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Saúde sexual da pessoa com deficiência: relatos pessoais, dados alarmantes e iniciativas de inclusão marcam evento

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Publicado em:12/12/2022
Por Barbara Souza

Relatos pessoais e trocas de experiências na luta por direitos e autonomia marcaram o evento internacional ‘Pessoas com deficiência e saúde sexual: o que deveríamos estar fazendo?’, realizado na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) nesta terça-feira (6/12). Entre palestras e rodas de conversa, foram apresentados estudos recentes sobre o tema e iniciativas emancipadoras na área. Um dos destaques foram as discussões sobre o desenvolvimento da sexualidade da pessoa com deficiência ainda na infância e na adolescência. O evento foi realizado em exaltação ao Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, celebrado no dia 3/12, e ao Dia da Nacional da Acessibilidade, 5/12. Além da ENSP, o Comitê Fiocruz pela Acessibilidade e Inclusão da Pessoa com Deficiência, o Acolhe PcD Acessibilidade, Direitos e Saúde, a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência (SMPD-Rio) e o Luta pela Paz foram responsáveis pela realização desta atividade. Confira na reportagem as principais discussões e outros destaques.

Boneca criada pelo projeto 'Eu me protejo'. Fotos: Virgínia Damas/ENSP/Fiocruz

“Espero que, um dia, a gente não precise falar mais de inclusão, pois ninguém estará de fora”. Esta foi uma das várias declarações enfáticas do cineasta Daniel Gonçalves durante a roda de conversa ‘Assexybilidade: A sexualidade da pessoa com deficiência’, que também contou com a participação de Vítor Ricardo Mendes Pereira, um homem cis autista e gay que trabalha no projeto Tio Lino, e de Fernanda Honorato, repórter, mulher cis e heterossexual. A roda teve a mediação de Patrícia Monteiro, que pesquisa Educação em sexualidade e plano individualizado de transição para jovens e adultos com deficiência intelectual na Uerj. 

Daniel, que tem uma deficiência física ainda não identificada pelos médicos, apresentou um trecho do filme, que será exibido em festivais no ano que vem, o ‘Assexybilidade’. Ao comentar a obra, o diretor disse que a ideia é falar do tema sem tabu: “é um pouco para chocar as pessoas mesmo”. O filme vai tocar em muitos pontos, passando por várias camadas, pois tem 15 personagens com diversos tipos de deficiência, diferentes identidades de gênero e orientação sexual. Daniel explicou que o longa não terá especialistas, apenas as próprias pessoas com deficiência falando de si próprias e de suas experiências, seus “desejos, vontades, o que gostam e o que fazem ou não fazem”, como explicou o diretor. 

Na mesma roda de conversa, Vítor contou sobre a falta de referências, no seu círculo social, de pessoas com deficiência que tenham uma vida sexual ativa, além disso, lamentou o fato de um diálogo sobre o assunto não ter se estabelecido na sua família. “Pelo fato de eu ser gay, a sexualidade não foi um assunto conversado na minha casa, era um tabu. O que eu aprendi não foi com meus pais e eu acho que deveria ter sido. Considero que ter uma vida sexual ativa é muito importante”, relatou. Fernanda Honorato também ressaltou o fato de haver preconceito dos próprios pais que, nas palavras dela “não acreditam que seus filhos possam se relacionar, ter uma vida sexual ativa, beijar e transar”. Ela concluiu fazendo um alerta sobre a importância de praticar sexo de forma segura para prevenir doenças ou gravidez indesejada. 

Repleto de depoimentos pessoais, o evento teve em duas oportunidades a exibição de vídeo-relatos nos quais pessoas de vários lugares do Brasil com diferentes deficiências contam suas vivências relacionadas à temática sexual. As falas de Vitória Bernardes, Antonia Pirangi, Hellosman Oliveira, Bianca Ramos, Luciana Rufino, Anna Paula Feminella, Claudielly Teixeira, Patrícia Lorete e Luana Rayalla enriqueceram o evento ao mostrar, de maneira direta e objetiva, os principais desafios na busca pelos seus direitos sexuais e reprodutivos, como por exemplo, acesso a atendimento ginecológico no caso das mulheres. 

Mesa de abertura

Ao saudar os convidados, organizadores e demais participantes no início do evento, a vice-diretora da Escola de Governo em Saúde da ENSP/Fiocruz, Marismary Horsth De Seta, afirmou que “o tema da saúde sexual, e também reprodutiva, das pessoas com deficiência é muito pertinente e oportuno. Devemos lembrar que essas pessoas estão inscritas nos direitos da pessoa humana, no sentido da igualdade do tratamento e do acesso a todos os direitos, entre eles o direito à vida, no qual consta a saúde sexual”. 


Também esteve na mesa de abertura a fundadora do projeto Marias em Manguinhos, Norma Souza, que afirmou se sentir entristecida, apesar de ser uma data de celebração: “muitas crianças nascem com deficiência por conta de erros médicos. Então, celebrar é muito difícil, mas dialogar é preciso, já que o diálogo leva a políticas públicas que tragam ações que eduquem e reeduquem essas pessoas que devem assistir a pessoa com deficiência ou podem evitar que isso aconteça”. Na sequência, quem falou foi a assistente social Alessandra Alves, do movimento social Luta pela paz. Ela trabalha na Maré, outra comunidade vizinha da Fiocruz no Rio de Janeiro, há 20 anos. “Não basta fazer um trabalho só por fazer. A gente precisa se especializar, precisa de apoio e de financiamento”, afirmou.

