Uso medicinal de Cannabis exige mais regulação e estudos, afirmam pesquisadoras da ENSP
Por Barbara Souza
O consumo para fins medicinais de produtos de Cannabis tem aumentado no Brasil e impactado economicamente o Sistema Único de Saúde. O uso clínico de derivados da planta, como o canabidiol e o tetrahidrocanabinol, cresceu nos últimos vinte anos e uma parte significativa do acesso a esses itens é paga pela União. Afinal, com prescrição médica, é possível requerer judicialmente o custeio pelo governo. Dessa forma, os gastos públicos com o fornecimento de produtos de Cannabis já passavam de R$ 165 milhões em meados de 2023.
Em meio a este cenário, pesquisadoras da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) conduzem uma análise das ações judiciais movidas contra a União para acesso a produtos de Cannabis. O grupo formado por Claudia Garcia Serpa Osorio de Castro, Ângela Esher, Claudia Du Bocage e Catia Veronica Oliveira estuda as características desse fenômeno para conhecer, por exemplo, as indicações e justificativas apresentadas pelos médicos, o perfil dos pacientes que demandam e os produtos mais solicitados entre os comercializados no Brasil e os importados com anuência da Anvisa. O Informe ENSP conversou com o colegiado da pesquisa sobre o tema. A entrevista traz um resumo do panorama da regulação dos produtos de Cannabis usados com fins medicinais no país e destaca os desafios à saúde pública.
As entrevistadas ressaltam que a crescente demanda por esses produtos tem sido acompanhada pela atuação de indústrias nacionais com autorização sanitária para sua fabricação e comercialização. Somam-se à produção nacional quase 600 itens importados feitos com Cannabis, cuja entrada no país é autorizada pela Anvisa. Nos últimos anos, diante de um apelo social pelos produtos, a agência reguladora criou alternativas para permitir o acesso a esses itens pelos pacientes. Só que, por não serem medicamentos, os produtos não passam por todas as etapas de avaliação de eficácia, segurança e qualidade. Mesmo assim, têm sido utilizados para tratar uma variedade de condições médicas. As pesquisadoras explicam que as evidências científicas para a maioria das indicações são baixas, gerando mais preocupação. O grupo de pesquisa também considera a regulação vigente frágil, o que abre caminho para um mercado nem sempre alinhado aos interesses sanitários.
Pressão social, escassez de evidência científica e lacunas normativas têm como resultado o rápido aumento de empresas em atuação nesse nicho comercial, que tem se mostrado lucrativo e permeável. Para as pesquisadoras, a Anvisa deve se posicionar mais assertivamente sobre a regulação de produtos para uso medicinal que contenham Cannabis, tanto em relação aos usos indicados, de acordo com evidências disponíveis, como em relação à disponibilidade dos itens autorizados para importação e comercialização no país. Leia a entrevista e saiba mais!
Informe ENSP: Há só um medicamento a base de Cannabis registrado no Brasil. Mas são quase 600 produtos da planta aprovados para importação. Por que essa diferença?
Colegiado da pesquisa: A explicação são os critérios exigidos para que um produto seja considerado um medicamento. Afinal, para se reconhecer um medicamento, são necessários vários estudos de eficácia, segurança e qualidade. Todo esse processo não ocorre com os produtos feitos com Cannabis. Eles são como os suplementos alimentares, sobre os quais se faz propagandas que podem sugerir se tratar de medicamentos, mas não são. A classificação é diferente porque esses itens não passaram por todas as etapas de estudos pré-clínicos e clínicos.
Criou-se uma comoção nacional ao se comprovar a indicação do canabidiol para epilepsia refratária em crianças. Mas a Anvisa não havia recebido dos produtores uma submissão para aprovar um medicamento à base de Cannabis produzido nacionalmente. Sob pressão para ceder à crescente demanda, a agência começou a adaptar a legislação, criando outras categorias regulatórias. Assim, foi autorizada a importação do óleo, que ainda não se encontrava no Brasil. Além disso, permitiu-se fabricar no país os extratos, tinturas, óleos essenciais e até o canabidiol puro. Nenhum deles é medicamento. O apelo pelos produtos de Cannabis fez, portanto, surgirem atalhos regulatórios que facilitaram o acesso a eles.
