Diálogo entre Justiça Restaurativa e saúde amplia cuidado, bem-estar e dignidade
Por Barbara Souza
Diferentes noções de justiça, superação de traumas e propostas para a saúde conduziram as apresentações da última mesa do Congresso de Desenvolvimento Humano, Trauma e Violência: Diálogos entre a Saúde Pública e a Justiça Restaurativa, encerrado nesta sexta-feira (27/9). O desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Leoberto Brancher, a Mestre em Direito e Juíza do Tribunal de Justiça do Paraná, Laryssa Angélica Muniz, e a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), Simone Gonçalves de Assis, palestraram na mesa ‘A escuta no diálogo: interlocuções entre saúde e justiça restaurativa para a promoção de bem-estar e dignidade humana’.
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Leoberto Brancher ministrou sua palestra com foco no “inédito possível”, numa alusão a Paulo Freire. Entusiasta e referência da Justiça Restaurativa no Brasil, ele defendeu que “temos que construir novas perspectivas e acreditar nelas”. Brancher contrapôs a proposta da Justiça Restaurativa à visão de justiça que tem a produção da dor como estratégia de controle social. Ele celebrou a expansão da Justiça Restaurativa no Brasil nos últimos 25 anos, destacando a presença de iniciativas em todos os estados do país. O palestrante ressaltou as peculiaridades brasileiras, pois considera que houve um “atravessamento de linhas de pensamento e técnicas que enriqueceram o modelo da Justiça Restaurativa, como a Comunicação Não-Violenta e os Círculos de Construção de Paz”.
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Na visão defendida por Brancher, o próximo passo na área é compartilhar o poder de justiça com as comunidades. A ideia é que os participantes de um grupo social façam o próprio “processo de valoração das situações de dor e de conflito”, como provocou o desembargador. “Se nós chegamos a um nível de atividade subjetiva na justiça, ainda que se mantenha a técnica por parte do magistrado, por que esse poder não é compartilhado com a sociedade?”, questionou ao falar também de interação, relatividade ética e dos diferentes contextos de convivência nos quais as pessoas estão organizadas. Para Brancher, trata-se de enxergar a Justiça não apenas como uma instituição, mas sim a partir de sua função social de reestabelecimento do que chamou de assimetrias na convivência. “Essa é a ética que a Justiça Restaurativa nos convoca a instalar”, resumiu.
“Eu sempre me encantei com essa ideia de uma justiça que cura e não uma justiça que fere”, explicou o convidado ao explicar os objetivos que o movem na defesa da Justiça Restaurativa como um caminho novo, que instaura uma outra perspectiva social. Brancher citou as emergências climáticas, mais especificamente a recente catástrofe no Rio Grande do Sul, para abordar o desafio imposto à sociedade pela incerteza permanente diante do futuro e da necessidade de mais resiliência. “É histórico o que estamos vivendo como civilização. Esse desafio do encontro com o outro, que nós estamos aqui propostos a aprender, é indispensável para que nós possamos reestabelecer a conexão com a natureza. Porque o que perdemos na relação do outro é reflexo da nossa natureza perdida. Nós não vamos recuperar o dano ambiental se nós não recuperarmos o dano relacional, o dano da coexistência enquanto sociedade. É o desafio do inédito possível”.
“Por que devemos falar sobre traumas?”. A pergunta foi respondida por Laryssa Muniz na segunda palestra do dia. A juíza paranaense explicou, com diversos exemplos de casos reais e experiências próprias, as razões pelas quais a Justiça Restaurativa se ocupa das cicatrizes, dos traumas e do passado de pessoas envolvidas em crimes, inclusive do agressor. Como também mencionado por Brancher, o contato entre vítima e perpetrador foi destacado por Laryssa como uma estratégia de superação de uma vivência violenta traumática. “Toda dor que não é transformada é transferida. Chega um momento, em que o Poder Judiciário precisa olhar para o trauma. Não vamos sair deste lugar que nós estamos nem prestar o serviço da maneira que precisa ser, pela nossa função constitucional, se não pararmos para evidenciar isso”.
A palestrante ressaltou os resultados positivos obtidos quando as vítimas passam a enxergar o agressor de outro ponto de vista, pois ele também pode ter sido uma vítima, até mesmo de abusos na infância. Laryssa Muniz refletiu sobre o conceito de crime como um “mal cometido por alguém que merece punição” e também criticou um sistema de justiça baseado na dor e não na cura. A juíza usou o livro “What Happened to You?: Conversations on Trauma, Resilience, and Healing”, dos estadunidenses Bruce D. Perry e Oprah Winfrey, como referência para falar sobre o peso de traumas na infância e os tipos de eventos traumáticos. Outro tópico destacado da obra foi a explicação sobre os três “E’s do trauma”: Evento, Experiência e Efeito.
As necessidades da vítima também foram destaques da apresentação: 1) Informação, pois ela precisa de respostas. 2) Validação, afinal a vítima nunca é culpada pelo crime; 3) Fazer a diferença para o autor, porque a experiência dolorosa deve servir para mudar o comportamento do autor. 4) Reconstruir a confiança, já que a vítima sente que teve a autonomia confiscada. 5) Ter uma voz, ou seja, espaços de escuta qualificada. 6) Ser reparada e compensada da melhor forma”. Além disso, a convidada detalhou o ciclo do trauma como definido pela autora Olga Bocharova e afirmou que “o que rompe com o ciclo do trauma é poder expressar o luto, poder falar sobre aquilo que está sentindo sem reprimir”.