Já Flávia Cortinovis, subsecretária da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência do Rio (SMPD-Rio), comentou o tema do evento e lamentou as consequências de ainda ser um tabu: “assim a gente faz com que as crianças cresçam e se tornam adultos sem informação”. Ela fez ainda um relato sobre uma situação em que seu filho, que tem síndrome de down, teve seus direitos sexuais desrespeitados. Por fim, Sonia Gertner, do Comitê Fiocruz pela Acessibilidade e Inclusão da Pessoa com Deficiência, defendeu que o assunto seja discutido abertamente e com coragem. “Vamos desconstruir o nosso capacitismo”, declarou.

Mesa Direitos e Saúde Sexual das Pessoas com Deficiência

Com a mediação da pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde/ENSP, mãe de dois adultos com deficiência intelectual, Maria Helena Mendonça, a mesa ‘Direitos e Saúde Sexual das Pessoas com Deficiência’ começou com a apresentação ‘Adolescentes e sexualidade: inclusão além das rampas’, de Sergio Meresman, do Instituto Interamericano sobre Discapacidad y Desarollo Inclusivo (iiDi). “O século XXI nesse campo começou há pouco. Estamos um pouco na pré-história da Inclusão”, resumiu o pesquisador ao fim de sua palestra.

Meresman, que participou de forma remota, apresentou dados de um estudo feito no Uruguai e que mostrou que quase 70% dos responsáveis por adolescentes com algum tipo de deficiência afirmou que autorizam seus filhos a namorar. No entanto, a pesquisa também revelou que a maioria dos jovens não pratica atividades recreativas sozinho e nunca namorou. De acordo com Meresman, a razão está na infantilização e na superproteção dos pais com esses filhos. Ele expôs, então, caminhos para mudar este cenário ao listar os passos para desinfantilizar a pessoa com deficiência: 1) romper com o modelo médico que patologiza a deficiência (ou seja: não vê-la como um déficit, mas como uma diferença), 2) desdramatizar (não paralisando diante da questão, mas sim procurando ajuda) e 3) desetiquetar (não rotular a pessoa com o diagnóstico).

Em seguida, a psicóloga Neusa Maria, coordenadora do projeto ‘Eu me protejo’ falou sobre a iniciativa na palestra “Educação sexual acessível para crianças, distinguindo carinho de abuso”. Ela criticou o que chamou de visão “adultocêntrica” das crianças e defendeu que elas tenham protagonismo. Neusa fez um alerta após afirmar que as crianças com deficiência sofrem três vezes mais abusos do que as demais: “o processo educativo de prevenção no caso dessas crianças precisa ser ainda mais cauteloso e precisa ser feito com pessoas que integram a rede de apoio da criança e seu círculo afetivo. Educação para prevenção também é sobre consentimento. Se não falarmos sobre isso, legitimamos a violência”. 

O ‘Eu Me Protejo’ é um projeto que ensina crianças a reconhecerem e se protegerem de abusos e agressões. O projeto já preparou e disponibiliza um rico material como jogos, livros, poemas, músicas e uma cartilha elaborada por uma equipe multidisciplinar para preparar os pequenos para o combate à violência sexual, tratando o assunto de forma lúdica e leve. O conteúdo é voltado para crianças com e sem deficiência, para que aprendam que seus corpos são seus e devem ser respeitados. Ao comentar a palestra de Neusa Maria, Norma Souza compartilhou uma situação que está enfrentando há um ano: sua neta revelou ter sido abusada por um tio. O caso está em sigilo, ainda em investigação pelo Ministério Público. 


Já a pesquisadora da ENSP que coordenou o evento, Laís Silveira Costa, fez a apresentação com o título “Direitos e Saúde Sexual das pessoas com deficiência: o papel dos trabalhadores de Saúde” e encerrou defendendo a importância de abordar o tema e pensar sobre as políticas públicas considerando a sobreposição ou intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação. “É preciso olhar interseccionalmente como esses sistemas de opressão atuam a depender de o quão na periferia está a pessoa, como é o seu acesso à educação e qual o vazio da informação”, afirmou.

Para encerrar a mesa, a chefe do Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria, Íris Maria Lordello falou sobre ‘Promoção da saúde sexual no território: desafios e oportunidades’. Ela citou situações como exemplos de como as pessoas com deficiência não são ouvidas nos serviços de saúde. “A gente não reflete sobre essas questões porque a gente não ouve. E eu digo, por experiência própria, que ouvir hoje na atenção à saúde é uma dificuldade imensa porque ouvir requer tempo e este tempo não existe mais para as equipes. É um tempo corrido no qual você está atendendo um paciente e tem alguém batendo à porta pedindo uma receita”, relatou. Íris acrescentou que o que tem sido produzido em saúde é, na verdade, um enxugar de gelo que adoece também o profissional. “As questões de saúde devem ser resolvidas no coletivo, com a potencia do grupo gerando um movimento que vai fazer as políticas mudarem”.  

Assista ao evento na íntegra:




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