Busca do site
menu

Robert Whitaker: ‘Brasil pode ser líder na mudança de paradigma do cuidado mental’

ícone facebook
Publicado em:02/01/2025
Por André Vilhena (CEE-Fiocruz)

“O Brasil pode ser um líder na transformação do cuidado em saúde mental, com base na sua experiência na Reforma Psiquiátrica, que inclui a Lei Antimanicomial, de 2001, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e a proteção dos direitos humanos dos pacientes psiquiátricos”, afirma em entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, o jornalista Robert Whitaker, autor premiado de vários obras sobre o tema da saúde mental, em que denuncia a ação da indústria farmacêutica na produção de doenças e na patologização do sofrimento psíquico.

Sua produção inclui os livros Mad in America, que deu origem ao trabalho hoje desenvolvido no site Mad in Brasil,  e  Anatomia de uma epidemia, publicado pela editora Fiocruz. Grande conhecedor das experiências internacionais em saúde mental e reforma psiquiátrica, Robert foi um dos palestrantes do 8º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas, realizado nos dias 5 e 6 de dezembro no auditório da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz (ENSP/Fiocruz) e com transmissão on-line.

Robert publicou também, em 2024, o livro A psiquiatria sob influência e corrupção institucional, que vem alcançando grande repercussão na Europa, e assinou, com o psiquiatra e sanitarista Paulo Amarante, pesquisador emérito da Fiocruz, organizador do seminário, o capítulo Anatomia de uma indústria: comércio, pagamentos a psiquiatras e traição ao bem público, no livro Desmedicar – a luta global contra a medicalização da vida.

No evento promovido pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Ensp, em parceria com o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE Fiocruz), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e a Capes, Robert falou sobre a importância, originalidade e pioneirismo da Reforma Psiquiátrica Brasileira. 

Segundo destacou, a reforma psiquiátrica brasileira, iniciada nos anos 1980, foi uma das mais progressistas, mas ainda enfrenta desafios devido ao modelo de doença impulsionado pela psiquiatria americana, baseada no uso excessivo de medicamentos. Sob essa perspectiva, ele avalia que a psiquiatria brasileira se destaca, por sua abordagem humanística e inclusiva, apesar das condições precárias de algumas instituições no país e da persistência em alguns desses locais de tratamento forçado, prática que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2006, afirmou que deveria ser proibida.

A Fiocruz, teve seu papel destacado pelo jornalista, como referência importante ao patrocinar eventos como o seminário, em sua oitava edição, reunindo convidados nacionais e internacionais em torno do debate sobre os desafios ao modelo tradicional de doença e a medicalização da vida.

A evolução da psiquiatria moderna, envolvendo parcerias entre médicos e empresas farmacêuticas, “muitas vezes corruptas”, como aponta Robert, caminhou em direção à distorção da ciência e ao aumento da prescrição de medicamentos sem evidências claras de seus benefícios em longo prazo.  Nesse sentido, ele diz que embora os medicamentos psiquiátricos possam ser úteis em curto prazo, seu uso excessivo e prolongado tem levado a consequências negativas para a saúde mental.

“O Brasil, com seu histórico de reforma e sua discussão pública sobre o cuidado humanizado tem condições para liderar uma mudança global na saúde mental, priorizando os direitos humanos e o bem-estar dos pacientes, minimizando o uso de medicamentos e criando protocolos de apoio para a retirada desses tratamentos”, considera Robert, que abordou esse tema em sua exposição no seminário.

Leia a entrevista, a seguir.

Que pontos da Reforma Psiquiátrica Brasileira chamam sua atenção?

A Reforma Psiquiátrica Brasileira, da década de 80 – composta pela Lei Antimanicomial, pela criação dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e pela promulgação de legislação que protege os direitos humanos dos pacientes psiquiátricos – foi muito progressista. Ela é uma das melhores reformas que conheço. No entanto, como salientaram Fernando Freitas [um dos fundadores do Mad in Brasil, morto em 2023] e Paulo Amarante, o modelo de tratamento da doença promovido pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais  publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association – APA), em 1980, passou a ser, de diversas formas, uma nova fonte de danos. Os medicamentos psiquiátricos claramente não promovem a recuperação e a saúde a longo prazo, e os diagnósticos expandidos são um exemplo da medicalização das nossas sociedades.

Assim, o tema óbvio a ser explorado neste oitavo seminário anual sobre drogas psiquiátricas foi como esse histórico da Reforma Psiquiátrica no Brasil fornece uma base para o país se tornar um líder na criação de uma mudança de paradigma no cuidado atualmente, afastando-se do modelo de doença promovido pela psiquiatria americana e caminhando para um modelo de direitos humanos que já está presente na legislação brasileira.