Por fim, a partir de uma visão filosófica socrática, a juíza fez um paralelo entre injustiça e enfermidade e justiça e cura. “Minha dedicação total é para que mais e mais o judiciário se aproxime da cura. Porque todos nós que viemos para esse mundo sem saber muito bem o motivo e temos o direito de viver uma vida saudável em todos os sentidos. E que essa vida passe também por espalhar a cura para aqueles que ainda não podem sozinho encontrá-la”.
Mediadora da mesa e palestrante, a pesquisadora do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/ENSP) Simone de Assis comentou aspectos mais relacionados à saúde, estabelecendo conexões com as falas anteriores a respeito da Justiça Restaurativa. A médica e professora dos programas de pós-graduação em Saúde Pública da ENSP/Fiocruz e de Saúde da Criança e da Mulher no IFF/Fiocruz abordou primeiramente o perfil das pessoas que estão privadas de liberdade nas prisões brasileiras. A questão dos traumas foi um dos pontos da palestra, com destaque para os impactos da violência psicológica na infância e na adolescência, até mesmo culminando em comportamentos suicidas. “Não temos tradição nem interesse, eu diria, em tornar esse preso, essa pessoa que comete crime, um ser humano. Temos necessidade de considerar essa pessoa um criminoso, um monstro”, lamentou Simone.
A partir do olhar da saúde, trabalha-se com a perspectiva do cuidado, inclusive com linhas de cuidado para pessoas em situação de violência, conforme explicou a pesquisadora. Simone criticou a realidade atual na saúde nesse sentido, apontando falhas e dificuldades de realizar um trabalho diferenciado. “É muito difícil se preocupar com esse olhar mais holístico da pessoa que sofre violência numa atenção especializada, por exemplo. Temos um problema seríssimo hoje no serviço de reabilitação. Trata-se da fratura, mas não se vê aquele indivíduo com alguém que sofreu a violência”, exemplificou. “As questões de saúde física e mental estão muito presentes tanto para todos: para as vítimas e para os ofensores que estão nas prisões”, completou Simone.
A pesquisadora do Claves/ENSP citou duas políticas nacionais que se relacionam com a temática: Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNSSP) e a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências (PNRMAV). Simone de Assis ressaltou ainda a importância da interseccionalidade na saúde atualmente. “É fundamental de se discutir e lembrar da mulher, da criança, do idoso, da pessoa negra, da pessoa com deficiência, da pessoa LGBTQIA+, dos pobres… há fatores que tornam uma pessoa mais vulnerável nessa sociedade. E quando vulnerabilidades se somam, a saúde precisa se preocupar ainda mais com o cuidado”, detalhou. Em seguida, ela defendeu treinamentos dos profissionais de saúde para aprimorar esse cuidado, reconhecendo que há dificuldades em obter resultados que vão além de uma competência técnica. “Trabalhar nessa perspectiva mais restaurativa, mas compreensiva do ser humano é algo muito especializado. Não é qualquer profissional de saúde que alcança esse tipo de entendimento. Isso é algo que vi na minha experiência, mas acho que todos podem se beneficiar dessa visão mais ampla”, disse.
O evento foi promovido pelo Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Foi realizado presencialmente no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nos dias 26 e 27 de setembro e organizado em parceria com o Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec/TJRJ), a Escola de Mediação (TJRJ), o Instituto de Terapia de Exposição Narrativa (NET) e a Faperj.
Lançamento de livro
Também na manhã da sexta (27/9), o Congresso de Desenvolvimento Humano, Trauma e Violência recebeu o lançamento do livro “Frágeis e Invisíveis: saúde e condições de vida de pessoas idosas privadas de liberdade”, de autoria das pesquisadoras da ENSP/Fiocruz Maria Cecília de Souza Minayo e Patrícia Constantino. O livro apresenta a dura realidade dos idosos encarcerados no Rio de Janeiro, tema de pesquisa conduzida pelas autoras no Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/ENSP). O grupo de pesquisadores orientado por Minayo e Constantino mapeou o perfil físico e mental dessa população, suas condições de vida e expectativas futuras. O estudo revela as más condições enfrentadas pelos idosos nas prisões, assim como oferece reflexões e sugestões para melhorar o sistema penitenciário, ainda pouco preparado para lidar com essa parcela da população.
A pesquisa aborda a invisibilidade dos idosos no contexto prisional, população entre 60 e 88 anos, que representava 1,5% da população carcerária em 2019. Os pesquisadores visitaram a maioria das unidades prisionais no estado do RJ e entrevistaram quase todos os idosos presos, dos quais, quase um quarto aguardava julgamento. Essas pessoas enfrentam, ao lado dos demais presos e apesar das necessidades específicas da sua faixa etária, condições desumanas, com celas superlotadas, pouca higiene e alimentação inadequada. Em dez capítulos, além das questões de saúde, as autoras questionam as dimensões sociais e éticas do encarceramento de idosos, propondo considerar a idade nas decisões judiciais, melhorar as condições nas prisões e garantir a reintegração na comunidade após a libertação. Vale destacar a sessão do livro destinada às idosas encarceradas, uma minoria ainda mais silenciada nas cadeias.
Os sentidos deste inovador estudo tornam-se ainda mais completos com o acréscimo das recomendações vindas da parceria com o Ministério Público do Rio de Janeiro, elaboradas com base em dados da pesquisa. As recomendações incluem a criação de unidades prisionais específicas para idosos e ajustes arquitetônicos para garantir sua segurança e locomoção, além de atendimento médico diferenciado, alimentação adequada, entre outras medidas já previstas pela Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade, pela Lei de Execução Penal, de 1984 e a Constituição de 1988. Adotar essas medidas seria garantir direitos e dignidade aos presos idosos. Saiba mais e adquira o livro na Editora Fiocruz.
+ Confira mais fotos do evento na galeria ao fim da matéria!
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