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Pesquisadora da ENSP analisa inclusão de burnout e outras questões de saúde mental entre doenças relacionadas ao trabalho

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Publicado em:12/01/2024
Por Barbara Souza

Os impactos do trabalho na saúde mental têm sido discutidos cada vez com mais frequência. Há dois anos, o Burnout foi classificado como doença ocupacional pela Organização Mundial da Saúde. Em dezembro de 2023, ao atualizar a Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho, o Ministério da Saúde incluiu a também chamada ‘Síndrome do Esgotamento Profissional’ no documento. Outras questões de ordem mental e psicossocial passaram a fazer parte da lista, como ansiedade, depressão, abuso de drogas e até mesmo tentativa de suicídio. Para aprofundar o debate sobre as questões de saúde mental relacionadas ao trabalho, o Informe ENSP entrevistou a psicóloga pesquisadora do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh), da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), Luciana Gomes, que estuda a relação entre trabalho e saúde mental. 

A pesquisadora comentou a atualização da lista, que avaliou como um avanço importante para a saúde do trabalhador: "Ainda que tenhamos muito a percorrer, significa que houve reconhecimento da diversidade e multiplicidade de aspectos, que vem sendo colocados nas discussões, nos estudos, nas práticas em saúde do trabalhador". Além disso, comentou características típicas do trabalho contemporâneo e a ligação entre saúde mental e as ferramentas de comunicação e informação usadas atualmente. "O uso das tecnologias pode ser operado como forma de controle e dominação em que se espera que os sujeitos estejam permanentemente disponíveis, 'on-line'", analisou Luciana Gomes. 

Realizada após 24 anos da instituição da Lista, a atualização busca a adequação do protocolo às necessidades dos trabalhadores. Segundo o Ministério da Saúde, o momento “marca uma agenda prioritária para a atual gestão com a retomada do protagonismo na coordenação nacional da política de saúde do trabalhador e coloca os profissionais no centro do debate sobre saúde pública, considerando que a pauta não foi central nos últimos anos”. No total, 165 novas patologias que causam danos à integridade física ou mental do trabalhador foram integradas à lista. Além das já citadas doenças de saúde mental, entraram também Covid-19, distúrbios músculoesqueléticos e vários tipos de câncer. O anúncio ocorreu durante o 11ª Encontro da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador, realizado em Brasília no fim de novembro de 2023. 

O Ministério da Saúde avalia que a nova Lista vai promover melhores práticas de diagnóstico e a elaboração de projetos terapêuticos e orientação para ações de Vigilância e Promoção da Saúde; auxiliar na formulação de políticas públicas mais eficazes no âmbito da Vigilância em Saúde do Trabalhador; acompanhar as mudanças nos processos produtivos no país, possibilitando a adaptação das políticas de saúde para atender as novas demandas e riscos emergentes; e impactar diretamente na qualidade de vida dos trabalhadores. O documento é composto por duas partes: a primeira apresenta os riscos para o desenvolvimento de doenças; e a segunda estabelece as doenças para identificação, diagnóstico e tratamento. Com isso, a quantidade de códigos de diagnósticos passa de 182 para 347. 

Confira a entrevista com Luciana Gomes na íntegra:

A preocupação com os impactos do trabalho na saúde mental das pessoas é um fenômeno recente, na sua opinião? Por quê?

Luciana Gomes: Na verdade, tal preocupação existe há certo tempo. As questões relacionadas à saúde mental e trabalho são estudadas desde meados do século passado. No Brasil, os estudos, pesquisas e atividades de intervenção nos serviços públicos de saúde e entidades sindicais começam a ficar mais frequentes a partir da década de 1980. O que se destaca na atualidade é o aumento e o agravamento das queixas e adoecimentos de saúde mental relacionados ao trabalho, atingindo a classe trabalhadora nas mais diversas áreas de atuação e em todos os níveis de formação. Isso é algo preocupante tendo em vista que, atualmente, os transtornos mentais figuram entre as principais causas de afastamento ou incapacidade para o trabalho.

Que fatores podem estar associados aos crescentes relatos de problemas de saúde mental ligados ao trabalho? O agravamento das crises econômica, política e social, com a fragilização das relações de trabalho, explica a situação?

Luciana Gomes: Em parte, o agravamento dessas crises com a fragilização das relações de trabalho coloca sérias implicações para a saúde dos trabalhadores, na medida que impactam diretamente o mundo do trabalho, definindo transformações nos processos e nas condições de trabalho que cada vez mais enfraquecem as formas para produção de saúde individual e coletivamente. 

O fato de estarmos ‘online’ de forma ininterrupta pode ser considerado um risco à saúde mental do trabalhador?