Como posiciona o Brasil em relação a outros países, no que diz respeito à abordagem do tema Saúde Mental?

Eu, é claro, vejo a psiquiatria brasileira através da lente de quem conheceu Paulo Amarante e Fernando Freitas, e através de seus colegas e da dedicação deles hoje em desafiar o modelo de doença. Os Caps parecem ser um modelo de bom cuidado comunitário, e é notável que toda vez que venho ao Brasil, há um momento em que uma banda de samba composta por usuários dos serviços psiquiátricos está presente, tocando uma música maravilhosa. Isso diz muito sobre o tratamento respeitoso e as atitudes em relação aos usuários.

Não acredito que a psiquiatria brasileira seja perfeita, e durante uma das minhas visitas, estive em um hospital psiquiátrico (um hospital estadual, acredito) e as condições nesse hospital eram horríveis. Tenho certeza de que há problemas na entrega dos cuidados, particularmente para os pobres, e entendo que o tratamento forçado ainda existe no Brasil, o que é uma prática que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência - Instrumento internacional de direitos humanos, aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 13 de dezembro de 2006, afirmou que deveria ser proibida.

No entanto, há um espírito e uma liderança na psiquiatria brasileira que observo quando venho aqui, que são verdadeiramente notáveis. E o fato de a Fiocruz patrocinar uma conferência anual sobre os desafios ao modelo de doença e os méritos dos medicamentos psiquiátricos é único. Não conheço nenhum outro país onde os desafios ao modelo de doença existente se originam de dentro de uma instituição de poder e prestígio, como claramente é a Fiocruz.

O senhor tem vários estudos, textos e livros apontando distorções nos procedimentos da indústria farmacêutica, que resultam em um incentivo à medicalização do sofrimento humano. Como chegamos a esse cenário?

Essa questão é bem fácil de responder.  Existe uma história que explica como isso surgiu. Depois que o medicamento que hoje lembramos como o primeiro antipsicótico foi introduzido na medicina dos asilos em 1955 (clorpromazina), a indústria farmacêutica entendeu que um novo mercado para seus produtos havia se aberto. A introdução dos benzodiazepínicos na década de 1960 fez grande sucesso, e as empresas farmacêuticas tornaram o desenvolvimento de novos medicamentos psiquiátricos uma prioridade.

Em 1980, a Associação Psiquiátrica Americana apresentou seu modelo de doença para categorizar os transtornos mentais com a publicação do DSM III, e como o arquiteto do DSM III (Robert Spitzer) reconhece, as empresas farmacêuticas “ficaram encantadas” com esse novo modelo. O manual transformou dificuldades comuns—tristeza, ansiedade comum, e assim por diante—em “doenças” que poderiam ser tratadas com medicamentos. E, claro, o DSM introduziu o Transtorno de Déficit de Atenção, afirmando que crianças que não prestavam atenção o suficiente na escola sofriam de uma anomalia cerebral que poderia ser corrigida com medicamentos, e esse foi o começo da transformação das crianças em um mercado para os medicamentos psiquiátricos.

Naquela época (década de 1980), a Associação Psiquiátrica Americana e as empresas farmacêuticas se declararam abertamente em uma parceria para promover esse modelo de doença ao público e lançar novos medicamentos no mercado. As empresas farmacêuticas começaram a pagar psiquiatras acadêmicos para serem seus consultores, assessores e palestrantes em eventos promocionais, além de pagá-los para serem listados como autores de ensaios clínicos conduzidos pelas empresas farmacêuticas. A indústria farmacêutica estava pagando os psiquiatras acadêmicos para serem seus “principais formadores de opinião,” e, no final da década de 1990, eram poucos os psiquiatras acadêmicos nos Estados Unidos que não recebiam dinheiro das empresas farmacêuticas para ajudá-las a construir mercados para seus medicamentos.

O público, é claro, via esses psiquiatras acadêmicos, ao menos inicialmente, como os especialistas médicos em público deveriam confiar para orientar o cuidado psiquiátrico com medicamentos. Mas a compra da psiquiatria acadêmica rapidamente levou a uma corrupção da ciência: os ensaios clínicos foram enviesados por design para fazer os novos medicamentos parecerem eficazes; os benefícios dos novos medicamentos foram exagerados e os danos minimizados ou ocultados; e campanhas de “saúde pública” foram montadas com líderes da psiquiatria americana contando como transtornos mentais importantes, como a depressão, eram doenças, caracterizadas por desequilíbrios químicos no cérebro. Essa história do desequilíbrio químico foi contada ao público, embora investigações sobre a teoria não tenham encontrado evidências de tais desequilíbrios químicos.

