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De invisíveis a cidadãos de direitos: pela transformação social das populações em situação de rua

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Publicado em:31/10/2025
Por Eliane Bardanachvili (CEE Fiocruz)

As realidades e possibilidades de transformação social da população em situação de rua foi tema de mesa redonda Que mundo é esse?, reunindo a pesquisadora do CEE-Fiocruz Sonia Fleury e o coordenador do Centro, Rômulo Paes de Sousa, no seminário internacional Pessoas em Situação de Rua: cuidado integral e direitos já!. Promovido pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) e Ipea, o evento foi realizado nos dias 22 e 23 de outubro, em Brasília. A mesa teve mediação da pesquisadora da ENSP Elyne Engstron, coordenadora do coletivo Trilhas de Cuidado nas Ruas, e contou, ainda, com a participação remota da assessora especial da presidência do México, Diana Alarcon, e da pesquisadora Isabel Licha, especialista em política e gestão social e desenvolvimento humano.

Sonia Fleury buscou trazer para o debate o olhar resultante de seu trabalho com os temas da cidadania e políticas sociais e iniciou indagando sobre “esse mundo que produz a população em situação de rua e também produz a invisibilidade dessa população”. Ela fez um paralelo com uma situação vivida em sua infância, quando morava em uma fazenda e observava pessoas com lepra que andavam pela estrada tocando um sininho, de modo a chamar atenção e se tornarem visíveis. “Por um lado, o repúdio a corpos abjetos, de parte da população que não quer estar em contato com aquilo que repudia. E, do outro lado, pessoas que se sentem humilhadas e que são vistas como perigosas, podendo trazer algum problema para a sociedade”, comparou, referindo-se à população em situação de rua, uma questão a ser tratada “do ponto de vista teórico e político, e também do ponto de vista emocional”.

A pesquisadora fez referência ao filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), quanto à exclusão e ao isolamento daqueles que podem contaminar a sociedade ordeira e quanto à noção de governamentalidade, voltada ao controle da conduta das pessoas. “A sociedade procura governar comportamentos e atitudes, de tal forma que se tornem previsíveis. Com isso, as pessoas já precisam mais ser cercadas, podem circular pelos territórios, porque, supostamente, já são corpos dóceis, produtivos. Ou seja, é o governo das mentalidades”, explicou Sonia.

Esse caminho, apontou Sonia, leva a uma indagação quanto ao lugar da igualdade, sempre mencionada no primeiro item das constituições dos países. “Ninguém é igual. Todo mundo é diferente. A igualdade é uma construção política, como dizia a [filósofa alemã] Hanna Arendt (1906-1975)”, considerou. “Ao mesmo tempo em que essa sociedade postula tratar todos iguais, consegue, através das suas formas de operar, criar desigualdades, diferenças e hierarquização”.

Sonia prosseguiu, com as noções foucaultianas de direito, “que está na esfera da igualdade”, e contradireito, “no subterrâneo das desigualdades”, este último sustentando suas reflexões a respeito da saúde. “A peregrinação das pessoas de uma unidade de saúde a outra, buscando atendimento, é exatamente a expressão do contradireito”, exemplificou. “Da mesma forma, falamos que a população em situação de rua tem direito a várias coisas, mas se pedem a essas pessoas um endereço, se exigem que estejam vestidas de certa forma ou se comportem de certa maneira, isso funciona como normas que hierarquizam, que excluem, como um contradireito”.

Citando o filósofo italiano Giorgio Agamben, Sonia observou que, ao lado do estado de direito, vai existir sempre nessa sociedade o estado de exceção. “Para uma parte da população, você vai trabalhar dentro da esfera do direito; para outra parte, as favelas, as ruas, não. Essas pessoas não fazem parte do que foi estabelecido como cidadãos de direito”.

Conforme destacou Sonia, a exclusão difere da desigualdade, pois refere-se ao outro, “é a alteridade, aquilo que não sou eu e que não faz parte da mesma sociedade”, uma construção social que permite, por exemplo, os assassinatos, de pessoas em situação de rua, a eliminação do outro.

Para Sonia, no entanto, é possível construir alternativas, trilhas, e o movimento nacional das populações de rua é o maior exemplo de uma construção totalmente inusitada pelos próprios moradores de rua. Conforme apontou, a invisibilidade é, ao mesmo tempo, construída e rechaçada, porque espelha o que não queremos ver, o mal estar dessa sociedade.

Ela trouxe dados do Censo de 2022, relacionados à condição de pobreza, altamente associada à existência da população em situação de rua: um terço dos trabalhadores brasileiros recebem até um salário-mínimo e apenas 7,6% recebem acima de cinco salários-mínimos. E destacou a “retomada” observada no Governo Lula, de revalorização do salário-mínimo, um dos mais baixos entre os 31 países da OCDE, e de aumento real de rendimentos da população trabalhadora, bem como redução no desemprego e um quadro de melhoria da condição dessa população mais pobre, “mesmo com uma situação econômica que resiste com taxa de juros altíssima e tudo mais”.  

