'Uso racional de antibióticos é como o da vacina: ação de solidariedade', diz pesquisadora da ENSP
Por Barbara Souza
Um dos maiores desafios sanitários globais, a resistência bacteriana a medicamentos entra em evidência anualmente de 18 a 24 de novembro: é a Semana Mundial de Conscientização sobre o Uso Racional de Antibióticos. Para aprofundar e atualizar o que tem sido discutido a respeito do assunto, o Informe ENSP entrevistou a pesquisadora titular do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica (NAF/ENSP/Fiocruz), Claudia G. S. Osório de Castro. Ela explicou maneiras de driblar os mecanismos de resistência desenvolvidos pelos microrganismos, criticou práticas médicas pouco cuidadosas que estimulam o problema, comentou a prescrição de antibióticos contra a Covid-19 e, ainda, falou sobre os prejuízos econômicos nesse cenário e listou iniciativas que buscam soluções. Confira a entrevista na íntegra:
Por que a resistência aos antibióticos é uma preocupação mundial?
Claudia Osório: A resistência é uma preocupação mundial porque os antibióticos são um contra as infecções bacterianas. Quando se usa demais, desgasta-se o recurso e, quando for preciso de fato usar, ele já não vai servir, não vai ter a atividade necessária, já que as bactérias vão ficando resistentes. Elas vão se selecionando de acordo com a exposição ao antibiótico. Então, as que são muito suscetíveis morrem logo e quem fica são as mais resistentes. As bactérias vão desenvolvendo mecanismos para aumentar essa resistência ao longo do tempo.
A verdade é que, toda a vez que se usa antibiótico, isso ocorre, até mesmo quando é feito o uso das substâncias da forma correta, prescrita pelo médico, com indicação adequada. Sempre vai haver esse risco, pois é inerente ao uso do antibiótico. É um medicamento que age contra organismos vivos e mata aqueles suscetíveis, deixando livres os que não são suscetíveis. Ou seja, mesmo com o uso completamente correto e indicado, alguma resistência vai ser criada, faz parte. Mas imagine com o uso indiscriminado ou desnecessário? Aí isso aumenta muito.
O que acelera a aparição e a propagação da resistência aos antibióticos?
Claudia Osório: Existem muitos mecanismos diferentes de aparecimento de resistência aos antibióticos, antivirais e todos os medicamentos que são anti-infecciosos de modo geral. Os microrganismos, como vírus, fungos e bactérias, desenvolvem mecanismos de resistência porque eles querem viver, não querem ser dizimados. Então, é uma forma que eles têm de entrincheirar. Isso ocorre de diversas formas e é da variedade e da riqueza da vida. Mas alguns fatores podem oportunizar maior resistência, como o uso indiscriminado ou sem indicação precisa. Muitas vezes, o paciente tem uma infecção, mas o médico, com pressa, prescreve o antibiótico sem saber se aquele é o mais indicado para debelar a infecção ainda naquele estágio. Às vezes, ele prescreve um antibiótico de potencial de combate mais alto. Então, queima algumas etapas. Em algumas circunstâncias é necessário, mas nem sempre.
Há também o uso fora do tempo adequado. Algumas pessoas tomam o antibiótico só enquanto apresentam sintomas, em vez de cumprir o tempo integral do tratamento. Isso também induz à resistência. Se é preciso tomar dez dias de antibióticos, há um motivo para isso. São dias necessários para vencer as cepas vulneráveis e também as resistentes. Se o tratamento parar no quinto dia, as cepas resistentes provavelmente vão ficar, vão ser selecionadas. A dose, o tempo, a indicação... Tudo isso aumenta as possibilidades de resistência, se for mal feito.
Existe algum público mais prejudicado pelo constante aumento da resistência aos antibióticos? Quais e por quê?
Claudia Osório: Sim, são as pessoas que já são vulneráveis, que já têm uma baixa de resistência. Veja a questão da vacina contra Covid, por exemplo: a 5ª dose será oferecida aos imunocomprometidos, pessoas cujo sistema imunológico não está funcionando da melhor forma. Então, elas são as primeiras que vão sofrer caso tenham infecção e enfrentem resistência bacteriana. Os mais velhos também, assim como as crianças e qualquer pessoa com alguma deficiência orgânica, clínica ou doenças autoimunes. Aqueles que têm alguma doença infecciosa e usam medicamentos que comprometem o sistema imune também estão entre as pessoas mais suscetíveis.
A resistência é que nem a vacina. A gente não diz que a vacina é uma ação comunitária, de solidariedade? Se você se vacina, aumenta a possibilidade de o grupo ter imunidade àquela doença. Com os anti-infecciosos é a mesma coisa: se você faz mal uso, está acometendo toda a sociedade com a consequência disso, que é a resistência microbiana. Ou seja, está prejudicando todo mundo que está ao seu lado, pessoas nem estão usando medicamento nenhum. No dia em que essa pessoa precisar, a resistência comunitária vai passar e o medicamento poderá não ser efetivo.