Esse apoio da psiquiatria acadêmica ao que pode ser visto hoje como uma “narrativa falsa da ciência” provou ser muito bem-sucedido na “medicalização” do sofrimento humano e das dificuldades emocionais/comportamentais. Fomos levados a nos ver por essa lente, e o diagnóstico de adultos e crianças e o tratamento com medicamentos explodiram. Enquanto isso, os psiquiatras dos EUA que promoviam esse modelo de doença de cuidado eram pagos com centenas de milhares de dólares—ou até milhões—pelos seus serviços como “principais formadores de opinião.”

Embora a compra do establishment psiquiátrico tenha começado nos Estados Unidos, as empresas farmacêuticas entenderam que esse era um bom modelo para construir mercados, e os pagamentos logo começaram a fluir para os psiquiatras acadêmicos de países desenvolvidos em todas as partes do mundo.

Qual é o real papel da medicação psiquiátrica – às vezes ela é necessária, não? O que o uso excessivo ou desnecessário pode acarretar para a nossa saúde?

Certamente há muitas pessoas que atestarão como os medicamentos psiquiátricos as ajudaram no curto prazo e dirão que esse tratamento também as ajudou no longo prazo. No entanto, é claro que a explosão do uso de drogas psiquiátricas nas sociedades modernas provou ser uma falha de saúde pública, uma vez que o fardo global das perturbações mentais aumentou notavelmente desde que os países adotaram este modelo de doença. Além disso, existem evidências bastante convincentes no nível individual de que o uso por longo prazo aumenta o risco de uma pessoa se tornar cronicamente sintomática e funcionalmente prejudicada.

Então, qual poderia ser o uso adequado dessas drogas? O que precisamos é de um modelo de cuidados que tente minimizar o uso de drogas psiquiátricas, especialmente a longo prazo. Em termos médicos, precisamos de descobrir a quem os medicamentos devem ser prescritos e durante quanto tempo. Se esse fosse o objetivo, então a utilização destes medicamentos seria drasticamente restringida.

O senhor afirma que o Brasil tem papel fundamental na transformação do cenário da saúde mental. Por que atribui esse papel ao nosso país? Que ‘armas’ o Brasil tem para enfrentar o desafio que você nos apresenta?

A razão pela qual penso que o Brasil pode ser um líder na transformação da saúde mental – e da narrativa que rege o pensamento social – é precisamente porque, sob a liderança de Paulo Amarante e seus colegas da Fiocruz (e além), foi feito um esforço conjunto e contínuo desafiar publicamente o modelo da doença e, assim, promover uma discussão profissional e social sobre como substituir a narrativa do modelo da doença por uma narrativa baseada no cuidado humanístico e na proteção dos direitos humanos.

Embora as contestações públicas a esse modelo de atenção à doença estejam surgindo em um país atrás do outro, o que é uma prova de seu fracasso, é apenas no Brasil que essa objeção surge dentro da instituição de saúde de maior prestígio do país, a Fiocruz.

E, dado o apoio institucional para levantar essa discussão pública, torna-se mais provável que tal discussão possa levar a mudanças sistêmicas que sirvam como um modelo de transformação para outros países ao redor do mundo.

Por exemplo, este 8º Seminário focou na retirada de drogas psiquiátricas, um tema que tem recebido muita atenção em vários países, uma vez que os pacientes falam de dificuldades extraordinárias em abandonar as drogas. O Brasil poderia desenvolver apoio à retirada de medicamentos psiquiátricos através de sua rede Caps, e fazê-lo como uma iniciativa de saúde pública que poderia ser avaliada quanto aos resultados. Dessa forma, poderia desenvolver protocolos para apoiar a retirada de medicamentos psiquiátricos de forma eficaz.

Foi isso que sublinhei no evento. O Brasil, com sua história de reforma psiquiátrica e com seus esforços, por meio da realização de conferências anuais sobre a medicalização da vida moderna, poderia agora dar o passo de instituir mudanças sistêmicas que servissem de inspiração para outros países seguirem o exemplo.

Fonte: CEE-Fiocruz
Seções Relacionadas:
Entrevistas

Nenhum comentário para: Robert Whitaker: ‘Brasil pode ser líder na mudança de paradigma do cuidado mental’