso aos bens naturais e ambientes protegidos são distribuídos desigualmente, seja pelas desigualdades socioeconômicas típicas do capitalismo, seja pelo racismo ambiental decorrente do colonialismo. Ou seja, envolve desigualdades sociais e ontológicas, estas relacionadas a uma hierarquia do humano e às várias formas de discriminação contra indígenas, povos de matriz afro-diaspórica (negros e quilombolas), camponeses, periferias urbanas e as mulheres.

É por isso que tais povos e territórios não são apenas vulneráveis, e sim vulnerabilizados por um processo histórico que reúne capitalismo e colonialismo como raízes das desigualdades e discriminações, principalmente no Sul Global, onde se encontram países e regiões que, no passado, eram colônias. Hoje não são mais, porém as raízes do colonialismo permanecem, e são chamadas por alguns autores de decoloniais.

Na saúde pública brasileira, isso se manifesta nos povos, populações e territórios vulnerabilizados que pagam os principais preços pelas desigualdades ambientais — seja pela poluição, pela falta de saneamento básico ou pelas tragédias e emergências climáticas. Isso já era evidente no caso do furacão Katrina, em 2005, no sul dos EUA, que afetou principalmente a cidade de Nova Orleans, com mais de 1.800 mortos. Num país racista, os negros foram os que mais sofreram.

Com as mudanças climáticas e o aquecimento global, os efeitos das emergências climáticas (enchentes, secas, ondas de calor) atingem principalmente essas populações e territórios, que não possuem tantos recursos nem políticas de proteção do Estado. E, para complicar, vários governos, em todos os níveis, tendem a apoiar setores econômicos que atuam como forças motrizes e influenciam na emissão de gases de efeito estufa, no desmatamento, na destruição de matas ciliares e na especulação imobiliária. Nas enchentes de Porto Alegre, a prefeitura foi conivente com essa situação, numa postura negacionista que acarretou a não manutenção de bombas de escoamento que teriam reduzido expressivamente os efeitos do desastre.

Informe ENSP: Povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e comunidades periféricas estão entre os grupos mais vulneráveis às mudanças climáticas. Que tipos de riscos à saúde essas populações enfrentam e como o SUS pode responder a essas vulnerabilidades?

Marcelo Firpo: Os riscos são diferenciados, dependendo do território e das populações atingidas. As populações que vivem em territórios urbanos periféricos são especialmente vulneráveis. Isso decorre da falta de saneamento básico, da ausência de redes de drenagem de águas pluviais, da existência de moradias em terrenos próximos a áreas alagáveis e margens de rios assoreados, bem como de moradias precárias — como favelas em morros, a exemplo do Rio de Janeiro ou das tragédias na região serrana do estado, principalmente em 2011 —, além da falta de sistemas de alerta e planos de evacuação.

No caso de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e camponeses, esses são povos que vivem na e da natureza, e possuem um longo histórico de convívio e capacidade de predição e resiliência. São vulneráveis em vários aspectos principalmente por terem seus direitos territoriais ameaçados, mas, ao mesmo tempo, são guardiões da natureza, com uma enorme sabedoria no convívio respeitoso com os ecossistemas e os vários seres que os habitam.

O grande problema que enfrentam é o mesmo que está na raiz das mudanças climáticas: o desmatamento e a destruição dos biomas pelo agronegócio dos grandes monocultivos, pelos grandes empreendimentos da mineração e pelas infraestruturas de transporte e energia, entre outros.

Informe ENSP: Como o debate sobre justiça climática pode fortalecer políticas públicas que articulem saúde, meio ambiente e direitos humanos?

Marcelo Firpo: Os movimentos sociais e as organizações comunitárias que atuam e vivem nos territórios atingidos são a principal força de transformação social. As instituições de pesquisa mais importantes, que querem transformar a sociedade, são justamente aquelas que trabalham junto com tais movimentos — seja produzindo conhecimentos, seja construindo pontes com as instituições e processos decisórios que estabelecem políticas públicas mais efetivas.

Isso somente ocorre em democracias de alta intensidade, e esse é um dos problemas atuais do Brasil e da contemporaneidade. Existem tendências globais do capitalismo neoliberal, financeiro e neoextrativista que apoiam movimentos de extrema direita e negacionistas dentro de processos eleitorais, minando a essência das conquistas democráticas e do Estado de Direito.
Parecia que estávamos caminhando, nos anos 1990 — após a Rio 92 —, para um processo mais amplo e inclusivo de sociedades mais sustentáveis e saudáveis. Mas, nos últimos 15 anos, temos vivido um retrocesso, com a radicalização de políticas neoliberais aliadas a ideologias fundamentalistas e fascistas de extrema direita.

Temos que avançar na capacidade de compreender e dialogar, enquanto sociedade, sobre esses fenômenos que polarizam posições legítimas de defesa de valores e lutas identitárias, mas que acabam forçando negacionismos e políticas de cancelamento. Combater as emergências climáticas tem relação com como entendemos e enfrentamos os dois extremos: os negacionismos que negam de forma absurda tantas coisas, e também os anti-negacionismos que defendem uma ciência positivista que se coloca superior e não aceita dialogar com valores e cosmologias relacionadas à vida, à morte, às espiritualidades e à cultura.

