Mortalidade de pessoas em situação de rua é 348% maior do que da população geral, diz pesquisa
Por Filipe Leonel e Barbara Souza
Em 2024, foram registradas mais de 6 mil mortes de pessoas em situação de rua no Brasil. Se essas pessoas estivessem domiciliadas e apresentassem o mesmo padrão de mortalidade da população brasileira em geral, o número esperado seria de 1.339 óbitos — o que representa um excesso de mais de 4,6 mil mortes nesse grupo. Os dados foram apresentados pelo pesquisador Marco Natalino, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), durante o Seminário Internacional Pessoas em Situação de Rua: cuidado integral e direitos já!, realizado na Fiocruz Brasília. Segundo ele, a taxa de mortalidade entre pessoas em situação de rua é 348% maior do que a registrada na população em geral.
Os números foram discutidos no painel “Não Somos Invisíveis: informações para as políticas públicas”, realizado no primeiro dia do evento (22/10). “Há uma desigualdade social extremamente elevada. A situação de rua faz mal à saúde”, destacou Natalino.De acordo com o pesquisador, doutor em Sociologia e Antropologia, a taxa de mortalidade bruta da população em situação de rua foi de 24,03%, enquanto na população geral foi de 7,05%. Entre as principais causas e fatores de risco estão: violência física e psicológica, estigma e discriminação, barreiras de acesso aos serviços de saúde, ausência de direitos sociais e humanos, infecções, intoxicações e uso problemático de álcool e outras drogas, além de alimentação e sono inadequados e diversos riscos psicossociais.
Ainda segundo o Ipea, os fatores mais determinantes para a entrada nessa condição são: conflitos familiares e conjugais (47,3%), desemprego (40,5%), uso abusivo de álcool e outras drogas (30,4%) e perda da moradia (26,1%).
A professora da PUC-SP Aldaíza Sposati, autora da Lei Municipal de 1997 sobre os Direitos da População em Situação de Rua, chamou atenção para a falta de padronização no cuidado e para a ausência de um censo nacional sobre essa população.
“O censo conta pessoas debaixo de teto, de domicílio — e não é o caso da população de rua. O próprio formulário do CadÚnico pergunta quantas pessoas vivem sob o mesmo teto. A população nao é invisível por estar na rua. Aliás, a rua é o máximo de exposição e, ao mesmo tempo, uma condição de invisibilidade, por não serem considerados nos dados oficiais. A invisibilidade cega a cabeça diante da visibilidade que está posta”, afirmou.

O Rinaldo Artes, doutor pelo IME/USP e pesquisador do Insper, apresentou um acompanhamento dos usuários do sistema de abrigamento da Prefeitura de São Paulo. Segundo os dados, 26,9% deixaram os abrigos no primeiro mês, 32,6% entre o primeiro e o sexto mês, 13,1% entre seis meses e um ano, enquanto 27,5% permaneceram por mais de um ano nos locais de acolhimento.
Entre 2014 e 2021, 25.816 pessoas declararam ter conseguido moradia após o acolhimento, 13 mil retornaram à convivência familiar e 5 mil informaram ter sido inseridas no mercado de trabalho. A taxa de retorno ao sistema variou entre 39% e 49%.
Encerrando o painel, Flávio Lino, secretário executivo do Movimento Nacional da População de Rua do Rio de Janeiro (MNPR/RJ), apresentou um panorama comparativo sobre a população em situação de rua nos países que compõem os BRICS. Segundo ele, o Brasil, com cerca de 216 milhões de habitantes, tem 9% da população em extrema pobreza e mais de 327 mil pessoas vivendo em situação de rua, concentradas principalmente nos grandes centros urbanos, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
Mulheres em situação de rua
Também no dia 22/10, o Seminário Internacional Pessoas em situação de rua: cuidado integral e direitos já! promoveu um painel dedicado à maternidade e aos cuidados voltados às mulheres em situação de rua, com enfoque na equidade de gênero e raça. O debate destacou diferentes experiências e desafios enfrentados por essas mulheres, trazendo perspectivas acadêmica, ativista e de vivência pessoal. A mesa reuniu uma ativista representante de uma organização sem fins lucrativos, uma acadêmica que compartilhou apontamentos de seus estudos sobre a temática e uma líder de movimento social que conhece a realidade de uma mulher que vive nas ruas.
Florencia Montes Paez, da organização argentina Organización No Tan Distintes – Mujeres y Disidencias en Situación de Calle, compartilhou a trajetória da entidade e seus projetos para mulheres e crianças, como casas coletivas para mulheres trans que estiveram presas ou em situação de rua. Elas completarão 15 anos em 2026 e atuam sem o apoio do Estado. Além disso, ela também apresentou uma formação em transfeminismo e a editora criada no âmbito da iniciativa e que publicou o livro “Acompanhar é político - Um ensaio transfeminista sobre a situação de rua” (2024). A palestrante falou ainda sobre a Rutras - Ruas Transfeministas Sudacas, uma rede que conecta Chile, Argentina, Uruguai e Brasil: “O objetivo é pensar a agenda que relacione a situação de rua e as questões de gênero”, afirmou.
Na sequência, a doutora em Psicologia, Iara Flor Richwin, da Universidade de Brasília (UnB), abordou a maternidade como uma oportunidade estratégica de intervenção em saúde mental e psicossocial para mulheres em situação de rua. “Nesse momento se instaura uma perspectiva de futuro mais longo, com sonhos; muitas deixam as drogas ou desejam sair do crime. Mas, na maioria das vezes, isso é negado às mulheres em situação de rua. É mais uma violação. Ainda assim, elas resistem e encaram, a partir dessa nova perspectiva de ser mãe”, destacou Richwin.
O painel contou ainda com a participação de Joana D’arc Bazílio, do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para População em Situação de Rua (CIAMP–Rua Nacional) e do Movimento Nacional da População em Situação de Rua. Ela compartilhou experiências pessoais e coletivas, reforçando a importância da participação política das mulheres em situação de rua: “Há muitas pessoas com estudos que conhecem nossa realidade, mas ainda sentimos necessidade de ocupar esses espaços, olhar para elas e dizer o que pensamos. Cheguei a pensar em doar meu filho por acreditar que não tinha capacidade de criá-lo, mas isso é algo que a sociedade nos faz acreditar. Criar meus filhos com amor é o que me inspira a viver, a deixar algo bom para eles. Estamos nos inserindo nos espaços políticos para mostrar nossa potência, apesar de todos os obstáculos que a sociedade e o Estado nos impõem”, afirmou Bazílio.
O painel “Mulheres em situação de rua: cuidado integral, maternidade e proteção social na perspectiva da equidade de gênero e raça” foi mediado por Pamella Oliveira, da equipe do projeto Trilhas de Cuidado nas Ruas, responsável pela organização do evento. Assista na íntegra no canal da ENSP no YouTube.
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