Alguns produtores argumentam que esse tipo de produto não se enquadraria como medicamento e, então, não faria sentido realizar ensaios clínicos. Além disso, havia uma barreira regulatória, ética e sanitária, que dificultava a execução de pesquisas. O que se observa é que, com o acesso aos produtos pelas vias alternativas criadas, houve uma certa acomodação por parte dos interessados. A questão é que, agora, há quase 600 produtos autorizados para importação, sobre os quais se sabe muito pouco.
Informe ENSP: Então, normas regulamentadoras, como a RDC 660/2022 da Anvisa, resultaram na ampliação do acesso a produtos de Cannabis para uso medicinal no país. Quais são as características do arcabouço regulatório brasileiro para este tema?
Colegiado da pesquisa: Trata-se de uma regulação frágil e insuficiente, que se soma às evidências fracas para grande parte das indicações, à pressão social, à demanda crescente e a um mercado em expansão. Isso porque, nos últimos anos, pesquisas têm investigado os efeitos de canabinoides sintéticos ou naturais para diversos fins e obtido justificativas robustas, mas para poucas indicações. As evidências são produzidas para substâncias ativas específicas, e altas - para tratamento de epilepsia com CBD, sendo moderadas para doença de Parkinson. Para dor crônica, espasticidade, sono, depressão e drogadição, as evidências são moderadas para nabiximol. Para dor crônica, perda de apetite, Síndrome de Tourette as evidências são moderadas para dronabinol. Ou seja, para as demais indicações e outros fármacos da Cannabis, as evidências obtidas até agora são fracas ou inexistentes. Mesmo assim, foi autorizado o ingresso de múltiplos produtos de Cannabis no mercado, utilizados para diversos fins medicinais sem fundamentação suficientemente fortes.
Há ainda uma incongruência com normas anteriores. A utilização medicinal desses produtos de Cannabis é uma questão controversa em si, pois a planta é considerada proscrita pela Portaria 344/1998. Então, as substâncias derivadas da Cannabis e a própria espécie seriam ilegais. Portanto, além de insuficiente, a regulamentação é contraditória. Há uma legislação que proíbe qualquer derivado da Cannabis enquanto outras permitem receituário normal de produtos com até 0,2% de THC, autoriza importações e orienta sobre receituário controlado.
Ao mesmo tempo, não há fiscalização sanitária do conteúdo dos produtos e não há obediência a critérios mais rígidos, justamente por não se tratar de medicamentos. A Cannabis é um fitocomposto, possui várias substâncias. O THC é um dos que tem propriedades psicoativas. Seu limite é de 0,2% de concentração, a não ser para cuidados paliativos. No entanto, isso não é fiscalizado. O único medicamento autorizado no Brasil, é uma composição 1:1 de CBD e tetrahidrocanabinol. Os princípios ativos são isolados, o que permite a análise dos efeitos, da eficácia e da segurança. Já nos produtos em geral, isso não é possível. Portanto, eles contêm misturas em concentrações desconhecidas. Resta apenas acreditar no que consta nos rótulos que, em diversos casos, não informam o suficiente. Em defesa dos interesses da saúde pública, a situação exige uma posição mais rigorosa e criteriosa da Anvisa.
Informe ENSP: No geral, os pacientes em uso medicinal de Cannabis estão seguros?
Colegiado da pesquisa: Não estão. Além do que já foi dito a respeito da falta de evidências científicas de alta confiança, não há monitoramento e acompanhamento desses pacientes que, muitas vezes, fazem uso por tempo indeterminado dos produtos. É preciso saber se isso está resultando em efeitos benéficos e quais são os efeitos adversos. Atualmente, não se consegue mapear benefícios nem malefícios. Não há uma vigilância pós-comercialização adequada para saber o que está acontecendo com essas pessoas.
Através das demandas judiciais pelo acesso aos produtos, é possível observar apenas uma parcela do panorama que está se formando no país. As solicitações que chegam à Justiça são das pessoas que não podem pagar, mas há muitas pessoas comprando com facilidade a partir da solicitação de autorização para importar produtos derivados de Cannabis junto à Anvisa. Basta ter a prescrição médica. A compra chega pelos Correios. Então, conhecemos a ponta do iceberg. Há ainda pessoas consumindo produtos de Cannabis para diversos fins por conta própria, até mesmo sem receita médica, o que é ilegal, mas possível. Estamos diante de um panorama que, dentro da formalidade, já é um retrato muito difícil. É alarmante o que há fora desse âmbito formal: um volume invisível de pessoas fazendo uso.
