COP30 em Belém: oportunidade para a saúde ou risco de agravamento de desigualdades?
Pesquisadoras da ENSP/Fiocruz analisam possíveis impactos do evento sobre a saúde pública e apontam os desafios estruturais da capital paraense
Por Barbara Souza
A realização da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), em Belém (PA), em novembro, é vista por diferentes setores como uma oportunidade histórica para projetar a capital paraense e criar legados positivos para sua população. Mas o evento também impõe desafios à estrutura urbana e aos sistemas públicos locais, como o de saúde, já que a previsão é de que a cidade receba mais de 50 mil visitantes. Em entrevista ao Informe ENSP, as pesquisadoras da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) Claudia G. S. Osorio de Castro, do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica (NAF), e Vera Lúcia Edais Pepe, do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde (DAPS), comentaram os principais riscos e potenciais legados da COP30 para a população local, com ênfase na saúde.
Belém será sede da Conferência do Clima sobre Mudanças Climáticas (COP 30). Foto: Augusto Miranda/Ag Pará
Segundo Claudia Osorio de Castro, um dos primeiros impactos sentidos em grandes eventos internacionais costuma ser o aumento do fluxo de pessoas, o que amplia o risco de introdução e disseminação de doenças. “A chegada de um grande número de visitantes pode resultar na introdução de novos agentes infecciosos no território, o que representa risco, especialmente quando a população local não possui defesa ou imunidade contra tais agentes”, alerta. Ela também cita a preocupação com a ida de visitantes a áreas florestais endêmicas para doenças como a malária. Nesse contexto, surtos podem ocorrer de forma repentina, exigindo resposta rápida das autoridades sanitárias.
“No campo das doenças infecciosas, é fundamental atuar em aeroportos e portos, fiscalizando a entrada de alimentos e medicamentos, orientando sobre o consumo seguro e prevenindo acidentes”, explica Vera Pepe. A pesquisadora destaca que também é preciso ter protocolos para detecção e resposta rápida a surtos, seguindo o Regulamento Sanitário Internacional. “Entre os riscos que exigem preparação estão: saúde ambiental, capacidade laboratorial, controle da qualidade da água, segurança alimentar, gerenciamento e descarte de resíduos, e controle de mosquitos e vetores”, lista.
As pesquisadoras chamam atenção, também, para o estresse sobre os serviços urbanos. “Frequentemente, nessas situações, há uma priorização do atendimento aos visitantes e às delegações estrangeiras, o que pode comprometer o acesso da população local a serviços como saúde e transporte”, alerta Claudia Osorio de Castro. Nesse sentido, a preparação hospitalar e pré-hospitalar, com definição de fluxos e atuação em casos de múltiplas vítimas, é decisiva. “A Anvisa, em conjunto com as vigilâncias estadual e municipal, já realiza ações nos serviços de hemoterapia da Amazônia para garantir sangue seguro, por exemplo. Também é necessária fiscalização sanitária de abrigos temporários, estruturas provisórias e estoques de emergência”, complementa Vera.
Foto: Marcelo Souza/Agencia Pará
Riscos e oportunidades
“A região Norte já tem exemplos relevantes, como o Festival de Parintins, que atrai cerca de 100 mil pessoas, e o Círio de Nazaré, em Belém, que reúne cerca de um milhão. No Círio, a preparação envolve desde segurança urbana até atendimento em hospital flutuante e resgate aéreo. No evento da COP30, há atenção especial a questões ambientais e de sustentabilidade, e a cidade tem dado prioridade ao saneamento, com obras — ainda que polêmicas — voltadas para as bacias hidrográficas e o mercado Ver-o-Peso”, analisa Vera Pepe.
Claudia Osorio de Castro considera que a COP30 pode abrir espaço para avanços estruturais duradouros em Belém. Investimentos em mobilidade, criação de vias rápidas de acesso aos hospitais e instalação de rampas, banheiros e equipamentos básicos de saúde, como desfibriladores, estão entre as possibilidades que o evento pode estimular. No entanto, ela alerta: “Cabe à governança local transformar riscos em oportunidades. Isso requer decisões políticas que priorizem o bem-estar da população e o legado do evento para a cidade.”