Na pandemia de Covid-19, vimos medicamentos como Amoxicilina e Azitromicina serem receitados para muitos pacientes que testaram positivo para a doença, que não é causada por bactéria, mas si por um vírus. Esse período, com essas práticas, foi de retrocesso no combate ao uso indiscriminado de antibióticos?
Claudia Osório: O que posso dizer é que o que vimos com a Covid é reflexo desse descaso que já estávamos vivenciando há um tempo. Eu estou fazendo um trabalho com uma aluna que identificou que, no Brasil, o ano de 2017 para algumas classes de anti-infecciosos foi terrível. Estamos tentando descobrir por que tanto consumo, até de Azitromicina, antes mesmo da Covid! Por quê? Azitromicina é um medicamento que se ingere uma vez por dia, por um período curto, que antigamente era de três dias e, agora, já se administra por cinco dias.
O que aconteceu na pandemia é que havia indícios, no início, que acabaram sendo totalmente refutados. Foi provado que não servia de jeito nenhum. Mas houve uma linha da França que usava Azitromicina na Covid, que é doença viral. Enfim, usou-se o antibiótico, e quem entende um pouco nota o somatório da falta de evidência à urgência do tratamento. Havia uma obstinação por tratar, que se sabe que não há racional terapêutico, mas muitos tratam dessa forma por não haver nada a se fazer.
Há também uma pressão sobre os médicos para que receitem algo, o paciente cobra isso. É cultural. Como avalia essa questão?
Claudia Osório: O médico não pode se sentir obrigado a prescrever nada se o que ele está passando é incorreto. A gente tem que ser objetivo. Ainda que se entenda a questão cultural, é indesculpável. Acaba-se deixando de lado questões importantíssimas sobre a melhor forma de tratar, e é uma irresponsabilidade disseminar a resistência. A gente não pode perder de vista o que é realmente importante. Não há uma desculpa para isso.
Mas há outra situação que ocorreu também na Covid, porque as doenças virais, a depender da situação, causam grandes danos. Na sequência, pode vir uma infecção bacteriana pós-virose, a oportunista, que atinge o organismo já debilitado. Nesses casos, é preciso diferenciar, pois o uso de anti-infecciosos em função da Covid foi acertado. O problema é que muita gente adoeceu ao mesmo tempo. O que terá acontecido com o perfil das bactérias? A gente vai ter que esperar um pouco para ver o que vai acontecer. Isso é objeto de estudo nosso, vamos ver como ficou esse padrão de utilização dos anti-infecciosos, pois existe resistência a todos eles, e a mais perigosa é a resistência bacteriana, é a que tem mais impacto de morbidade na saúde.
O ambiente hospitalar é bastante delicado nesse sentido, correto?
Claudia Osório: O ambiente hospitalar é super selecionado. Há milhões de desinfetantes, mas algumas bactérias crescem até em degermante, super desinfetantes e esterilizantes. Se não seguir os protocolos direitinhos, não se consegue matar! Pelo hospital, passam pessoas que, a vida toda, tomaram anti-infecciosos fortes para infecções avançadas... As bactérias dessas pessoas estão no ambiente hospitalar e vão infectar as pessoas que estiverem no local, e, normalmente, são pessoas em estado de saúde mais frágil.
Os cuidados com pacientes com infecções resistentes oneram os serviços de saúde? É possível afirmar que a resistência aos antibióticos gera prejuízos também econômicos?
Claudia Osório: Gera muitos prejuízos econômicos. Porque não só onera os serviços com tratamento de infecção, para não deixar que ela mate o paciente, mas também são diversos medicamentos usados para mantê-los estáveis, além do tempo de UTI, serviços de diversos profissionais, esterilização, nutrição parenteral para pessoas muito graves que não podem se alimentar... É uma verdadeira ação de guerra conseguir salvar uma pessoa com uma infecção muito grave.
Há ainda os custos indiretos. A pessoa internada está deixando de trabalhar, está com diversas outras atividades comprometidas. E, geralmente, infecções demoram a ser curadas. É um impacto grande de custos.
Existe um esforço mundial, de diversas entidades da área da Saúde, para encontrar soluções para o problema. Quais você destacaria?
Claudia Osório: A OMS tem uma grande preocupação com a questão da resistência microbiana há muitos anos, com ações para tentar reverter, controlar isso. E tem ainda a proposta ‘One Health’ (saúde única). Não é só a gente que usa os antimicrobianos e os anti-infecciosos... E os animais? A gente está comendo carne que está repleta de antimicrobianos, e isso está disperso pelo ambiente. A OMS entende que não é só uma questão humana, que os animais todos estão sendo afetados por essas substâncias, que são várias, como hormônios, por exemplo, que interferem no ciclo da vida. O Brasil assina todos os protocolos com a Organização Pan-Americana da Saúde, e o Ministério da Saúde tem feito ações nesse sentido. Mas ainda há um desafio muito grande ligado à formação médica. O médico recebe visitas dos propagandistas da indústria farmacêutica, mas não tem muita clareza sobre quanto tempo e a razão pela qual não pode fazer determinadas prescrições, por exemplo. Temos uma dívida gigante no ensino da farmacologia clínica, o que inclui a prescrição de antimicrobianos e as questões da resistência.
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