Luciana Gomes: O desenvolvimento das tecnologias digitais e ferramentas de informação e comunicação possibilitam que muitas atividades possam ser realizadas em qualquer lugar, basta ter equipamento e acesso à internet. A importância disso ganhou destaque durante a pandemia de Covid-19, em que muitos processos de trabalho passaram a ser remotos e mediados pelo uso da internet, em função da emergência sanitária. A rigor, o desenvolvimento de tecnologias deveria servir para facilitar as nossas vidas, evitar maiores desgastes, sejam eles físicos, cognitivos ou psicológicos. Contudo, a falta de uma regulamentação que contemple questões da saúde do trabalhador em que o trabalho seja previsto em condições adequadas de forma que preserve a saúde e a dignidade do trabalhador e da trabalhadora, tem propiciado a inversão desse sentido. 

O uso das tecnologias pode ser operado como forma de controle e dominação em que se espera que os sujeitos estejam permanentemente disponíveis, "on-line". Isso representa um aumento da exploração da força de trabalho, pois extrapola o combinado de horas definidas na jornada, possivelmente não deve receber a compensação financeira compatível para tal exigência e invade as horas fora do trabalho que deveriam servir para que o trabalhador e a trabalhadora usufruam da forma como desejem, inclusive para seu descanso, para sua saúde e se recompor para o trabalho no dia seguinte. Nesse sentido, enfraquecem aspectos fundamentais para a manutenção e o fortalecimento da saúde como um todo.

Existem tipos de trabalho com mais riscos de prejuízos à saúde mental do que outros? Quais são?

Luciana Gomes: Através dos dados de adoecimento e afastamentos por saúde mental, pode-se observar o destaque de determinadas categorias ou tipos de atividade, sob esse aspecto. Como é o caso de atividades que envolvem relações de serviço, como:  profissionais de saúde, bancário/a, motorista de ônibus, professor/a de Ensino Fundamental, entre outras. Contudo, a questão dos riscos à saúde mental está mais associada às condições do trabalho e da organização, de um modo geral, do que ao tipo de atividade propriamente. O comprometimento à saúde mental pode vir a partir de condições inadequadas ou insuficientes do trabalho, vínculos precários, violências no trabalho (discriminação, assédio moral e sexual), intensificação do trabalho, exigências contraditórias e falta de clareza na definição das funções, falta de diálogo e participação na tomada de decisões que afetam o trabalhador e a trabalhadora, falta de controle sobre a forma como executa o trabalho, falta de apoio de chefias e colegas,  insegurança  e instabilidade.
  
O Ministério da Saúde atualizou a lista de patologias relacionadas ao trabalho após as inclusões terem sido avaliadas pela Renast (Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador). Você acredita que haverá impactos dessa atualização na realidade, no dia a dia, dos trabalhadores? Se sim, de que maneira?

Luciana Gomes: Sem dúvida que, depois de 24 anos sem atualizações, essa atualização representa um avanço importante para a saúde do trabalhador. É o fruto de um processo de construção coletiva e participativa que envolveu diversos atores, sindicatos, movimentos sociais, controle social e academia. Houve um aumento de 182 para 347 patologias, para essa versão. Apresentando ampliação da lista de transtornos mentais, inclusão de comportamentos que podem ocorrer por consequências ocupacionais, abuso de drogas, tentativa de suicídio, burnout, Covid-19, atualizações de outras patologias, como alguns tipos de câncer, distúrbios musculoesqueléticos e doenças de pele. Ainda que tenhamos muito a percorrer, significa que houve reconhecimento da diversidade e multiplicidade de aspectos, que vem sendo colocados nas discussões, nos estudos, nas práticas em saúde do trabalhador, e que podem estar presentes na determinação do processo de saúde e doença no trabalho, como por exemplo: dos fatores psicossociais, aspectos ligados às condições de trabalho e jornadas de trabalho exaustivas. A atualização pretende auxiliar no diagnóstico das doenças e de contribuir para o estabelecimento da relação do adoecimento e o trabalho. Espera-se que isso concretamente colabore com a ampliação do conhecimento sobre essa relação e que se traduza na adoção de políticas de saúde e segurança que promovam ambientes de trabalho mais seguros e saudáveis.   

Por fim, o que pode ser feito por empresas, entidades representativas (como sindicatos) e, talvez, pelos próprios trabalhadores, para reduzir os casos de burnout, ansiedade, depressão e tentativa de suicídio? Existe algum caminho para reverter esse cenário?

Luciana Gomes: Uma perspectiva para pensar saídas para esse cenário de tanto sofrimento e adoecimento mental relacionados ao trabalho seria entender que a lógica que prioriza os lucros, a produtividade e incentiva a competitividade e o individualismo é extremamente danosa para a saúde do trabalhador e da trabalhadora. É preciso  proporcionar condições de trabalho adequadas, de modo que assegurem a dignidade e o respeito aos direitos humanos, com salários justos, respeito às jornadas de trabalho acordadas, aos limites físicos, cognitivos e psicológicos do trabalhador e da trabalhadora, em que não se naturalize as violências, que o ambiente de trabalho possa ser acolhedor, com relações interpessoais mais saudáveis, com solidariedade e empatia  e a dimensão coletiva do trabalho- que é um forte fator de proteção à saúde mental - possa ser fortalecida. 

Foto: Fósforos | Fonte: Ciphr

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