Informe ENSP: No Ceensp, falou-se do apelo social por acesso aos produtos de Cannabis, com ativismo, marketing e até mesmo desinformação. É preciso mais estudo?
Colegiado da pesquisa: Tudo relacionado a Cannabis medicinal ainda é muito novo, de acordo com o modelo de avaliação de tecnologias que aplicamos o mudo ocidental. Houve um período muito grande de proibição geral ao que era relacionado à planta, inclusive em relação às pesquisas. Então, estamos falando de sistema endocanabinoide sendo esclarecido a partir das décadas de 1980 e 1990. Só a partir daí foi possível estudar um pouco mais a fundo os efeitos dos fitocanabinoides, por exemplo. Estamos, portanto, num momento muito inicial.
Há uma indicação terapêutica que gerou um apelo social mobilizado pelas famílias das crianças com epilepsia. Famílias que, por conta própria, produziam o óleo e viam os resultados. A partir daí, a importação desses óleos passou a ser permitida, mas é uma única indicação com evidência forte. Há tantas outras ainda sendo estudadas, já com algum grau de evidência, mas em fase inicial. É uma questão de tempo para termos a comprovação de que a Cannabis é efetiva ou não para determinadas indicações. Mas, enquanto isso, observamos que há uma impressão de que a Cannabis serve para tudo.
Há muitas dificuldades relacionadas à indicação da Cannabis exatamente por ser necessário ainda muito estudo. E não se trata de estudos observacionais ou estudos de caso, como podemos ver aos montes sendo usados como argumentos pelos que defendem haver comprovações suficientes. É preciso realizar mais ensaios clínicos, duplo-cegos, estudos randomizados, aqueles no chamado “padrão ouro”, que nos possibilitam afirmar a respeito da segurança e da eficácia de determinado produto.
Informe ENSP: Há um grande volume de processos judiciais, meio pelo qual muitas pessoas acessam os produtos de Cannabis, especialmente os importados. Como isso pesa nos cofres públicos?
Colegiado da pesquisa: Pesa bastante, até porque são compras em dólar, euro e libra. O Brasil gastou cerca de R$ 165 milhões com fornecimento público de produtos contendo Cannabis, de 2015 até a meados de 2023, sendo cerca de metade desse valor resultado de demandas judiciais impetradas contra o poder público. A tendência é esse gasto crescer, já que não há iniciativas para reduzir o número de indicações desnecessárias, por exemplo.
Informe ENSP: Como a pesquisa “Análise de demandas judiciais que pleiteiam produtos contendo Cannabis para fins medicinais contra a União” pretende contribuir nesse sentido?
Colegiado da pesquisa: A pesquisa foca numa parte da demanda formal pelos produtos de Cannabis. Ainda assim, esse recorte é das solicitações baseadas num modelo regulatório problemático e num conjunto de evidências incipiente. Há um desequilíbrio nessa demanda por ser, em grande parte, mal justificada. O primeiro resultado do nosso trabalho foi mostrar as inconsistências e os problemas da regulação. Em maio, foi publicado um preprint, já aprovado para a seção Perspectivas de Cadernos de Saúde Pública.
Financiada pelo Ministério da Saúde, a pesquisa vai se aprofundar nesse fenômeno com os seguintes objetivos: identificar as principais indicações terapêuticas, a partir da literatura científica, e das evidências identificadas para produtos contendo Cannabis; identificar e descrever os produtos contendo Cannabis registrados no Brasil, e produtos com permissão de importação, ambos com concentração e posologia definidos; identificar e descrever os produtos demandados nas ações judiciais impetrados contra a União; caracterizar e analisar as demandas judiciais pertinentes, no que diz respeito a indicadores de mandados judiciais selecionados; e discutir as questões socioculturais inseridas no contexto das demandas judiciais por produtos contendo Cannabis no Brasil. Os dados foram coletados das demandas judiciais cadastradas no Departamento de Gestão das Demandas em Judicialização na Saúde - DJUD/MS num período de cerca de quatro anos. Os resultados subsidiarão a tomada de decisões do Ministério da Saúde.
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