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Com relatos e críticas, seminário reafirma participação social como essência da Psiquiatria Democrática

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Publicado em:26/06/2024
Por Barbara Souza

“Eu aprendi qual era o propósito daqueles profissionais na minha vida. Eles queriam me reinserir na sociedade de forma humanizada, sem me prender, sem me colocar numa clínica de recuperação. Queriam que eu me empoderasse e protagonizasse minha própria vida. Eles conseguiram”. Após décadas de abuso de substâncias, com fases em situação de rua, episódios como vítima e como praticante de atos violentos, Kleidson Oliveira, de 46 anos, se considera o “resultado de uma boa psicologia”. O relato da vivência dele, hoje coordenador estadual do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, no Distrito Federal, e Conselheiro de Saúde de Sobradinho (DF), marcou o último debate do seminário ‘A Liberdade é Terapêutica: centenário de Franco Basaglia - 50 anos de psiquiatria democrática’, realizado nesta sexta-feira (21/6), no auditório da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). O evento está disponível na íntegra no canal da ENSP do Youtube


Na mesa ‘Reforma psiquiátrica antimanicomial, participação e controle social’, Kleidson contou sua história de vida, desde sofrimentos na infância até tentativas de suicídio na fase adulta. Ele destacou sua passagem por uma comunidade terapêutica, de onde fugiu após ter sido forçado a trabalhar em obras, e sua chegada à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) por meio de um Agente Comunitário de Saúde. Num primeiro momento, Kleidison foi acolhido num Centro de Referência em Saúde Mental (Cersam) em Belo Horizonte (MG). Anos depois, passou a Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD) no Guará, em Brasília. Ele contou que seguiu o Projeto Terapêutico Singular (PTS) à risca e que passou se considerar “esclarecido sobre o que era tratamento em liberdade, cuidado humanizado e tudo que a RAPS propõe ao indivíduo”. Kleidson também falou sobre fases difíceis nas quais observou a precarização nos serviços de saúde mental. Envolvido com a luta antimanicomial, iniciou então sua militância por investimentos no setor. 

Questões ligadas à escassez de recursos destinados aos serviços públicos de saúde mental nos últimos anos também foram comentadas pelos demais palestrantes da mesa. 
O médico psiquiatra Marcelo Kimati, doutor em Ciências Sociais e professor de Saúde Coletiva da UFPR, relembrou momentos marcantes da evolução do campo da saúde mental após a Lei da Reforma Psiquiátrica em 2001 e destacou um “estrangulamento” da rede. Segundo ele, isso começou a gerar críticas mais intensas alguns anos após a implantação da reforma. “Enquanto um serviço de saúde mental que cobre 200 mil pessoas, por exemplo, não consegue garantir participação social, acesso e cuidado integral de forma adequada, o que é questionado não é o dimensionamento das equipes e o custeio, mas sim o modelo assistencial. Isso ganhou intensidade a partir de 2007/2008, quando começamos a ter um aumento da demanda por cuidados de usuários de álcool e outras drogas”, afirmou Kimati.


Conforme o professor da UFPR explicou, com a fragilização da rede, a partir dos primeiros anos da década de 2010, começou a se consolidar uma contrarreforma psiquiátrica. Nesse contexto, outro modelo de atenção aos usuários de álcool e outras drogas ganhou força. “Surgiu uma pressão maior para que o Estado brasileiro se transforme a ponto de incorporar modelos mais institucionalizantes, menos produtores de autonomia e mais promotores de desigualdades. No caso, as comunidades terapêuticas”. Marcelo Kimati acrescentou que, enquanto aumenta a necessidade de mais orçamento para a rede pública de saúde mental, a psiquiatria contemporânea segue em expansão. “Ela é pautada na formulação de manuais de diagnósticos que tendem a diminuir progressivamente o número de sintomas para categorizar as pessoas dentro de diagnósticos psiquiátricos. Um dos desdobramentos é a epidemia de uso de psicotrópicos, que acaba criando uma nova carga de demanda de saúde mental. Na medida em que a rede de saúde mental não tem escala para fornecer cuidado humanizado, com a participação do usuário, a resposta ao sofrimento mental é a medicalização”, disse Kimati.


