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“Nem lixo, nem bicho, somos humanos”: seminário reivindica saúde para mulheres em situação de rua

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Publicado em:04/07/2025
Por Barbara Souza

Os desafios para formulação de políticas públicas voltados à saúde das mulheres em situação de rua foram debatidos no primeiro dia do Seminário Avançado sobre o tema, promovido pela ENSP/Fiocruz em parceria com a Escola de Serviço Social da UFF, o Departamento de Serviço Social da PUC-Rio e a Fiocruz Ceará. Iniciado nesta terça-feira (1º/7), o evento reuniu representantes de movimentos da população em situação de rua, profissionais de saúde, pesquisadores e gestores das instituições participantes do encontro. 


Na conferência de abertura, o debate reuniu o presidente da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento, Richarlls Martins, e a pesquisadora da ENSP/Fiocruz Roberta Gondim. Os palestrantes aprofundaram reflexões sobre saúde das populações vulnerabilizadas, equidade e políticas públicas, situando a discussão no contexto histórico, político e econômico brasileiro. Ao considerar que “hierarquias de classe no Brasil correspondem a hierarquias de raça”, Gondim explicou os marcadores de exclusão e desigualdades. “Essa matriz crítica de análise tem que estar não apenas nas nossas produções de conhecimento, mas também aliançada com o ativismo político. Isso é parte integrante de uma semente de transformação”, defendeu a pesquisadora. Ainda em sua palestra, a professora da ENSP sublinhou que não se pode tratar as questões da população em situação de rua sem considerar a transversalidade dessa pauta com as demais. “As políticas públicas precisam dar conta disso”, disse. 

Richarlls Martins acrescentou ao debate uma perspectiva global sobre as pessoas em situação de rua, destacando que o problema também afeta países desenvolvidos. Ao olhar para o cenário brasileiro, ele abordou as dimensões da saúde previstas na Política Nacional para a População em Situação de Rua, marco legal de 2009. O convidado comentou pontos como a necessidade de educação permanente para os profissionais e a humanização dos serviços. Por fim, Martins recomendou que os militantes dessa pauta se aproximem mais do Poder Judiciário, por meio da Defensoria Pública da União, por exemplo. “Eu acho que é estratégico fortalecermos a nossa incidência junto a outro mecanismo de poder para garantir a dimensão do Direito.”

À frente da organização do evento, a pesquisadora do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/ENSP) Valéria Castro mediou a conferência. Ao fazer um balanço das apresentações, sinalizou sobre a importância da união de esforços de instituições e de grupos sociais. “É necessário, principalmente no momento em que grupos de extrema-direita, que querem banir direitos, se reúnem e se articulam internacionalmente”, alertou. 

Saiba como foi a manhã de abertura

Reconhecida por contribuir para a introdução das ciências sociais no campo de estudos médicos e da saúde pública no país, a pesquisadora emérita da Fiocruz Maria Cecília de Souza Minayo deixou sua mensagem de saudação em vídeo. Na gravação, a professora destacou que mulheres em situação de rua, muitas vezes, estão fugindo de violências. “Tratem cada uma dessas mulheres como pessoa, sujeito de direitos. A história de uma não se repete com a outra. E há saída para elas. As que estão doentes precisam ser atendidas no SUS. As que não estão doentes precisam de carinho e cuidado. Nossa missão é ajudá-las a sair dessa situação indesejável para qualquer pessoa”, afirmou. 

Em seguida, uma mesa solene inaugurou os trabalhos do seminário. Valéria Castro sintetizou a finalidade do evento. “O principal é gerar movimento, trazer o assunto para a roda, provocar reflexões e contribuir para que o movimento influencie e construa políticas que possibilitem de fato a saúde dessas mulheres.” 

Mônica Senna, da Escola de Serviço Social da Universidade da UFF, sublinhou que, apesar de estarem em menor número nas ruas, as mulheres nessa situação são mais vulnerabilizadas do que os homens. “Que possamos sair daqui mais enriquecidos, não só teoricamente, mas também numa perspectiva propositiva e com esperança de ampliar o direito à saúde das mulheres em situação de rua”, completou. Representante do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio, Nilza Nunes expôs sua preocupação em “construir junto com as pessoas que estiveram ou estão em situação de rua, ou foram atravessadas por essa vivência”, questionando o que é possível fazer do ponto de vista das universidades e dos serviços.


Secretária da Coordenação de Equidade, Diversidade, Inclusão e Políticas Afirmativas da Fiocruz (Cedipa), Bárbara Aires pontuou que profissionais do SUS “muitas vezes negam atendimento a essas pessoas apesar das leis” e chamou a atenção para o crescimento da população de rua nos últimos anos. Como mulher transexual, Bárbara também destacou o recorte de gênero. “Que mulheres trans e travestis são essas que estão em situação de rua? Elas têm sua documentação retificada? São respeitadas nessa identidade de gênero ou não são redesignadas e vão aumentar o índice numérico da população masculina em situação de rua?”, questionou. 

Vice-diretora de Atenção à Saúde e Laboratório de Saúde Pública da ENSP, Fátima Rocha defendeu o fortalecimento de redes, investimento na capacidade clínica e em linhas de cuidado que possam atender à diversidade. Ela também falou sobre a importância de formar melhor os trabalhadores, destacando o papel da Escola nesse sentido. “Somos muitos e temos uma história de resistência nesse país. Precisamos seguir nesta linha para poder criar projetos que permaneçam ao longo do tempo”, afirmou a vice-diretora.

Pela Fiocruz Ceará, Luciana Alleluia reforçou o discurso pela escuta e troca de saberes com as populações, lembrando que “para alguns, a rua é lugar de passagem e, para outros, lugar de vida”. Já a secretária-executiva da Pastoral Nacional do Povo da Rua e integrante do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (CIAMP-Rua), Tânia Ramos, fez um apelo para que “se olhe para essas pessoas como se olha para si”. Ela disse ainda que “a saúde da mulher da rua não passa somente pela questão da dignidade menstrual”, reivindicando acesso às unidades básicas e até mesmo a lazer. 

Pelo Movimento Nacional de Pessoas em Situação de Rua, Maria Sueli Oliveira contou sobre sua vivência em situação de rua a partir de rompimento de vínculo familiar, defendeu o fortalecimento do consultório na rua e o acesso às UBSs, reforçou que as mulheres sofrem mais e salientou a necessidade de sempre se considerar gênero e raça nesse contexto. “Que caia por terra a ideia de que a pessoa está em situação de rua porque quer. Nós não somos lixo nem bicho, somos humanos”, declarou. 

A manhã também foi marcada pela participação do Coral da Pastoral do Povo da Rua, que emocionou os presentes. O Seminário Avançado sobre Saúde das Mulheres em Situação de Rua foi realizado nos dias 1° e 2 de julho em formato híbrido, com encontro presencial no Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ, no Rio de Janeiro. As atividades foram transmitidas em tempo real pelo canal do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, no YouTube. Os vídeos estão disponíveis aqui. O evento contou com o apoio do Movimento Nacional de Luta e Defesa da População em Situação de Rua (MNPSR), da Pastoral do Povo da Rua e do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para População em Situação de Rua (CIAMP Rua), além do financiamento do Ministério da Saúde/CNPQ.


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