Conect: Léo Heller discute direitos humanos à água e ao saneamento e impactos da privatização
Por Barbara Souza e Tatiane Vargas
Durante a conferência de abertura do evento “Conectando saúde pública e desigualdades urbanas no contexto das mudanças climáticas: governança para um desenvolvimento justo nas cidades brasileiras”, o Conect, realizado no auditório da ENSP/Fiocruz entre os dias 4 e 6 de novembro, o pesquisador Léo Heller, da Fiocruz Minas e integrante da ONG Ondas, apresentou a palestra “Saúde, mudanças climáticas, direitos humanos à água e ao saneamento”. Ao abrir os debates do encontro, Heller propôs reflexões que dialogam com os temas que serão aprofundados ao longo dos três dias de evento. Ele defendeu que os direitos humanos à água e ao saneamento devem servir como marco analítico para pensar as políticas públicas e a política de forma mais ampla. Segundo o pesquisador, não é possível tratar desses direitos sem abordar o processo de privatização dos serviços de água e esgoto. “Senão a gente trataria apenas de uma parte do problema e das soluções”, afirmou.
O pesquisador apresentou a base legal dos direitos humanos à água e ao saneamento, partindo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, passando pelo Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, e pelo Comentário Geral nº 15 do Comitê DESC, de 2002, até chegar às resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas (64/292) e do Conselho de Direitos Humanos (15/9), ambas de 2010. Heller destacou que, embora essas normas não estejam integralmente refletidas na legislação brasileira, o país tem obrigações internacionais decorrentes desses instrumentos. O direito humano à água, explicou, assegura a todas as pessoas, sem discriminação, o acesso a uma água disponível, fisicamente acessível, economicamente acessível, segura e aceitável — tanto para uso pessoal quanto doméstico, em residências, escolas, hospitais, centros de detenção e espaços públicos.
Heller enfatizou a importância de analisar as questões de saneamento e clima sob a ótica dos direitos humanos, sustentada em quatro princípios centrais: igualdade e não discriminação, participação e inclusão, responsabilidade e prestação de contas, e alcance progressivo com uso do máximo de recursos disponíveis. Ele lamentou que os direitos humanos tenham sido pouco abordados nas discussões sobre clima, afirmando que o tema “tem sido ausente ou muito pouco abordado quando o assunto é o clima”.
O pesquisador também apresentou uma síntese de três relatórios do atual Relator Especial da ONU para os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento, Pedro Arrojo Agudo, publicados em 2022. O primeiro trata dos impactos gerais das mudanças climáticas, o segundo dos efeitos sobre populações em situação de vulnerabilidade e o terceiro de estratégias para enfrentar essas questões. Ao comentar o segundo relatório, Heller destacou que “os principais impactos socioeconômicos das alterações climáticas são gerados em torno da água” e que esses efeitos atingem com mais força “as populações que já se encontram em situações de vulnerabilidade ou têm seus direitos violados”. Ele mencionou secas, escassez de alimentos, inundações, degelo, mudanças em ecossistemas, aumento do nível do mar e elevação de temperaturas como exemplos das ameaças mais críticas.
Entre as recomendações apresentadas pelo relator estão a necessidade de reforçar a resiliência das infraestruturas, melhorar a gestão dos territórios hidrossociais e atuar nos contextos de vulnerabilidade para minimizar riscos e impactos. Heller acrescentou que o tema da mitigação — especialmente na área de saneamento — é pouco discutido e que o financiamento climático voltado para a água continua muito reduzido.
Em sua exposição, o pesquisador apresentou dados que evidenciam como o acesso desigual à água e ao esgotamento sanitário reflete as desigualdades socioeconômicas no Brasil e no mundo, além de estudos que demonstram o impacto direto desses problemas na vida de populações vulneráveis. Ele criticou a Política Nacional de Saneamento, reformulada pela Lei nº 14.026/2020, que alterou o marco legal de 2007, por reforçar uma lógica de privatização dos serviços. “As experiências internacionais, mesmo as brasileiras, mostram que o setor privado raramente coloca seus próprios recursos para ampliar o serviço de saneamento em geral. Busca recursos nos bancos públicos ou usa recursos da população, por meio das tarifas”, afirmou.
Heller classificou a aprovação da lei como “um massacre narrativo e político”. “Não tinha voz que se contrapusesse a essa ideia de que a privatização é a única saída que o país tem para resolver seus problemas”, disse. Ele explicou que a privatização oferece riscos aos direitos humanos devido à busca pelo lucro, ao caráter de monopólio natural do setor e à assimetria de poder entre empresas e usuários. Entre os riscos específicos no contexto brasileiro, citou a seletividade na prestação de serviços — com exclusão de áreas rurais —, o aumento das tarifas, a redução de tarifas sociais, o crescimento dos cortes de fornecimento e a dúvida sobre investimentos em infraestrutura e tratamento de esgoto. Ele também chamou atenção para os contratos de longa duração, que “dificilmente podem ser rescindidos”.
