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‘Insurgências radicais, dialetos e políticas da loucura’: debate relembra contribuições de personalidades do campo da Saúde Mental

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Publicado em:24/06/2024
Por Danielle Monteiro

A história da Reforma Psiquiátrica no Brasil e as contribuições dos psiquiatras François Tosquelles e Frantz Fanon na luta antimanicomial marcaram o debate Insurgências radicais, dialetos e políticas da loucura, realizado na tarde da última quinta-feira (20/06). A atividade integrou a programação do seminário A liberdade é terapêutica: centenário de Franco Basaglia - 50 anos de psiquiatria democrática, promovido pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/ENSP), em parceria com o Centro de Estudos Estratégicos (CEE/ENSP), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).  

Especialista em Saúde Mental, Imigração e Interculturalidade e membro do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt, o psicanalista Anderson Santos abriu a mesa com uma apresentação sobre o trabalho de François Tosquelles, reconhecido por seu pioneirismo no campo da saúde mental e engajamento na luta antifascista. 

Organizador do livro Uma política da loucura e outros textos (François Tosquelles), que reúne artigos, entrevistas e conferências do psiquiatra, Santos ressaltou as contribuições de Tosquelles no campo da saúde mental, citadas no prefácio da publicação, escrita pelo pesquisador da ENSP, Paulo Amarante. O livro foi o primeiro a traduzir o trabalho de Tosquelles para o português. “Gosto quando, no prefácio, é mencionado que Tosquelles foi um dos protagonistas na transformação inovadora e radical no campo da psiquiatria, e que, embora tenha se tornado referência e fonte de inspiração em muitos processos, não teve o reconhecimento que merecia”, comentou.

Santos traçou a trajetória profissional de Tosquelles, destacando sua luta contra a ditadura, sua participação no movimento camponês e marxista, sua importância na guerra civil espanhola no combate com as milícias antifascistas e seu incentivo à participação de pessoas comuns nos serviços psiquiátricos, como camponeses, padres e pintores. “No decorrer da guerra civil espanhola, Tosquelles selecionava membros de sua equipe com base na capacidade que tinham em se relacionar com as pessoas sem a arrogância e o preconceito daqueles que se sentiam superiores. Ele dizia que se gasta muito tempo transformando uma pessoa em alguém que saiba estar com os outros e que não se pode fazer psiquiatria no setor ou hospital mantendo uma ideologia burguesa e individualista”, contou.

Segundo Santos, na trajetória de Tosquelles na guerra, se percebe uma abordagem colaborativa, que vai refletir sua visão de que o trabalho na saúde deve ser baseado na participação ativa da comunidade e na promoção da solidariedade. “Em Aragon, na França, o que Tosquelles faz é construir uma prática psiquiátrica pela via comunitária. Ele vai defender uma abordagem que considera a saúde mental parte da luta política e social. Essa experiência marca seus trabalhos, formando essas inovadoras práticas de terapia comunitária, que vão engajar a comunidade e a instituição (psiquiátrica) no processo que ele chamava de cura da instituição”, afirmou.

Ainda entre as contribuições do trabalho do psiquiatra catalão citadas pelo psicanalista, está a crença na ação terapêutica no meio social, o questionamento sobre a prática de confinamento de pacientes, a construção de uma psiquiatria coletiva e a defesa da instituição psiquiátrica como um lugar de passagem e uma escola de liberdade, e não de alienação. “Tosquelles ajudou a sociedade a se libertar de uma estrutura manicomial presente na cultura”, afirmou.

Em seguida, em sua exposição, o professor da Universidade de Uberaba, o psicólogo Gregorio Kazi, criticou o modelo manicomial influenciado pelas concepções da psiquiatria francesa implantada por Philippe Pinel, com suas instituições de ‘sequestro’ e abordagem excludente, assim como de higienização, moralização, vigilância, controle e, até mesmo, extermínio. Ele também condenou o Iluminismo da Racionalidade, “que ilumina, define, regula e enquadra o outro, que, em qualquer fuga, é eliminado e exterminado”. 

Kazi relembrou o lugar dos manicômios durante a ditadura na Argentina, que se tornaram os primeiros destinos dos presos desaparecidos, pois, uma vez levados para lá, poderiam ser facilmente exterminados nos centros de extermínio. Ele defendeu que a abordagem manicomial se engloba em uma lógica capitalista e imperialista, na qual cabem outros mundos, que devem ser eliminados, ou recuperados para que seu desvio reproduza capital. “Um exemplo disso aconteceu quando ‘loucos’ e ‘loucas’ foram usados para experimentos clínicos. No recomeço da luta antimanicomial na Argentina, morreram 70 pacientes do hospício de mulheres, pois a indústria de medicalização estava aplicando experimentos nelas”, comentou.

Kazi destacou, ainda, que é importante reconhecer o psiquiatra e filósofo Frantz Fanon como precursor da luta antimanicomial e da compreensão da reprodução da colonialidade, do poder, do racismo, do sexismo e do regime patriarcal, “os quais exigem que o sujeito reproduza aquilo que são os atributos da ‘normalidade’”. 

Por fim, o ex-pesquisador colaborador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP), Edvaldo Nabuco traçou um histórico do simbolismo da loucura, fazendo referência ao livro História da Loucura, de Michel Foucault. 

Ele explicou que a loucura foi percebida como algo diferente no Renascimento, na Idade Clássica e na Modernidade. “No Renascimento, havia uma tensão entre uma experiência trágica e uma consciência crítica da loucura. A loucura era renegada, mas habitava o meio social. Na Idade Clássica, o rei Luís XIV fez o que Foucault denominou como a Grande Internação, ou seja, todas as pessoas que não serviam ao capitalismo eram internadas no hospital geral. Da passagem da sociedade feudal para a burguesa, várias pessoas ficavam vagando pela cidade. Foram elas que foram levadas  para o hospital geral. Na época, eram todas agrupadas no termo da ‘desrazão’. O louco era aquele que não tinha capacidade de voltar para o mundo do trabalho, por isso, precisava de tratamento. Já na modernidade, a loucura é vista como doença mental. Durante mais de 200 anos, essa foi a forma que se teve para tratar a loucura”, narrou. 

Nabuco relembrou a contribuição do psiquiatra italiano Franco Basaglia no rompimento de uma tradição na abordagem da loucura existente há mais de 200 anos. Ele afirmou, ainda, que a importância de Basaglia para a Itália é semelhante à importância do pesquisador da ENSP Paulo Amarante para o Brasil e a América Latina. “No Brasil, a participação social tem como marco principal o ano de 1976, quando é criada a revista Saúde em Debate e o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde. Na época, criou-se o Movimento da Reforma Sanitária. Em 1978, três médicos residentes, entre eles, Paulo Amarante, denunciaram, no livro de registros do Centro Psiquiátrico Pedro II, a violência contra os pacientes, o que gerou a crise da divisão nacional da saúde mental”, relembrou. 

Em seguida, Nabuco discorreu sobre a história da Reforma Psiquiátrica no Brasil, citando os principais eventos da época, como a Fundação do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental e o 1º Congresso de Trabalhadores em Saúde Mental, entre diversos outros. 

Ele reproduziu a afirmação de Paulo Amarante de que a Reforma Psiquiátrica não é uma reforma de serviços, ou seja, não se trata apenas de criar os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), mas, sim, um processo social complexo. Por fim, ele citou algumas ações recentes das quais participou, que se enquadram na abordagem defendida pela Reforma Psiquiátrica, como o Prêmio Loucos pela Diversidade, entre diversas outras iniciativas. 



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