O provimento dos recursos necessários para que a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) ofereça adequadamente o serviço à população é fundamental para que as ferramentas de participação social funcionem. Nesse sentido, a professora de Terapia Ocupacional da USP e colaboradora da OMS, Claudia Braga, comentou o uso dos instrumentos democráticos previstos, tais como a elaboração dos PTS, o Conselho Gestor e as assembleias, espaço de participação ativa dos usuários, familiares e servidores de um CAPS. Em sua palestra, ela defendeu a superação da curatela na relação com os usuários e citou declarações emblemáticas do homenageado no evento, Franco Basaglia. “Ele dizia que a única vigilância possível é a exercida pelos usuários”, lembrou. “Arrisco dizer que, no campo da Psiquiatria Democrática, Basaglia foi quem abriu a possibilidade de construirmos a participação social como uma prática real”, afirmou Claudia.

O papel dos trabalhadores no serviço de saúde mental foi um dos pontos explorados pela professora da USP. Claudia Braga fez um resgate histórico sobre o que, desde os tempos dos hospitais psiquiátricos, se espera dos profissionais. “Os trabalhadores acabam tendo um papel ambíguo e contraditório que, de um lado, envolve uma ideia de supostamente garantir uma ação terapêutica. De outro, significa efetivar a segregação e o controle”, explicou. Contra esse papel cristalizado pelas instituições, Claudia afirmou que se exige uma redistribuição de poder entre profissionais e usuários. Para isso, explicou a pesquisadora, os trabalhadores precisam, então, recusar o lugar de superioridade simbólica, permitido espaço para diálogo e negociação, além de participação social. 

A mesa teve a coordenação do diretor do Instituto Municipal Juliano Moreira, Alexander Ramalho, que destacou trechos das apresentações dos palestrantes, acrescentando comentários e reflexões. Numa delas, ele questionou a necessidade de os serviços de saúde mental se adaptarem a metas objetivas de trabalho. “Pensando numa lógica basagliana da psiquiatria anti-institucional: por que as metas não se adaptam a nossa vida?  A gente não vai se adaptar à instituição e acho que é por isso que estamos aqui [reunidos no seminário]”, provocou. 

Coordenador do evento, pesquisador sênior da ENSP, do CEE-Fiocruz e fundador do Laps/ENSP, Paulo Amarante encerrou o seminário afirmando que os dois dias de discussões atualizaram a agenda para o campo da saúde mental e da reforma psiquiátrica no país. “O seminário foi pensado para registrar o cinquentenário da Psiquiatria Democrática e o centenário de Franco Basaglia, mas a ideia não era fazer algo memorialista, de recuperar os dados, mas sim usar os temas como mote, como disparador de uma reflexão para o futuro. Acho que, de fato, atualizamos e refizemos uma agenda para o campo da saúde mental e da reforma psiquiátrica no Brasil. Isso é realmente potente”, celebrou o pesquisador.

Já a pesquisadora Ana Paula Guljor, coordenadora do Laps/ENSP e presidente da Abrasme, reforçou que eventos como o seminário ‘A Liberdade é Terapêutica’ reforçam a “missão do laboratório de pesquisa, de vida e de trabalho”. Ao comentar a tradição do Laps, Guljor afirmou que, como espaço de formação, o laboratório busca “trazer novas gerações e continuar alimentando as anteriores”. Segundo ela, a ideia é “trazer esse espírito de colocar a pulga atrás da orelha, permitir se sentir desconfortável e inquieto, pois é na inquietude que se avança para traçar caminhos inovadores, que acompanhamos ao longo do tempo”. 

Resultado de um esforço coletivo, o evento foi organizado pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/ENSP), em parceria com Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz), Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e Capes. 

Assista à mesa na íntegra no canal da ENSP no Youtube:





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