Essas medidas, que Sonia chama de política econômica da pobreza, não resultaram na redução da população de rua, conforme ponderou. “Para mim, a resposta é que existe uma produção sistemática dessa população, e temos que pensar em outro tipo de medida para avançarmos”, considerou lembrando de conquistas, como a saída, mais uma vez, do Brasil do mapa da fome e a redução da insegurança alimentar. “Mesmo assim ainda temos uma população que, como mostra a Pnad Contínua (IBGE), dois em cada três domicílios, com renda de até um salário mínimo ainda estão em situação de insegurança alimentar. Pode não ser a mais grave, mas ainda estão”.

Para Sonia, é necessário não apenas mitigar, mas alterar essa situação de limiar da sobrevivência. “Temos que pensar na macropolítica econômica. Não podemos nos conformar com a micropolítica, nem com as políticas econômicas da pobreza”. A pesquisadora defende, ainda, um sistema de proteção social que não esteja mais baseado apenas na carteira de trabalho, tendo em vista o precariado, uma população que não encontra estabilidade no mercado de trabalho, “esse bando de meninos de moto, morrendo em cada esquina, entregando comida e outras coisas em situação de total insegurança”.

A pesquisadora abordou também os temas da financiarização da economia e da política de drogas. Em relação ao primeiro, indagou por que os recursos para proteção social não são minimamente adequados às demandas do SUS, para a educação, para a assistência social, para população em situação de rua. “Porque o Brasil paga um trilhão por ano de juros da dívida e esse trilhão é tirado do cuidado, da atenção que tínhamos que dar às demandas da população”, ela mesma respondeu. “A financiarização transformou em devedores os estados brasileiros, que antes arrecadavam e distribuíam. E que também tem levado a população trabalhadora a um grau de endividamento cada vez maior”, acrescentou.

Quanto à política de drogas, Sonia alertou que adotar a ideia de combate leva ao crescimento do domínio territorial nas favelas e periferias por traficantes e milicianos e autoriza o Estado a entrar matando. “A população está submetida de um lado à violência do ilegalismo e, de outro, à violência estatal que leva inúmeras pessoas à morte, que leva ao encarceramento de jovens negros e ao aprisionamento – como na época dos leprosos – de jovens em comunidades terapêuticas, sem sabermos a que grau de violência institucional são submetidos”.

Sonia defendeu que as trilhas têm que ser construídas por meio do cuidado, da solidariedade e do comum. Ela observou que os governos progressistas da América Latina dos anos 2000 são, em parte, responsáveis pela situação de desencanto em que vivemos hoje. “Em vez de criar políticas públicas emancipatórias, de construir cidadãos, junto com a população, construíram consumidores de distribuição de renda, o que é muito importante e emergencial, mas se acompanhado de um projeto político de transformação e de emancipação da sociedade e de distribuição do poder”, analisou. “O poder não pode continuar na mão de elites que exploram o país e exploram a população culturalmente, difundem valores, não só conservadores, mas de eliminação da alteridade. Temos que pensar em modelos de políticas diferenciados”, propôs.

Para Sonia, o cuidado é “um lugar de construção contra-hegemônica”, porque implica alteridade. “Onde tem o cuidado tem o outro. Esse encontro de alteridades pode ser um projeto de subalternização, ou se transformar num projeto de emancipação, dependendo do estado e do agente que está ali”.

Citando Paulo Freire, Sonia defendeu o conceito de Estado pedagógico, pelo qual orienta seu trabalho, entendendo que o Estado deve ser, em todas as suas interações, com todos os seus agentes, parte de um projeto pedagógico no sentido freireano, de esperançar, atuando junto com a população, de forma dialógica, para além de comunicar, de fazer propaganda de suas ações. “É preciso ouvir primeiro para poder comunicar, entender as demandas, os sofrimentos, entender que atuando junto é possível construir um novo país, uma nova sociedade. É a isso que me proponho e e acho que vocês todos também”.

Romulo Paes orientou suas reflexões pelas discussões realizadas em seu grupo de pesquisa na Fiocruz Minas e destacou duas palavras que se mostraram recorrentes nas exposições anteriores – complexidade e desafios. “Eestamos falando de um conjunto de fenômenos complexos e de como a política pública pode responder a essa demanda tão complexa e tão contemporânea”.

Como observou, as cidades produzem população em situação de rua desde que temos registros, sobretudo de 2000 anos para cá. “Observadores, historiadores, cronistas, filósofos falam em população em situação de rua. São contextos muito distintos do que nós vivemos hoje e em outros tempos da história o que significa que os fatos geradores também são distintos”, disse, dando como exemplo a formação da Europa, um processo contínuo de deslocamento de populações e de produção de populações em situação de rua, povos que foram substituídos por outros, que, por sua vez, foram deslocados ou mesmo eliminados. “Isso aconteceu também nas Américas”, resgatou.