Informe ENSP: Quais são os maiores desafios para incorporar a perspectiva de equidade e justiça climática nas agendas de pesquisa e nas ações em saúde ambiental no Brasil?

Marcelo Firpo: O mais importante é apoiar um processo em andamento, principalmente nesse governo, de participação social nas decisões, de pesquisas participativas de base comunitária que considerem os movimentos sociais e os territórios como sujeitos cognitivos produtores de conhecimentos — tão legítimos quanto os produzidos pela academia e seus vários paradigmas ou especialidades.

Para isso, precisamos avançar com o uso de metodologias sensíveis e co-labor-ativas (como denominamos no Neepes), colocar em prática diálogos interdisciplinares e interculturais, e realizar pesquisas e práticas de vigilância popular em saúde, trabalho e meio ambiente.

Não adianta dizer que respeitamos os indígenas e, ao mesmo tempo, forçá-los a práticas biomédicas nos processos de cuidado e cura — inclusive nos partos —, que os obrigam a ir a hospitais e desconsideram o diálogo necessário entre profissionais de saúde e pajés, xamãs e cuidadoras/es tradicionais, inclusive no ambiente hospitalar. Não haverá equidade e justiça ambiental ou climática sem saúde intercultural de verdade.

Informe ENSP: A Amazônia será um dos eixos centrais da COP30. De que forma o evento pode contribuir para colocar a saúde e a justiça climática no centro das decisões políticas globais?

Marcelo Firpo: É um tema sensível, complexo e contraditório. Ao mesmo tempo que pode ser uma ótima oportunidade para o país, o governo acaba de apoiar a exploração de petróleo na Foz do Amazonas como nova fronteira energética. Há uma forte relação entre a política eleitoral e as alianças conjunturais que moldam decisões que afetam o futuro sustentável do país e do planeta, e isso ocorre no Brasil e vários países.

Por outro lado, temos, pela primeira vez na história, um Ministério dos Povos Indígenas, e não tenho dúvidas de que a sabedoria e a força dos movimentos indígenas — junto com outros movimentos sociais que defendem a natureza, a reforma agrária, a agroecologia, novas possibilidades de relação campo-cidade e processos de ecologização e humanização dos espaços urbanos — serão a chave para a construção de novas utopias e processos emancipatórios.

A saúde coletiva, a agroecologia e a sabedoria dos povos tradicionais e suas cosmologias são o fermento que poderá dar continuidade a essas lutas. Mas teremos que aprender a conviver com as tragédias que estão por vir — e as emergências climáticas são uma parte importante delas. Unir denúncias a anúncios é estratégico para que não caiamos na desesperança e no aumento epidêmico de tristeza e depressão que, neste momento, afetam tantos jovens enjaulados pelas redes sociais e loucuras que nelas são produzidas.

Informe ENSP: Qual o papel de instituições como a ENSP/Fiocruz na produção de conhecimento e incidência política para enfrentar as desigualdades ambientais e promover justiça climática?

Marcelo Firpo: A ENSP precisa avançar cada vez mais em sua missão de produzir conhecimentos e formar novas gerações de pesquisadores e profissionais para o SUS. Passados mais de 30 anos do livro de nossa grande pesquisadora Maria Cecília Minayo, o desafio contemporâneo é construir uma academia mais engajada, interdisciplinar e intercultural, que saiba dialogar e produzir conhecimentos junto com os movimentos sociais e os territórios.

Conhecimentos precisam, além de apoiarem políticas públicas, se engajar como processos emancipatórios de transformação social. Existem diversos grupos na ENSP que estão caminhando nesse sentido — trabalhando com indígenas, quilombolas, populações de favelas, com a negritude e mulheres negras, agricultores familiares e agroecologia.

É preciso seguir nessa direção, com o cuidado de não cair em chavões ou romantismos, pois nossa tarefa é produzir conhecimentos com qualidade e respeito.

No Neepes, temos avançado teoricamente na proposição das quatro justiças (social/sanitária, ambiental-territorial, cognitiva-histórica) para apoiar processos emancipatórios por saúde, dignidade, direitos territoriais e bem-viver, e na construção de metodologias sensíveis co-labor-ativas para produzir conhecimentos junto com movimentos e territórios.

Empiricamente, nos últimos sete anos temos trabalhado principalmente junto a movimentos e territórios indígenas que lutam por alimentação, agroecologia e defesa de territórios ameaçados; e com periferias urbanas que constroem processos emancipatórios para pensar outros modelos de relação campo-cidade, com  cidades mais sustentáveis, saudáveis e inclusivas, como o caso dos Sem-Teto da Bahia e da organização CEM que atua no Complexo da Penha.

Tais organizações envolvem principalmente mulheres negras fazendo agroecologia em um contexto que Paulo Freire definiria como inéditos viáveis — sonhos que pareceriam impossíveis de serem realizados mas que se tornam realidade, pelo menos abrem caminhos, pelos sonhos e lutas dessas mulheres. Por isso, a pesquisa é também um tributo e um ato de amor a tais movimentos e pessoas que nos ensinam, com sua sabedoria e coragem, o que é saúde e pelo que devemos lutar.

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