A pesquisadora também chama atenção para possíveis impactos sociais negativos de eventos desse porte, citando como exemplo o caso da Vila Autódromo, no Rio de Janeiro, de onde moradores foram removidos em razão das Olimpíadas de 2016. “Quando os processos de reestruturação urbana ocorrem sem considerar os direitos e as necessidades da população local, as consequências podem ser graves, com deslocamentos involuntários e exclusão social”, afirma. Além disso, o aumento generalizado dos preços — de transporte, alimentação, água e imóveis — pode aprofundar desigualdades e prejudicar principalmente os mais vulneráveis.
Também lembrando das Olimpíadas do Rio, Vera Pepe disse que a principal lição aprendida é a necessidade de construir, de forma intersetorial, um plano de ação que preveja medidas antes, durante e após o evento, com sistemas de informação, fluxos e responsabilidades bem definidos. “É essencial identificar, avaliar e preparar-se para responder aos riscos, seguindo o lema: torcer pelo melhor, mas se preparar para o pior.”
Legado e planejamento intersetorial
A COP30 só deixará um legado positivo para a saúde em Belém se houver um planejamento intersetorial sólido e voltado para o longo prazo. Claudia Osorio de Castro aponta como prioridade a reestruturação da rede de atendimento de urgência e emergência, com definição clara de fluxos entre postos e hospitais, baseada em estudos técnicos de capacidade de resposta. “Não se trata simplesmente de aumentar o número de leitos hospitalares, mas de planejar com base em projeções de demanda”, reforça.
Vera Pepe sublinha que a elaboração de Planos de Ação e de Contingência, considerando riscos esperados, é essencial para orientar as ações de preparação e resposta. “Quanto mais completos e com responsabilidades definidas, melhor a reação a possíveis incidentes. Esses planos devem ser construídos de forma intersetorial, envolvendo Defesa Civil, Secretaria de Saúde e outros atores”, destaca. Na mesma linha, Claudia Osorio de Castro ressalta a necessidade de governança integrada: “Todos os setores envolvidos devem estar articulados e conscientes de suas funções e responsabilidades. Para isso, é indispensável um processo de coordenação liderado por uma instância de governança centralizada e eficiente.”
[Última foto: Bruno Cecim/Ag.Pará]
Papel da vigilância sanitária
Para Vera Pepe, a vigilância sanitária terá papel importante não apenas pelo transporte fluvial, mas também pela alimentação típica e pela previsão de hospedagem em navios e residências. “Será fundamental fiscalizar a gestão de resíduos, desde a coleta até o destino, e garantir a saúde e segurança dos trabalhadores envolvidos no evento. A articulação com outras vigilâncias — epidemiológica, ambiental e de saúde do trabalhador — permitirá monitorar riscos nos diferentes ambientes”, afirma.
Quanto à água e aos alimentos, a atuação começa no pré-evento, com acompanhamento e fiscalização de prestadores de serviços de alimentação, fornecedores e produtores da agricultura familiar e comunidades tradicionais. “Também deve haver programação de coletas e análises de amostras antes e durante o evento para prevenir surtos alimentares.”
Participação da comunidade científica
Claudia Osorio de Castro ressalta o papel fundamental das instituições científicas e de saúde pública na preparação e no monitoramento da COP30. Para ela, a organização do evento não deve ser conduzida de forma restrita ou tecnocrática, mas sim participativa e baseada em evidências. “A preparação para um evento dessa magnitude não pode se limitar a decisões tomadas em espaços fechados por grupos restritos de gestores”, defende.
Universidades locais, institutos de pesquisa e entidades como a Fiocruz devem estar presentes nas instâncias de decisão, incluindo o Comitê Organizador da conferência. Além disso, ela considera essencial a participação de especialistas em mudanças climáticas, emergências sanitárias e desastres ambientais. “Esses profissionais podem contribuir com avaliações de risco, proposição de protocolos de resposta e monitoramento de impactos durante e após o evento”, conclui.
Nos últimos dias, foi noticiado que Belém vem estruturando um plano para garantir atendimento de saúde durante a COP30, com investimento federal de R$ 53 milhões voltado à construção e reforma de unidades básicas, ampliação de leitos hospitalares, contratação de agentes comunitários e aquisição de equipamentos. O SUS oferecerá assistência gratuita a participantes brasileiros e estrangeiros, com reforço de UBS, UPAs, hospitais públicos e privados, além de postos médicos temporários no perímetro do evento e um Centro Integrado de Operações Conjuntas em Saúde para monitoramento em tempo real. Profissionais locais passaram por treinamentos especializados para lidar com emergências químicas, biológicas, radiológicas e nucleares, e foram apresentados planos de adaptação climática e fortalecimento da atenção básica.