Para Rômulo, o contexto de hoje pode ser explicado por outras fontes do conhecimento, como a demografia e a queda no número de filhos por família, com um processo de arranjos familiares de desobrigação do cuidado às pessoas mais vulnerabilizadas, como idosos, doentes crônicos e pessoas com sofrimento mental. Esses novos arranjos explicam muito da reconfiguração do espaço, sobretudo do espaço urbano”.

Rômulo citou o economista francês Thomas Picketty e seu conceito de hipercapitalismo, ou de uma sociedade baseada na exploração do trabalho em níveis altíssimos em intensidade e exigência de performance, na hiperexposição digital e no medo do cancelamento. “Antes de se chegar na política pública, na saúde pública, vamos encontrar o sofrimento mental crescente e solidão como fator característico dessa sociedade. Nós nunca estivemos tão sós, apesar de meios tão eficazes de nos conectarmos”.

A definição de políticas públicas para fazer frente ao cenário complexo descrito, representa um grande desafio, como entende Rômulo. “Nós temos, do ponto de vista global, e também no Brasil, uma redução da pobreza absoluta, mas, ao mesmo tempo, um crescimento da população em situação de rua em condições, justamente, de pobreza absoluta. Isso é um paradoxo. Embora tenhamos crescido em termos de ofertas para a população em situação de rua, isso é ainda muito insuficiente e desconectado, ainda que tenhamos experiências importantes, mas de número ainda muito pequeno”, observou. Ele lembrou de projetos dos quais participou. “Tive a honra de participar do crescimento da política de proteção social no Brasil, tanto no surgimento e extensão do Programa Bolsa Família, como na extensão do BPC [Benefício de Prestação Continuada] e na criação do Sistema Único de Assistência Social (Suas)”, lembrou.

A partir de dados trazidos durante o seminário, Rômulo observou que o Brasil tem uma cobertura bastante importante em proteção social, enfrentando, no entanto, o desafio de compreender por que, apesar da oferta dessas políticas, a população em situação de rua continua a crescer, aí incluídos segmentos que eram menos presentes nas ruas, como idosos e crianças. “E notem que o BPC é voltado especificamente para as pessoas idosas pobres e pessoas com deficiência pobres, enquanto o Bolsa Família, volta-se às crianças em primeiro lugar”, frisou.

Conforme destacou, seu grupo de pesquisa vem estudando a população em situação de rua, levando à frente pesquisas participativas. “Não se consegue compreender esses fenômenos em sua complexidade sem a presença de quem tem a vivência da rua”, explicou, trazendo à reflexão questões relativas à subjetividade, abordadas por Sonia Fleury. “Precisamos agora compreender mais a lógica das escolhas. Para cada política, para cada indivíduo ou grupo de indivíduos – e isso está inclusive na natureza do serviço social brasileiro – é necessário estabelecermos um contrato social. Eu me pergunto se as partes envolvidas estão de acordo com os pressupostos definidos, senão, vamos produzir uma política precária, para dizer o mínimo. Então, é entender as escolhas e as lógicas que presidem essas escolhas, e, para isso, precisamos produzir mais conhecimento sobre essas questões”, defendeu.  

Para Rômulo, parte dos problemas a serem enfrentados estão ligados às barreiras de acesso. “As pessoas não sabem quem têm direitos; o servidor público não as trata como pessoas com direitos”, observou. “Há uma necessidade de reposicionarmos esse aparato de atenção, na assistência social, na educação, na saúde, na questão de segurança, para que se compreendam as demandas e as necessidades dessa população. Há uma responsabilidade distribuída que precisa ser organizada”, considerou. “E vamos chegar nas atribuições mais especializadas, num segundo nível de atenção, e a produção de conhecimento é fundamental para que a gente seja mais eficaz nas respostas”.

Como destacou também o pesquisador, o Cadastro Único (CAD Único), que reúne dados e informações sobre as famílias de baixa renda para medidas de inclusão em programas de assistência social e redistribuição de renda, é “uma ferramenta potente”, que permite compreender questões diversas relativas à população de rua, como sofrimento mental e drogadição – causa e efeito da condição de se estar na rua.

Para Rômulo, é necessário estabelecer uma política para a população em situação de rua em todas as políticas; compreender, nos equipamentos nos registros e na abordagem integrada, essa população como cidadãos e cidadãs que têm especificidades em suas demandas. “Do contrário, vamos continuar produzindo até experiências interessantes, mas muito insuficientes na escala e na qualidade da abordagem”, alertou.

Fonte: CEE Fiocruz

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