“Nos perguntamos se com essa privatização haverá atenção devida a essas medidas de adaptação, se haverá reforço da resiliência das infraestruturas. Esses são investimentos que não geram receita”, questionou o pesquisador. E acrescentou: “Para que isso aconteça, deveria haver uma forte regulação desses prestadores, que não é o padrão no Brasil. Vai haver uma adequada gestão dos territórios hidrossociais? Vai haver preocupação com vulnerabilidade? No caso da mitigação, o setor privado terá interesse em implementar infraestrutura que gere menos gases de efeito estufa, que respeite saberes tradicionais, que pense em fontes alternativas? E sobre o tema do financiamento climático, se há um apelo para ser crescente e levar em conta os direitos humanos, é muito duvidoso que as empresas privadas terão esse tipo de preocupação.”
Cerimônia de abertura destaca integração entre saúde pública, urbanismo e justiça climática
A cerimônia de abertura do seminário do Conect, marcou o início de três dias de diálogos sobre ciência, saúde, urbanismo e sustentabilidade. O evento é coordenado pela representante discente e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública e Meio Ambiente da ENSP/Fiocruz, Lilian Silva, pela doutoranda Vitória Oliva, do mesmo programa, pelo mestrando em Geografia na UFF Bernardo Bronzi - que conduziu a cerimônia - e pelo doutorando em Geografia na Universidade de Bonn (Alemanha), Vicente Brêtas.
Mudanças climáticas impõem novos desafios à saúde pública
Menezes lembrou que a Fiocruz divulgou recentemente uma Carta Aberta com contribuições para a COP 30 — que será realizada em Belém do Pará — e para a Cúpula dos Povos. O documento destaca a centralidade da saúde nos debates climáticos e a necessidade de priorizar os mais vulneráveis nas políticas de adaptação e mitigação. "Eventos como o Conect fortalecem a articulação entre ciência e políticas públicas e reafirmam o compromisso institucional da Fiocruz com o desenvolvimento sustentável e a justiça social", destacou o diretor da ENSP.
Em seguida, o doutorando Vicente Brêtas, representante da Universidade de Bonn, destacou o caráter colaborativo e internacional do Conect, fruto da parceria entre o DWIH São Paulo, o DAAD, a Fiocruz e a universidade alemã. Brêtas ressaltou que o evento nasce de três forças principais: o apoio institucional dessas organizações; a centralidade de temas como cidades, saúde pública, mudanças climáticas e justiça ambiental; e o compromisso coletivo dos estudantes e pesquisadores envolvidos.
“O Conect é um espaço de diálogo entre comunidades acadêmicas distintas, mas que compartilham preocupações e desafios comuns. Construir essas pontes é essencial não só para a produção científica, mas também para o fortalecimento de ações políticas transformadoras”, afirmou.
Representando a coordenação do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública e Meio Ambiente, Rita Estrela destacou a importância de integrar diferentes perspectivas acadêmicas e experiências comunitárias. Para ela, o Conect simboliza a essência da saúde pública: a construção coletiva do conhecimento. “Vivemos um momento em que os efeitos das mudanças climáticas são cada vez mais tangíveis, e seus impactos recaem de forma desigual sobre as populações mais vulneráveis”, ressaltou.
Rita lembrou ainda que, com a COP 30 se aproximando, o Brasil ocupará papel central nas discussões globais sobre o clima, o que reforça a responsabilidade da comunidade científica em contribuir com evidências e propostas para um modelo de desenvolvimento justo e sustentável.
A doutoranda Vitória Oliva, enfatizou a relevância da integração entre diferentes campos do conhecimento. Geógrafa de formação, ela celebrou a parceria entre o Programa de Saúde Pública e Meio Ambiente e a Geografia, reforçando o caráter interdisciplinar do evento.
Vitória destacou o cuidado na elaboração da programação, que reúne mesas e coletivos dedicados a temas como saneamento, agroecologia e sustentabilidade urbana. “Pensamos cada mesa com muito carinho. Esperamos que todos aproveitem este espaço de troca e que ele seja construtivo e prazeroso para todos”, afirmou.
Na sequência, a também doutoranda Lilian Silva, representante discente da ENSP e uma das coordenadora do evento, ressaltou a importância do Conect como espaço de reflexão e compromisso coletivo diante das mudanças climáticas. Ela agradeceu o apoio da coordenação do PPGSPMA/ENSP, da direção da Escola e do DWIH São Paulo, e destacou que o evento foi concebido 'a muitas mãos'.
“As mudanças climáticas não são um problema do futuro, elas estão acontecendo agora. Precisamos agir de forma integrada, reconhecendo quem mais sofre com seus efeitos: as populações negligenciadas e vulneráveis”, pontuou.
Lilian concluiu sua fala convocando o público a transformar o conhecimento produzido em compromisso prático. “Temos um papel como sanitaristas, profissionais de saúde e cidadãos. O futuro da saúde pública precisa ser construído com equidade e ação coletiva”, finalizou.
Cooperação internacional e compromisso com a sustentabilidade
“O Conect reflete o espírito do DWIH São Paulo: unir pesquisa de ponta, diálogo interdisciplinar e compromisso social. É um exemplo de como a ciência pode contribuir de maneira concreta para enfrentar os desafios climáticos e construir cidades mais justas e saudáveis”, afirmou.
Ela concluiu desejando que o seminário inspire novas parcerias e projetos colaborativos. “A cooperação internacional é essencial para desenvolver soluções sustentáveis baseadas na confiança e na reciprocidade”.
Assista na íntegra no canal da ENSP no YouTube:
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